quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Heróis jornalistas de Gaza

“É trabalho deles nos trazer o que Israel não quer que vejamos”


Imagine, ou tente imaginar, ir trabalhar todos os dias quando seu trabalho é testemunhar a morte de perto.

Não a morte silenciosa do agente funerário, mas a morte sangrenta dos massacrados. Cadáveres, corpos feridos e corpos de crianças encharcadas de sangue sendo levados para hospitais enquanto seus parentes gritam em angústia e jogam os braços para o céu em busca de súplicas. Muitas vezes, apenas as partes dos corpos estão lá para serem encontradas.

Nesta semana, em Jabaliya, os corpos estavam se decompondo nas ruas sem que o repórter percebesse, enquanto ele falava com a câmera o mais calmamente possível.

Testemunhar esse inferno e reportá-lo é seu trabalho, dia após dia e mês após mês. Ao mesmo tempo, você tem que fazer o melhor para evitar ser morto, mas para reportar verdadeiramente, ser morto é o que você tem que arriscar. Enquanto você está nas ruas, sua família está em casa. Seu medo constante não é que eles não estejam seguros, porque você sabe que eles não estão. Ninguém está seguro. Seu medo é que o próximo ataque de míssil os mate também.

Você provavelmente pode sair de Gaza, mas não fará isso porque alguém tem que testemunhar e esse é seu papel. Todos os que sobrevivem testemunham, mas você e somente você tem a responsabilidade especial de contar ao mundo o que está acontecendo, e é por isso que você se torna um alvo especial para o inimigo, uma voz perigosa que precisa ser silenciada .

Desde 7 de outubro de 2023, mais de 130 dessas vozes em Gaza, entre quase 180 profissionais da mídia, foram silenciadas — silenciadas permanentemente. Quase todas são palestinas.

Jornalistas ocidentais não correm risco de serem mortos em Gaza porque eles não estão lá. O governo de Israel não os deixa entrar, então eles não podem reportar essa "guerra" (massacre diário de civis) e aparentemente eles não podem entrar pelo lado egípcio também.

Informar o mundo, portanto, recai quase exclusivamente sobre os ombros de jornalistas palestinos que trabalham para a Al Jazeera e veículos de notícias menores, alguns afiliados ao Fatah ou Hamas, incluindo Watan, Ajmal Radio, Palestine TV, WAFA, Al Shehab e a rede de notícias Al Aqsa. A RSF (Repórteres Sem Fronteiras) estima que pelo menos 32 jornalistas foram alvos e " mortos " (assassinados) por Israel desde 7 de outubro de 2023.

A lista inclui:

Rushdi al Sarraj, cofundador da Ain Media e jornalista freelancer, morto em um ataque com mísseis em 23 de outubro de 2023;

Samer Abudaqa, da Al Jazeera em árabe, morto em dezembro, com seu colega Wael al Dahdouh, chefe do escritório da Al Jazeera em Gaza, ferido;

Hamzah al-Dahdouh, filho de Wael, morto em um ataque de míssil em janeiro de 2024 (um ataque aéreo "aparente", relatou a Associated Press (AP), como se qualquer pessoa pudesse ser morta em um ataque aéreo "aparente"). A esposa, a filha, 7, o filho, 15, e outros oito parentes de Wael já haviam sido mortos em um ataque aéreo em 28 de outubro de 2023;

Abdallah Aljamal, que era um colaborador do Palestine Chronicle entre muitos outros veículos de notícias, morto em junho durante uma operação secreta no campo de refugiados de Nuseirat. A esposa de Abdallah, Fatima, foi morta na escada, indicando que os israelenses nem sabiam quem ela era quando atiraram nela. Invadindo o apartamento da família, eles mataram Abdallah e seu pai, um médico, de 74 anos, e feriram sua irmã Zainab.

Dezenas de pessoas nas ruas ao redor foram mortas em fogo de cobertura, que eventualmente incluiu ataques aéreos. As forças de ocupação mais tarde destruíram o prédio inteiro. As alegações israelenses de que três reféns estavam sendo mantidos no apartamento da família foram contestadas por outras fontes, que disseram que eles estavam sendo mantidos em outro lugar do prédio.

Ismail al-Ghoul, um repórter árabe da Al Jazeera e o cinegrafista Rami al Rifai, ambos mortos em julho em um ataque aéreo, junto com uma criança "não identificada", conforme relatado pela AP.

Estes são apenas alguns nomes dos 130, aos quais devem ser adicionados os nomes de jornalistas palestinos mortos ao longo dos anos em Gaza e na Cisjordânia, apenas alguns (notavelmente Shireen Abu Akleh, assassinado por um atirador na Cisjordânia em 2022) já foram relatados ou relatados em detalhes no ciclo de notícias ocidentais. Todos os jornalistas usam capacetes e jaquetas de imprensa, então podem ser identificados de perto.

Jornalistas também são alvos no Líbano. Em 13 de outubro de 2023, um grupo de sete jornalistas foi alvo perto da linha de armistício Líbano-Israel (a "fronteira"), mas a uma milha de distância de quaisquer hostilidades. Dois projéteis de tanque foram disparados, matando o correspondente da Reuters Issam Abdullah e ferindo gravemente a correspondente libanesa da AFP Christine Assi (sua perna foi posteriormente amputada). Os projéteis de tanque foram seguidos por tiros de metralhadora. Os israelenses sabiam que eles estavam lá e estavam dispostos a matar.

Os jornalistas em Gaza são frequentemente deslocados junto com todos os outros. Seus escritórios de imprensa são destruídos, suas famílias são ameaçadas ou mortas, alguns são presos e desaparecem com outros nas prisões de Israel.

Tudo isso é feito com total impunidade , junto com todos os outros crimes que Israel comete. Em janeiro, a RSF apresentou quatro queixas ao TPI, acusando Israel de cometer crimes de guerra contra jornalistas. Embora tenha sido garantido que algo seria feito, nada foi feito, o que não é surpreendente, visto que o TPI ainda não deu prosseguimento às acusações de crimes de guerra solicitadas pelo promotor-chefe Karim Khan contra Netanyahu e Gallant. O TPI também não se moveu mais de sua conclusão de janeiro de que Israel estava cometendo um genocídio "plausível" em Gaza.

Atirar no mensageiro é literalmente o que Israel está fazendo para interromper o fluxo de notícias de Gaza.

