quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Soberania financeira do Brasil diante de um império caduco

Nas últimas semanas, medidas anunciadas pelo presidente dos Estados Unidos contra o Brasil trouxeram à tona um episódio até então inédito: os serviços de pagamentos, do qual o PIX é parte importante, foram colocados no centro de uma investigação por supostas (e infundadas) práticas desleais contra empresas norte-americanas. A ofensiva ganhou contornos mais graves quando, em um desdobramento político, o ministro Alexandre de Moraes foi enquadrado na chamada Lei Magnitsky, bloqueando operações financeiras em dólar e atingindo suas transações em redes de pagamentos internacionais através da Visa, Mastercard, Google Pay e Apple Pay. Desta maneira, as ações chegaram concretamente ao sistema financeiro brasileiro, acendendo alertas sobre possíveis consequências – como restrições a transações internacionais, sanções a bancos brasileiros com operações nos Estados Unidos, entre outras.

É preciso lembrar que esse embate não acontece no vácuo e, muito menos, de maneira isolada. Insere-se, em um contexto de disputa pela liderança global, com a ascensão da China, a reorganização de países do Sul Global e pelo desenvolvimento de inciativas autônomas desses últimos na área financeira que têm escapado ao controle de grandes empresas estadunidenses. E, diante de uma ameaça à hegemonia de seu país, o governo Trump vem recorrendo a ações autoritárias, como sanções e taxas, mascarados de defesa de interesses empresariais. O mundo está se movendo em um momento de “lusco-fusco”, como formulado por Gramsci, com o ocaso da velha ordem já podendo ser vista no horizonte e o novo lutando para nascer. Neste contexto, busca-se, a todo custo, manter as finanças e as plataformas digitais (as chamadas “big techs”), elementos centrais do capitalismo contemporâneo, sob o controle de um império caduco.


Assim, um dos alvos dessa ofensiva tornou-se o sistema digital de pagamentos regulado pelo Estado brasileiro, que desde 2020, com criação do PIX, tem alterado a dinâmica do mercado no país, chegando a impactar (em certa medida, como será visto) grandes empresas estadunidenses de cartões (caso da Visa e Mastercard) e o avanço das plataformas digitais no ramo de pagamentos. Além disso, o presente ataque também possui motivações políticas em um momento interno delicado, com a possível condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, que pode ser, inclusive, um exemplo para outros países.

Mas as questões ligadas ao PIX não se restringem ao Brasil. Elas repercutem, inclusive, por conta de um movimento mais amplo no Sul Global. Em países da América Latina, como o México, Argentina, Peru e Bolívia, os bancos centrais vêm reestruturando há mais de duas décadas os seus respectivos sistemas de pagamentos, oferecendo condições para digitalização do dinheiro e fortalecendo transações em suas respectivas moedas nacionais – a Bolívia chegou a impor limites ao uso do dólar em determinados pagamentos. A Índia, com o UPI, também ofereceu condições para uma adesão massiva da população ao mercado de pagamentos. O Quênia, por sua vez, no leste africano, lançou o M-Pesa em 2007, transformando transações financeiras cotidianas por meio da telefonia móvel e antecipando soluções ligadas aos pagamentos instantâneos em diversos países (como a criação em 2013 de um número de identificação para pagamentos semelhante ao que hoje é a “chave PIX”). A expansão do M-Pesa foi avassaladora desde então, fomentando o processo de digitalização e de expansão das plataformas no território queniano e, inclusive, para outros países africanos. Estas iniciativas evidenciam, portanto, uma relativa soberania financeira nos países do Sul – e que não foi dada, simplesmente, de antemão, mas construída ao longo do tempo.

E, assim, inevitavelmente, podemos questionar: o ataque ao PIX seria um recado a outros países do Sul que estabeleceram iniciativas autônomas em seus sistemas financeiros? Caso este ataque prospere, quantas nações, com menos poder de defesa política e econômica que o Brasil, conseguiriam resistir às pressões para conceder vantagens às empresas norte-americanas?