Dentro de suas próprias fronteiras (como membro da ONU, Israel é único como um estado que nunca declarou suas fronteiras), todas as notícias que saem são higienizadas primeiro pelo censor militar. As únicas notícias confiáveis ​​sobre o que está acontecendo em Gaza estão saindo de Gaza, daí a campanha assassina lançada contra seus jornalistas.

Eles têm os mesmos problemas que todos os outros. Não há comida, água ou eletricidade suficientes e tristeza por familiares ou amigos mortos ou feridos, mas eles continuam a fazer seu trabalho, apesar do risco diário para suas próprias vidas.

Como o principal elo de notícias para o mundo exterior, os repórteres da Al Jazeera são os mais conhecidos. Eles são heróis à sua maneira.

Hani Mahmoud, Hind al Khoudary, Tareq Abu Azzoum, Moath al Kahlout e vários outros têm relatado essa guerra todos os dias há mais de um ano.

Eles estão vendo coisas que ninguém gostaria de ver, que ficam na mente quando entram e nunca mais saem, os corpos dilacerados de pessoas que conhecem e não conhecem, o material dos pesadelos da vida inteira.

Mantendo a calma, quase sempre, eles relatam dia após dia das ruas cobertas de corpos e partes de corpos, ou de fora dos hospitais, enquanto os corpos de crianças feridas ou mortas são carregados para dentro. Eles tiveram que olhar para as valas comuns e ver os corpos dos inocentes alinhados em suas mortalhas.

Nós, espectadores e leitores, não queremos testemunhar essas cenas horríveis mais do que eles, mas para saber o que está acontecendo, precisamos vê-las, mesmo que estremeçamos e desviemos o olhar porque a visão é insuportável.

É o trabalho deles nos trazer o que Israel não quer que vejamos. Que esses repórteres ainda tenham força para fazer isso depois de um ano sem quebrar (embora deva haver momentos em que eles cheguem perto) é extraordinário.
Jeremy Salt

Pensamento do Dia

 


Jornalista de TV mais amado de Israel explode prédio

Dany Cushmaro é provavelmente o jornalista de televisão mais conhecido em Israel. Como um dos âncoras e jornalistas amados do Canal 12 – o canal de notícias mais popular de Israel –, ele tem relatado a guerra entre Israel e Gaza desde as primeiras horas de 7 de outubro de 2023. Durante os primeiros dias, ele era identificável. Triste e confuso sobre como o Hamas conseguiu executar seu terrível ataque a civis israelenses, ele assumiu uma postura crítica, chamando a atenção do governo por sua falha em proteger os cidadãos em suas casas.

Mas como um viciado em adrenalina conhecido por seus despachos – involuntariamente cômicos – de sexta à noite em carros velozes e viagens de reportagens machistas em passeios de motocicleta pela Europa, Cushmaro se ajustou à guerra sem fim ao se incorporar ao exército israelense em Gaza e no Líbano. Ele rapidamente se transformou em uma parte útil da máquina de propaganda.

No fim de semana, o Canal 12 exibiu uma reportagem de 26 minutos de Cushmaro que terminou com ele recebendo a “honra” de apertar um botão que detonaria explosivos em um prédio na vila de Ayta ash Shab, no sul do Líbano. A alegria de Cushmaro é visível, mas caso alguém não tenha percebido, ele então sorri para a câmera e diz: “Não mexa com os judeus.”

Suas reportagens do campo de batalha sempre foram problemáticas e seriam um excelente material para professores de escolas de jornalismo que precisam de exemplos claros de “não jornalismo”. Nessas peças, Cushmaro parece apaixonado pelos oficiais das Forças de Defesa de Israel, fala sobre o quão orgulhoso ele está dos soldados israelenses, idolatra os sacrifícios que eles estão fazendo por seu país e descreve o quão agradável é ver uma área que antes representava uma ameaça a Israel transformada em ruínas.

Os moradores locais, sejam eles de Gaza ou libaneses, não existem nesse tipo de reportagem. Mas Cushmaro tende a mostrar a imagem deles como fanáticos religiosos, sanguinários e gananciosos que poderiam ter tido vidas maravilhosas e tranquilas, mas escolheram atacar o Israel inocente e trouxeram destruição sobre si mesmos. Em uma palavra, a reportagem de Cushmaro é propaganda. O fato de seu salário vir de uma empresa de mídia privada independente e não da IDF é apenas uma coincidência.

Cushmaro não está sozinho, é claro. A mídia israelense está cheia de propagandistas que se consideram jornalistas liberais e críticos. Enquanto o governo israelense reprime veículos de mídia como a Al Jazeera e a Al-Mayadeen , afiliada ao Hezbollah , jornalistas israelenses aplaudem das laterais, liderando o clamor contra a “propaganda estrangeira”.

Quando um oficial faz o elogio fúnebre de um soldado israelense morto contando uma história de como ele queimou uma casa em Gaza “só por diversão”, jornalistas israelenses coletiva e independentemente decidem não reportar sobre isso. Quando Israel coloca alvos nas costas de jornalistas palestinos que cobrem a guerra de Gaza, alegando que eles são colaboradores do Hamas, jornalistas israelenses não pedem provas. Eles pedem o botão e os explosivos.

O algoritmo matou a sensatez

Énos momentos de crise que mais precisamos de ponderação, de raciocínio elaborado e, acima de tudo, de uma dose mínima de sensatez. A cabeça quente, como todos depressa aprendemos quando éramos novos, nunca é boa conselheira. E mesmo as decisões que pensamos tomar por instinto são, na verdade, ditadas por um acumulado de experiências ou de treino intensivo, que nos possibilitam agir com rapidez.

Vivemos, no entanto, no tempo em que apenas se privilegia o imediatismo e a reação rápida, como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte. O tempo em que, a qualquer momento, todos os assuntos são discutidos com o ardor enviesado e incendiário com que, desde há duas décadas, se convencionou que deviam ser os programas de televisão sobre futebol: duelos permanentes, com os intervenientes tantas vezes a roçarem o insulto descarado, em que a gritaria é norma, a interrupção é o truque mais usado e os argumentos são apresentados sem a mínima preocupação com a verdade, mas apenas para defender as cores do seu clube.

Este estilo de debate saltou do futebol para a política – às vezes, até com os mesmos protagonistas – e, de repente, com o impulso das redes sociais, acabou por contaminar todo o espaço público. Qualquer que seja o assunto, todas as pessoas acabam divididas entre as que estão a favor ou contra – como se a vida tivesse de ficar reduzida à escolha permanente entre “gosto” e “não gosto” inventada pelo Facebook. A polarização tornou-se a norma, com o confronto crispado entre ideias feitas e certezas absolutas a ser sempre privilegiado, em detrimento da reflexão e da busca de dados objetivos que ajudem a compreender ou a decifrar uma realidade complexa.


“A polarização é um modelo de negócio”, disse há pouco tempo Martin Baron, depois de se reformar do jornalismo, com algum desencanto assumido, após uma carreira extraordinária em que dirigiu com mestria três grandes instituições da imprensa americana: o The Washington Post, o Miami Herald e o The Boston Globe (onde ficou imortalizado no cinema em O Caso Spotlight). Percebe-se o seu ponto de vista: o confronto exacerbado, que procura provocar fúria, raiva e tensões entre o público, tornou-se a ferramenta mais usada para tentar captar audiências. Algumas técnicas ou estilos noticiosos que eram distintivos da chamada imprensa tabloide estão agora disseminados por todos os órgãos de comunicação social. E em tempo de crise e de quebra de confiança, a batalha pela atenção do espectador ou do leitor fica ainda mais à mercê dos ditames do algoritmo que, nas redes sociais, amplifica as polémicas e dá reconhecimento às maiores alarvidades. Com a consequência a que temos assistido: a cobertura jornalística dos temas importantes começa a ficar cada vez mais reduzida à discussão acalorada, e resumida a poucos pontos, entre figuras dos extremos opostos do espectro político. Ou seja, a polarização vai-se autoalimentando e, com ela, desaparece qualquer resquício de bom senso ou de sensatez que ainda pudesse existir – mas que nos faz tanta falta.

Os populistas são exímios no manejo desta técnica e usam-na, diariamente, como uma espécie de armadilha para tentar condicionar os temas em debate público. Como temos visto, qualquer que seja o pretexto, André Ventura convoca quase todos os dias os jornalistas para prestar declarações ou apresentar tomadas de posição, com a preocupação de ocupar qualquer espaço que esteja momentaneamente vazio nas televisões ou nas rádios. As intervenções são sempre em direto e, na maioria dos casos, com uma duração que a mensagem não justificava – até porque, quase sempre, se resume a um slogan com não mais do que meia dúzia de palavras.

Graças a diretos diários e acríticos, os populistas vão ganhando espaço e fomentando a polarização. De microfone sempre aberto, é-lhes permitido dizer as maiores falsidades e proferir as acusações mais graves, sem contraditório nem enquadramento. Ao aceitar esse papel, amorfo e absolutamente dependente da ditadura do algoritmo, o jornalismo acaba por perder credibilidade. E qualquer réstia daquilo que devia distingui-lo: informar com independência e sensatez.

Ainda não destruímos os fantoches

Cada vez que ouço um discurso político ou que leio os que nos dirigem, há anos que me sinto apavorado por não ouvir nada que emita um som humano. São sempre as mesmas palavras que dizem as mesmas mentiras. E, visto que os homens se conformam, que a cólera do povo ainda não destruiu os fantoches, vejo nisso a prova de que os homens não dão a menor importância ao próprio governo e que jogam, essa é que é a verdade, que jogam com toda uma parte de sua vida e dos seus interesses chamados vitais.
Albert Camus

Da democracia à 'demonocracia'

A democracia brasileira fica a dever quando comparada às de países como EUA, China, França, Inglaterra, Portugal, Suíça, Rússia e vários outros: nossa população elege menos representantes, nossos representantes respondem menos às necessidades e prioridades da população, e diferem em gênero, etnia, renda e patrimônio daqueles que supostamente representam. Vivemos no que podemos chamar uma – desculpem o neologismo – demonocracia, mais que numa democracia!

Muitos indagarão, com alguma razão: democracia chinesa, russa? Estes dois países têm eleições periódicas para escolher os dirigentes dos governos locais que, no Brasil, chamaríamos de vereadores e prefeitos. Isso basta para caracterizar uma democracia? Não, mas registra, sim, certo grau de influência dos eleitores sobre os governantes. Nessas duas nações os eleitores – todos os maiores de 18 anos residentes nos “municípios” – escolhem os “vereadores” mas não os “prefeitos”. Estes são escolhidos pelos “vereadores”, assim como nos EUA, na Inglaterra, na França e em Portugal. Que os eleitores não escolham os chefes dos executivos locais, portanto, não é sinal bastante para desqualificar um país como democracia. Aliás, nos EUA nem o presidente da república é escolhido pelo voto direto dos cidadãos, donde se conclui que o conceito de democracia é mesmo relativo.

Em todos os países citados a quantidade de eleitos, relativamente à população, é muito maior que no Brasil. Aqui, elegemos aproximadamente 70.000 pessoas, desde o presidente da república ao vereador; nos EUA, são mais de 500.000 eleitos; na China, o número passa de um milhão!


Em todos os países, as regras eleitorais, escritas e não escritas, têm enorme influência na definição de quem será eleito. Em muitos, as normas acabam por privilegiar pessoas com sociopatia, capazes de comentários e atos racistas, sexistas e outros crimes. Daí a ideia da demonocracia.

As campanhas eleitorais recentes, para escolher os dirigentes dos municípios brasileiros, revelaram personalidades que se enquadram na definição de sociopatia.

Pessoas com variados desvios de conduta se apresentaram aos eleitores, com nomes e propostas esdrúxulas ou vagas, em busca, principalmente, de poder e dinheiro, mais fáceis de obter nas malandragens entre o setor público e o privado do que em atividades regulares e legais. Claro, os salários e as benesses – inclusive foro privilegiado! – ao alcance dos que se elegem são atrativos adicionais.

Representar os eleitores? Para a maioria dos eleitos, apenas no discurso, como se revela pela distância existente entre eleitos e eleitores, no que diz respeito, como dito acima, à gênero, etnia, nível educacional, renda e patrimônio. Resulta, pois, em uma casta que governa para si, como evidenciado pela generalização, nos três níveis de governo, das emendas cash-back (pois parte dos recursos retorna aos bolsos dos eleitos), eufemisticamente chamadas emendas pix.

Resulta, pois, apesar da aparência de democracia, em um governo de demônios, a demonocracia!

A guerra não acaba nunca

No dia 16 de janeiro de 1991 me reuni com amigos para ver televisão em torno de uma gigantesca Sony Trinitron de 32 polegadas. Havia uísque, que era o que se bebia na época, refrigerantes e água de coco. Havia também uma sensação que não sabíamos definir. Estávamos curiosos e tensos, conscientes de estarmos vivendo um momento histórico, uma espécie de angústia por antecipação.