No caso brasileiro, a disputa precisa ser lida, ainda, dentro de uma longa trajetória de inovação tecnológica e de construção do sistema de pagamentos. Desde os anos 1960, o Banco Central e grandes bancos nacionais atuaram para a automação das transações no território nacional. A reorganização do sistema de pagamentos brasileiro em 2001 contribuiu para a formação de uma infraestrutura e de uma regulação públicas eficientes, capazes de suportar o aumento das transações digitais com a popularização dos cartões de débito e crédito, das plataformas digitais, do comércio eletrônico e dos novos serviços de pagamento instantâneos.

Apenas para se ter uma dimensão desse universo de transações, segundo os dados mais recentes do Banco Central sobre o mercado de cartões, o Brasil alcançou em 2024, o total de 235 milhões de cartões de crédito ativos (superando a sua população total após um crescimento de 14% em relação a 2023) e de 74 milhões de cartões pré-pagos ativos (aumento anual de 9%), embora tenha havido uma queda de 5% no número de cartões de débito ativos (de 162 milhões em 2023 para 154 milhões em 2024). Ainda assim, em 2024 houve avanço no número de transações em todos estes instrumentos em relação ao ano anterior, de 11% para os cartões de crédito, 19% para os pré-pagos e de 2,5% de débito. Houve igualmente aumento nas transações online de 27% e de 4%, respectivamente, com cartões de crédito e débito e, também, naquelas por aproximação para ambas as modalidades, respondendo a 35% do total transacionado para os cartões de crédito e de 44% para os de débito. No total, as transações apenas com cartões de crédito movimentaram mais de R$ 4 trilhões apenas em 2024, com 45% do consumo das famílias sendo feito através deste instrumento. Não é preciso ser um grande matemático para observar a importância e a expansão desse mercado no país, já que as empresas atuantes cobram taxas por cada transação. Entretanto, é necessário lembrar que o incentivo ao consumo, as taxas de juros cobradas e o uso desenfreado de cartões de crédito são também responsáveis pelo endividamento da maior parte das famílias brasileiras.

E, nesse processo, a Visa e a Mastercard (empresas estadunidenses) tiveram até 2013 um duopólio concedido pelo Estado brasileiro sem qualquer abertura para concorrência externa, controlando e definindo as taxas cobradas pelas transações feitas nas maquininhas no território brasileiro. Mas, desde então, o Banco Central abriu este mercado para a competição – sem atuar para diminuir a dominância prévia de ambas as corporações. Tratou-se de fazer uma abertura com muitas barreiras para quem quisesse entrar e competir. O resultado foi uma desconcentração tímida e com a proeminência ainda hoje da Mastercard (dominando mais de 50% do volume transacionado com cartões no país) e da Visa. Em outras palavras, essas corporações ainda faturam e muito. Nesse contexto, algumas empresas nacionais foram criadas, como foi o caso da Elo, formada pelo consórcio entre bancos brasileiros, e que concorre com as gigantes dos Estados Unidos em uma posição muito inferior nesse mercado. O PIX é simplesmente parte deste conjunto de ações que afetou o crescimento e a dinâmica desse mercado. Essa abertura para a concorrência é, assim, um dado fundamental que confere e dá concretude a ações soberanas do Brasil na conjuntura atual.

Trata-se, em suma, de uma situação complexa, sendo importante aproveitar o debate público atual para compreendê-la. O que está em jogo não é a possibilidade de empresas competirem e oferecerem seus serviços de pagamentos em igualdades de condições, mas, a bem da verdade, da capacidade de um país do Sul Global regular seu próprio dinheiro digital e disputar um mercado estratégico, que foi, até pouco, monopolizado por corporações norte-americanas. A tentativa de deslegitimar e de colocar o PIX sob este fogo cruzado é, portanto, um movimento para tentar retomar privilégios e a dominância deste mercado.

A resposta brasileira, corretamente, está voltada para a defesa da sua soberania. Quando o seu sistema de pagamentos se torna alvo de disputas internacionais, o que está em questão é poder, soberania e a tentativa de um império caduco para manter o mundo sob seu domínio. Essa disputa, assim, é mais ampla e desvela uma nova reconfiguração da ordem global, com todas as contradições envolvidas, diante de uma maior autonomia relativa de países do Sul para formular estratégias, desenvolvendo soluções e serviços sofisticados, incluindo em áreas que até pouco não dominavam – como é o caso do dinheiro e das finanças.

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