Os repórteres da CNN falavam diretamente da cobertura de um hotel em Bagdá, reportando os primeiros ataques aéreos dos Estados Unidos e de seus aliados contra o Iraque. Era a Operação Tempestade no Deserto, uma resposta à invasão do Kuwait pelo exército iraquiano alguns meses antes (suas consequências se estendem até os nossos dias). Nunca antes uma guerra havia sido transmitida ao vivo, em tempo real, e não tínhamos certeza nem do que iríamos ver, nem de como deveríamos nos comportar: era o.k. servir os salgadinhos?

Hoje aquelas imagens fazem parte do nosso inconsciente coletivo — a noite verde cortada pelas bombas, os foguetes antiaéreos traçando curvas no céu como fogos de artifício macabros. Mais tarde, um dos repórteres lembrou que, antes mesmo das primeiras explosões, todos os cachorros da cidade começaram a latir.


Era aflitivo saber, do nosso conforto em Ipanema, que aquilo estava acontecendo de verdade, naquele instante, numa outra parte do planeta — nada “estava feito”, ou pronto, numa gaveta imutável do passado. Em tese alguém, em algum lugar, ainda poderia mudar o curso dos acontecimentos, para evitar que pessoas que estavam vivas quando ligamos a televisão tivessem sido varridas da face da Terra antes que precisássemos repor o gelo nos copos.

Depois de certo tempo, porém, as imagens revelaram-se também profundamente monótonas, como um videogame escuro, embaçado e não interativo — e a conversa tomou outros rumos, porque a vida é pequena e é perto.

Desde então, nunca mais houve um dia sem guerra.
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De acordo com a tradição judaica, começou ontem o ano de 5784. É impossível, neste momento, encontrar qualquer sombra do otimismo que normalmente acompanha a virada de um calendário.

O Oriente Médio nunca passou por um momento mais sombrio, nem mesmo durante as Cruzadas, quando a matança, afinal, era artesanal, e não punha a Terra inteira em risco.

Não dá para imaginar que, tantos séculos depois, os destinos de milhões de pessoas ainda se encontrem nas mãos de uma dúzia de homens igualmente sanguinários, e igualmente despreparados para liderar.

Israel tem um governo assassino que só raciocina — se é que raciocina — em termos de guerra, e se confronta com um regime ainda mais obtuso e deletério em Teerã; mas quem está comemorando o ataque iraniano nas redes sociais não conhece História, e não faz ideia do que é viver numa teocracia islâmica.

Atravessar o ano de 5783 foi catastrófico emocionalmente, mesmo (e talvez sobretudo) para quem vive em 2024.

Israel pode ter dizimado o Hamas e o Hezbollah, mas a principal vítima da sua ferocidade é aquela parte da consciência comum da diáspora judaica que imaginava uma democracia digna do nome, um país justo e evoluído que saberia se portar mesmo diante das piores adversidades.

Está sendo duro conviver simultaneamente com o fim dessa ilusão, com a imensa ferida do 7 de Outubro e com a constatação de que o ódio aos judeus continua não só firme e forte, como saiu de vez do armário e virou tendência global.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Pensamento do Dia

 


O triunfo dos imbecis

Não nos deve surpreender que, a maior parte das vezes, os imbecis triunfem mais no mundo do que os grandes talentos. Enquanto estes têm por vezes de lutar contra si próprios e, como se isso não bastasse, contra todos os medíocres que detestam toda e qualquer forma de superioridade, o imbecil, onde quer que vá, encontra-se entre os seus pares, entre companheiros e irmãos e é, por espírito de corpo instintivo, ajudado e protegido. O estúpido só profere pensamentos vulgares de forma comum, pelo que é imediatamente entendido e aprovado por todos, ao passo que o gênio tem o vício terrível de se contrapor às opiniões dominantes e querer subverter, juntamente com o pensamento, a vida da maioria dos outros.


Isto explica por que as obras escritas e realizadas pelos imbecis são tão abundante e solicitamente louvadas – os juízes são, quase na totalidade, do mesmo nível e dos mesmos gostos, pelo que aprovam com entusiasmo as ideias e paixões medíocres, expressas por alguém um pouco menos medíocre do que eles.

Este favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária aumenta a sua já copiosa felicidade. A obra do grande, ao invés, só pode ser entendida e admirada pelos seus pares, que são, em todas as gerações, muito poucos, e apenas com o tempo esses poucos conseguem impô-la à apreciação idiota e bovina da maioria. A maior vitória dos néscios consiste em obrigar, com certa frequência, os sábios a atuar e falar deles, quer para levar uma vida mais calma, quer para a salvar nos dias da epidemia aguda da loucura universal.

Giovanni Papini, "Relatório sobre os homens"

Cadê a boa sociedade?

Está prestes a acontecer nos EUA o que aconteceu em Roma: corremos o risco de perder nossa República e terminar com um ditador. Pode acontecer na semana que vem. Está acontecendo em todo o mundo, é uma nova forma de estupidez que chamamos de fascismo.

Política é acúmulo de riqueza e poder. A discussão que eu proponho está acima disso, é sobre o que é uma boa sociedade.

Francis Ford Coppola, de 85 anos, lança no Brasil o filme "Megalóppolis"

Trump é o homem que queria ser rei

O que um segundo mandato de Donald Trump significaria para os EUA e o mundo? Os otimistas podem apontar para o que aconteceu da última vez: sua presidência, eles poderiam afirmar, foi cheia de alarde e fúria. Mas isso pouco significou. Ele governou de maneira mais convencional do que muitos temiam. Além disso, no fim, foi derrotado por Joe Biden e partiu. Partiu com má vontade, é verdade. Mas o que mais se poderia esperar? Ele partiu mesmo assim. Por que não seria parecido se ele conquistasse um segundo mandato, como sugerem as pesquisas?

Trump é especialista em promessas vazias. Em 2016, uma peça central de sua campanha foi o “muro” pelo qual o México pagaria. No fim, não houve muro, quanto mais qualquer dinheiro do México. Desta vez ele prometeu reunir e deportar até 11 milhões de estrangeiros em situação irregular. A operação necessária para isso seria imensamente cara e polêmica. De fato, como exatamente muitos milhões seriam deportados e para onde?


Mais absurda é a sugestão de Trump de que, ao elevar as tarifas, ele poderia eliminar o imposto de renda. Isso é um completo disparate. Segundo um artigo acadêmico de Kimberly Clausing e Maurice Obstfeld, mesmo uma tarifa de 50% - o máximo para maximizar a arrecadação - geraria menos de 40% da receita proveniente do imposto de renda. A perda líquida de receita tributária enfraqueceria o financiamento dos programas dos quais seus eleitores, em grande parte mais idosos, dependem.

Uma segunda presidência de Trump poderia ser ainda pior que a primeira. A Suprema Corte declarou que, em suas “funções oficiais”, o presidente está acima das leis criminais. Ele se sentiria justificado e estaria em busca de vingança

No entanto, uma segunda presidência de Trump poderia ser ainda pior que a primeira. Em 2016, ele foi como o cachorro que alcançou o carro. Em sua ignorância, ele acabou contratando pessoas que não compartilhavam de seus objetivos nem de seus interesses. Hoje, o Partido Republicano consiste de seguidores fiéis que aceitam o que o “grande líder” define como verdade, como ele fez em relação aos resultados da eleição de 2020. O “Projeto 2025”, da Heritage Foundation, também produziu planos para subjugar o governo federal, enquanto a Suprema Corte declarou que, em suas “funções oficiais”, o presidente está acima das leis criminais. Ele se sentiria justificado e estaria em busca de vingança.

O que isso poderia persuadir Trump a fazer? Ele poderia elevar os já enormes déficits fiscais dos EUA e pressionar o Federal Reserve a manter as taxas de juros baixas. Se conseguisse nomear seguidores fiéis para comandar o Departamento de Justiça, as agências de inteligência e o Internal Revenue Service [IRS, o fisco americano], ele poderia processar inimigos percebidos sem restrições. Poderia justificar essas ações como um “toma lá da cá” pelas várias acusações justificadas contra ele próprio. Ele supostamente perdoaria os insurgentes de 6 de janeiro de 2021, que tentaram evitar a certificação dos resultados da última eleição. Com o controle sobre as Forças Armadas, ele poderia declarar lei marcial livremente. Mais amplamente, ele poderia usar a estrutura do governo dos EUA para exercer controle sobre partes do país vistas como independentes demais.

No âmbito externo, ele poderia implementar sua guerra comercial com poucas restrições, inclusive contra o Canadá e o México. Como comandante-em-chefe, ele poderia tornar os compromissos da Otan irrelevantes, simplesmente indicando sua falta de disposição em enviar tropas para combate. Ele poderia, mais uma vez, se retirar de todos os compromissos climáticos em um momento ainda mais delicado. Ele poderia tornar muito mais difícil o funcionamento de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Ele poderia apoiar a extrema direita em toda a Europa. Ele poderia (e provavelmente iria) abandonar a Ucrânia.

Ao considerar todas as implicações para o mundo, é preciso distinguir os efeitos diretos dessas ações dos indiretos de seu retorno. Estes últimos seriam, acima de tudo, o encorajamento aos populistas de direita que buscam o poder, especialmente na Europa. Com os EUA, o grande bastião da democracia no século XX, sob controle autoritário, haveria uma oscilação no equilíbrio global contra a democracia liberal, não só em termos de poder, mas também em termos de credibilidade ideológica. Afinal, os EUA têm sido o modelo, embora imperfeito, para grande parte do mundo de uma ordem democrática governada por leis. A escolha de Trump pela segunda vez importaria muito.

Trump é no mínimo “fascista” e pode ser chamado de fascista de forma convincente. Em entrevistas ao “The New York Times”, John Kelly, ex-general dos fuzileiros navais dos EUA que foi seu chefe de gabinete por mais tempo, é citado como afirmando que em sua opinião, “Trump atendia à definição de fascista, governaria como um ditador se pudesse e não tinha entendimento da Constituição ou do conceito de Estado de Direito”. Além disso, Trump “nunca aceitava o fato de que não era o homem mais poderoso do mundo - e por poder, quero dizer a capacidade de fazer tudo o que ele quisesse, no momento em que quisesse”.

Para Timothy Snyder, um importante historiador das décadas de 30 e 40 na Europa, o fascismo é “um culto da vontade sobre a razão; é a vida dentro de uma Grande Mentira; é uma transformação da política em um culto a um líder que conta uma Grande Mentira e que é capaz de se estabelecer como a pessoa cuja vontade deve dominar a sociedade”.

A isso, acrescenta Anne Applebaum, outra especialista renomada, Trump descreveu seus adversários como “vermes”, mais uma vez uma característica da retórica fascista (e stalinista). As recentes “calúnias de sangue” sobre haitianos como comedores de animais de estimação se encaixam na difamação fascista de algumas pessoas como subumanas.

Os erros cometidos pelo governo Biden ajudam a explicar a popularidade de Trump, notavelmente sua incapacidade de controlar a imigração. Mesmo assim, é difícil entender o abandono dos princípios fundamentais do grande experimento americano de governo republicano. Grande parte do sucesso dele se deve aos precedentes criados por seu fundador, George Washington.

Como Tom Nichols observa na “The Atlantic”, Washington serviu como presidente por dois mandatos e depois foi para casa. Trump é o anti-Washington. Onde Washington era conhecido por sua probidade, Trump é conhecido pelo oposto.

Este é, então, um momento verdadeiramente decisivo.

Sonhar com anistia não fará mal a Bolsonaro, só o frustrará depois

Bolsonaro quer ser anistiado o mais rapidamente possível, como demonstrou ao desembarcar sem aviso no Congresso para conversar com líderes de partidos que ainda dizem apoiá-lo.

A Lusitana roda, o mundo gira, e Bolsonaro acha que o galo canta todos os dias para acordá-lo, e não porque o sol nasceu. Não se dá conta de que em breve o sol irá se pôr exclusivamente para ele.

A história do Brasil está pontilhada de anistias. Na segunda metade dos anos 1950, o então presidente Juscelino Kubitschek anistiou todos os militares que se rebelaram contra seu governo.

Quando instalaram a ditadura em 1964, os militares puniram com extremo rigor seus colegas de farda que se opuseram ao golpe em nome da legalidade. Que legalidade, coisa nenhuma!

Afinal, justificavam os golpistas, fora preciso suspender a democracia para poder salvá-la da ameaça comunista. E o processo de resgate da democracia se arrastaria por tenebrosos 21 anos.

A anistia ampla, geral e irrestrita cobrada pela oposição ao regime, não foi tão ampla, nem geral, nem irrestrita. E serviu acima de tudo para perdoar os crimes de sangue cometidos pelos militares.

Inimigos da ditadura foram presos, torturados, mortos, desapareceram, banidos do Brasil ou obrigados a se exilar. Os que sobreviveram voltaram com a anistia de 1979.

Os militares que torturaram, mataram, soltaram bombas e tentaram impedir o retorno da democracia, esses nada pagaram pelo que fizeram. Seus crimes sequer foram investigados.


A anistia que Bolsonaro defende é para os condenados e presos pela tentativa de golpe do 8 de janeiro, e para ele por tabela. Alega que não houve tentativa de golpe, apenas uma bagunça.

Os inconformados com a derrota do seu Messias, e no exercício do legítimo direito à liberdade de expressão, bateram à porta de quarteis a clamar por um golpe que invalidasse a eleição.

Clamar por um golpe não é crime, entende Bolsonaro. Invadir a Praça dos Três Poderes e depredar prédios públicos, até poderia ser classificado de crime, mas jamais contra a democracia.

Quanto a ele próprio, nem no Brasil estava. Assistiu tudo de longe e surpreso em um condomínio de Orlando, nos Estados Unidos. Se o tivessem consultado, certamente não autorizaria a bagunça.

A pressa de Bolsonaro com a anistia tem uma razão de ser – e não é a dor que sente por ver tantos correligionários presos, coitadinhos. Bolsonaro quer evitar ser julgado por novos crimes.

Inelegível até 2030, ele já está. Mas aproxima-se a hora de ser denunciado pelos crimes de roubo de joias e de atentado contra o Estado Democrático de Direito. Aí é que o bicho vai pegar.

Se o Congresso aprovasse a anistia que ele requer, Bolsonaro não seria denunciado e muito menos julgado, é o que ele imagina. E recuperaria os direitos políticos para candidatar-se em 2026.

Sonhar sai barato. E sonhar à falta de outra coisa para fazer, e com tudo pago pelo partido que lhe oferece abrigo e sustenta parte de sua família, não fará mal algum a Bolsonaro e ao seu rebanho.
Ricardo Noblat

Incêndios convergentes

Em 2 de outubro, comemorou-se o dia da não-violência. A data é uma homenagem ao líder pacifista indiano Mahatma Gandhi, que nasceu a 2 de outubro de 1869, na cidade de Porbandar, no Gujarat.

Sempre me incomodou tropeçar com a palavra violência na expressão “não-violência”. A inexistência de uma palavra simples, na maior parte das línguas, capaz de definir um pacifismo ativo, capaz de impor serenidade e devolver a lucidez aos conflitos, diz muito acerca das limitações morais do ser humano — ou, pelo menos, das limitações morais das civilizações geradas pela nossa espécie.



A história da Humanidade é uma história da violência. Tenho a certeza, contudo, de que em todas as épocas, em todas as sociedades humanas, terá havido pessoas como Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela ou Jesus Cristo, para as quais o recurso à violência traduz um colapso da inteligência, da Justiça e da racionalidade. Essas pessoas, por poucas que sejam, seguram os frágeis fios do nosso destino comum.

Enquanto os pacifistas comemoravam o dia da não-violência, a guerra entre Israel e os palestinos; entre Israel e o Líbano; entre Israel e o Irã, entrou numa fase ainda mais assustadora.

Poucas horas após o Irã ter atacado Israel com mísseis balísticos, sem consequências graves, o governo de Benjamin Netanyahu declarou Antônio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, persona non grata, proibindo a sua entrada no país. Imagino que Guterres, antigo dirigente do Partido Socialista português, um homem plácido, discreto, que até agora nunca fora capaz de despertar paixões fortes, tenha acolhido a notícia com certo orgulho. Ser atacado por alguém como Netanyahu é quase um prêmio.

Benjamin Netanyahu e Ali Khamenei são incêndios convergentes. O desvario de um alimenta e justifica o do outro. Há anos que Netanyahu ambicionava envolver o Irã num conflito de grandes proporções, arrastando para o mesmo o seu principal aliado — os EUA. Tudo indica que, finalmente, terá êxito. Uma guerra ampla convém a Netanyahu, que dessa forma consolidará a sua posição no poder, adiando os inúmeros problemas com a Justiça por acusações de corrupção. Milhares de pessoas estão morrendo para evitar a prisão de um único homem.

O conhecido jornalista israelense Gideon Levy alertou há poucos dias, numa entrevista ao canal Democracy Now!, para o crescente isolamento e enfraquecimento do seu país: “Toda essa mentalidade de bombardeio e bombardeio, que dura já um ano, recusando qualquer tipo de diplomacia, isso não garantirá a segurança de Israel, sem falar no preço que o outro lado está pagando. Mas mesmo a segurança de Israel não vai melhorar. Agora estamos em uma situação menos boa do que há um ano. Posso te dizer que, em Tel Aviv, estamos mais assustados do que há um ano.”

Mais de 500 mil judeus israelenses abandonaram o país desde o horrível massacre de 7 de outubro. Imagino que esses, os que estão saindo, serão aqueles que se opõem à atual dinâmica de violência. Vozes pacifistas, como a de Gideon Levy, são cada vez mais raras em Israel — embora tão necessárias. Temos pela frente dias muito sombrios.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Tempo...

 

A única coisa no mundo é insaciável e constantemente consumidora... Gerações, guerras, paz, celebridades, os desconhecidos, os ricos, os pobres, a tecnologia, os planetas em que vivemos... Ela consome todos eles, um por um. Alguns lentamente, alguns rapidamente...

Os empreendedores de tecnologia querem criar países e substituir a democracia

Imagine se você pudesse escolher sua cidadania da mesma forma que escolhe se matricular em uma academia de ginástica.

Esta é a visão de um futuro não muito distante apresentada por Balaji Srinivasan.

Balaji, que é conhecido apenas pelo seu primeiro nome, é uma estrela no mundo das criptomoedas.

Ele é um empreendedor e investidor que acredita que a tecnologia pode se sair melhor em praticamente tudo o que os governos fazem hoje.

Eu vi Balaji expor suas ideias no ano passado em uma grande sala de conferências nos arredores de Amsterdã.


“Criamos novas empresas como o Google; criamos novas comunidades como o Facebook; criamos novas moedas como Bitcoin e Ethereum. Será que podemos criar novos países?”, perguntou ele enquanto atravessava o palco, vestido com um terno cinza levemente folgado e uma gravata frouxa.

Mais do que um astro do rock, ele parecia um gerente qualquer de um departamento de contabilidade.

Mas não se deixe enganar. Balaji é ex-sócio da gigante empresa de capital de risco Andreessen Horowitz. Ele tem patrocinadores com muito dinheiro.

O Vale do Silício adora “disrupção” — o ato de inovar rompendo paradigmas. As empresas emergentes de tecnologia vêm revolucionando a imprensa tradicional há anos. Agora elas também estão se aventurando em outras áreas: educação, finanças e viagens espaciais, por exemplo.

“Imagine mil startups diferentes, cada uma substituindo uma instituição tradicional diferente”, disse Balaji ao público.

“Elas existem paralelamente ao sistema estabelecido, vão atraindo os usuários, vão ganhando força, até se tornarem o novo.”

Se as startups pudessem substituir todas essas instituições diferentes, argumentou Balaji, elas também poderiam substituir os países.

Ele chama a sua ideia de “Estado em Rede”: nações emergentes. Funcionaria assim: as comunidades formam-se – inicialmente na Internet – em torno de um conjunto de interesses ou valores comuns.

Eles então adquirem terras, tornando-se “países” físicos com leis próprias. Estes coexistiriam com os Estados-nação existentes e, com o tempo, os substituiriam completamente.

Você escolheria sua nacionalidade da mesma forma que escolhe seu provedor de banda larga. Você poderia virar cidadão de um pequeno estado-nação cibernético que quisesse.

Não é novidade que as empresas tenham uma influência indevida em assuntos soberanos.

A expressão "República das Bananas" deriva do fato de que uma empresa americana, a United Fruit, governou a Guatemala durante décadas, a partir da década de 1930.

Além de possuir a maior parte das terras, ela administrava as ferrovias, os correios e o telégrafo. Quando o governo da Guatemala tentou recuar, a CIA ajudou a United Fruit instigando um golpe de Estado.

Mas este novo movimento tecnológico parece ter ambições ainda maiores. Ele não só quer que os governos existentes sejam submissos para que as empresas possam gerir os seus próprios assuntos, como também quer substituir os governos por empresas.

Há quem veja a ideia do “estado em rede” como um projeto neocolonial que substituiria líderes eleitos por ditadores corporativos que agiriam em benefício dos seus acionistas.

Mas outros pensam que essa seria uma forma de acabar com os Estados dominados pela regulamentação das atuais democracias ocidentais.

Você acha que isso parece apenas uma fantasia de um empreendedor de tecnologia? Na verdade, já existem elementos do Estado em rede no mundo.

A conferência em Amsterdã incluiu empreendedores de tecnologia apresentando algumas dessas “sociedades de startups”.

Existe a Cabin, uma “cidade em rede de aldeias modernas” que tem filiais nos Estados Unidos, Portugal e outros lugares; e Culdesac, uma comunidade com sede no Arizona projetada para trabalho remoto.

O conceito de Estado em rede de Balaji baseia-se na ideia de “cidade outorgada”, áreas urbanas que constituem uma zona econômica especial, semelhante às zonas francas.

Existem vários projetos deste tipo em construção em todo o mundo, incluindo na Nigéria e na Zâmbia.

Em um comício eleitoral recente em Las Vegas, o ex-presidente americano e candidato à Casa Branca Donald Trump prometeu que, se eleito em novembro, ele liberaria terras federais no Estado do Nevada para “criar novas zonas especiais com impostos e regulamentações ultra-baixas”, para atrair novas indústrias, construir habitações a preços acessíveis e gerar empregos.

O plano, segundo ele, iria reanimar “o espírito da fronteira e do sonho americano”.

Culdesac e Cabin são mais como comunidades online que estabeleceram bases territoriais.

Já a comunidade Próspera é diferente. Localizada em uma ilha perto do litoral de Honduras, ela se descreve como uma “cidade privada” que atende empreendedores.

A cidade promove o que chama de "ciência da longevidade", oferecendo terapias genéticas experimentais e não regulamentadas para retardar o processo de envelhecimento.

Administrada por uma empresa com fins lucrativos sediada em Delaware, nos Estados Unidos, a Próspera recebeu classificação especial do governo hondurenho anterior para criar suas próprias leis.

A atual presidente, Xiomara Castro, quer que a empresa vá embora e começou a retirar alguns dos privilégios especiais que lhe foram concedidos.

A Próspera está processando o governo hondurenho por US$ 10,8 bilhões.

Em algum momento durante a sessão de apresentação que durou todo o dia em Amsterdã, um jovem com um moletom cinza surgiu no palco.

Seu nome era Dryden Brown. Ele disse que queria construir uma nova cidade-estado, em algum lugar da costa do Mediterrâneo.

Ela não seria governada por uma burocracia estatal gigante, mas pela “blockchain”, a tecnologia das criptomoedas.

Seus princípios fundadores seriam as ideias de “vitalidade” e “virtude heróica”. Ele chamou isso de Praxis, a antiga palavra grega para “ação”. Os primeiros cidadãos desta nova nação, disse ele, poderão se mudar para lá em 2026.

Ele não foi muito específico sobre os detalhes. Mudar-se exatamente para onde? Quem construiria a infraestrutura? Quem administraria a cidade?

Dryden Brown mostrou um slide, sugerindo que a Praxis era apoiada por fundos com acesso a centenas de bilhões de dólares.

Por enquanto, porém, a “comunidade Praxis” existe principalmente na internet. Existe um site onde você pode solicitar a cidadania.

Não está claro quem são exatamente esses cidadãos. Dryden mostrou outro slide. Era um meme de Pepe: o triste sapo de desenho animado que se tornou mascote da direita alternativa durante a campanha de Trump em 2016.

Neste nicho mundial de nações emergentes, a Praxis tem reputação de ser inovadora.

Ela promoveu festas que ficaram famosas: há relatos de noites à luz de velas em enormes coberturas de Manhattan, onde programadores de computador se misturavam com modelos e figuras do “Iluminismo das Trevas” (um movimento cultural antidemocrático e reacionário) — que inclui pessoas como o blogueiro Curtis Yarvin, que defende um futuro totalitário em que o mundo seja governado por "monarcas corporativos".

Suas ideias são às vezes descritas como fascistas, algo que ele nega. Os participantes da festa em geral precisam assinar um acordo de confidencialidade. Os jornalistas não são bem-vindos.

Após sua apresentação, fui conversar com Dryden Brown. Ele parecia na defensiva e um pouco frio, mas me deu seu número de telefone. Enviei algumas mensagens, tentando iniciar uma conversa. Mas não tive sucesso.

Cerca de seis meses depois, vi um anúncio interessante no X: “Lançamento da revista Praxis. Amanhã à noite. Tire cópia das suas páginas favoritas.”

A hora ou local não foram indicados. Havia apenas um link onde você poderia se registrar para participar.

Fiz minha inscrição. Não houve resposta. Então, na manhã seguinte, enviei outra mensagem para Dryden Brown. E, para minha surpresa, ele respondeu imediatamente: “Ella Funt às 22h”.

Ella Funt é um bar e boate em Manhattan — anteriormente conhecido como Club 82, uma lendária casa noturna na cena gay de Nova York. Nos anos 50, escritores e artistas frequentavam o local para tomar coquetéis servidos por mulheres de smoking e assistir a shows de drag no porão.

Agora o local seria palco de uma festa exclusiva para pessoas tentando fundar um novo país. E, para meu espanto, eu estava convidado.

Mas eu estava no Estado de Utah, a 3 mil quilômetros dali. Se eu quisesse chegar a tempo, teria que pegar um vôo imediatamente.

Ainda assim, acabei sendo um dos primeiros a chegar. O lugar estava quase vazio, com algumas pessoas da Praxis colocando exemplares de sua revista no bar.

Folheei o papel caro e grosso, com muitos anúncios de coisas aparentemente aleatórias: perfumes, armas impressas em 3D e... leite.

Assim como Pepe, o Sapo, o leite é um meme da internet. Nos círculos da direita alternativa, postar um emoji de garrafa de leite branca é um sinal de supremacia branca.

A revista incentivava os leitores a "fotocopiar as páginas e colá-las por toda a cidade", como uma espécie de meme analógico. Uma máquina Xerox foi colocada no bar exatamente para isso.

Um grupo de jovens entrou, alguns usando botas de cowboy. No entanto, eles não pareciam pessoas que viviam muito ao ar livre.

Comecei a conversar com um deles. Ele se apresentou como Zac, um “cripto cowboy” de Milton Keynes, na Inglaterra (ele usava um chapéu Stetson de couro).

“Eu meio que represento o Velho Oeste americano”, disse ele. “Eu sinto que estamos em uma espécie de fronteira.”

Muitas pessoas associam criptomoedas a fraudes: dinheiro altamente volátil da internet, cujo valor pode desaparecer da noite para o dia.

Mas no mundo do Estado em rede, todos adoram criptomoedas. Eles acreditam que elas são o futuro do dinheiro — um dinheiro que os governos não podem controlar.

A próxima pessoa com quem falei se autodenominava Azi. Perguntei seu sobrenome. “Mandias”, ele respondeu com um sorriso.

Era uma referência a um soneto do poeta inglês Percy Bysshe Shelley: Ozymandias, rei dos reis.

O anonimato é uma parte importante da ética do mundo cripto. Tive a sensação de que ninguém naquela festa estava me falando seus nomes verdadeiros.

Mandias era originalmente de Bangladesh, mas cresceu no bairro de Queens, em Nova York. Ele era fundador de uma empresa de tecnologia emergente.

Ele acreditava que, tal como a imprensa tinha contribuído para o colapso da ordem feudal na Europa há 500 anos, hoje as novas tecnologias (criptomoedas, blockchain, inteligência artificial) causariam o colapso do Estado-nação democrático.

“Obviamente, a democracia é ótima”, disse ele. “Mas o melhor governante é um ditador moral. “Algumas pessoas chamam isso de rei filósofo.”

Azi disse que estava animado por estar à beira do que considera ser o próximo renascimento.

Mas antes deste renascimento, ele previu um “movimento ludita” contra as novas tecnologias que destruiria milhões de empregos e monopolizaria a economia global.

Os luditas fracassariam, observou Azi. No entanto, ele previu que o período de transição para o que chamou de “próxima fase” da evolução social humana – a fase do Estado em rede – seria violento e “darwiniano”.

Longe de ficar perturbado com esta perspectiva, Azi parecia entusiasmado com a ideia de que das cinzas da democracia emergiriam novos reis: ditadores corporativos que governariam a sua rede de impérios.

Fui até o bar e peguei uma bebida. Lá conversei com duas jovens que não pareciam fazer parte do grupo cripto.

Ezra era gerente de outra boate próxima, e sua amiga Dylan era estudante. Aparentemente elas tinham sido convidadas para acrescentar um pouco de glamour ao que era essencialmente uma festa de criptoempreendedores e geeks de informática. Mas elas tinham algumas ideias próprias sobre o Estado da rede.

“E se você não tiver funcionários suficientes no hospital ou na escola para cuidar das crianças?”, perguntou Dylan. “Não é realista começar uma cidade inteira sem qualquer governo.”

Para Ezra, toda a ideia parecia distópica. “Queríamos ver como seria uma reunião de um culto de verdade”, disse ela, brincando, eu acho.

Naquele momento, Dryden Brown, cofundador da Praxis, apareceu na festa. Quando ele saiu para fumar um cigarro, eu o segui.

A revista Praxis era uma forma de mostrar a nova cultura que ele esperava construir, ele me disse. A Praxis, afirmou ele, tratava da “busca da fronteira” e da “virtude heroica”.

Eu duvidava que Dryden conseguisse durar muito tempo numa carroça no Velho Oeste. Ele parecia exausto.

Eu queria fazer algumas perguntas específicas sobre o projeto do Estado em Rede: quem seriam os cidadãos deste admirável mundo novo? Quem o governaria? Por que usar tantos memes de extrema direita? E a pergunta de Dylan: quem iria trabalhar nos hospitais?

Mas éramos constantemente interrompidos pela chegada de convidados. Dryden Brown me convidou para visitar a “Embaixada Praxis” no dia seguinte.

Nos despedimos e voltei para dentro. A festa estava ficando mais selvagem. Ezra, Dylan e algumas amigas que pareciam modelos subiram na máquina de Xerox.

Elas estavam ocupadas fotocopiando, não páginas de revistas, mas partes de seus corpos. Peguei um exemplar da revista e saí.

De volta ao meu pequeno Airbnb acima de um supermercado chinês, folheei a revista. Ao lado dos memes da supremacia branca e dos anúncios de armas, havia um código QR que levava a um curta-metragem de 20 minutos contra o vazio da vida moderna e com nostalgia por um mundo de hierarquias e heroísmo que já não existe mais.

“Você está entretido e saciado”, entoa o narrador, “você parece produtivo, mas não é excelente”.

A voz fala dos “algoritmos que fazem você odiar a si mesmo e à sua própria civilização”.

Neste ponto do curta, a tela mostra uma figura animada apontando uma arma diretamente para o espectador.

“A mídia contemporânea proclama que ter qualquer ideal é fascista”, continua a voz. “Todo aquele que tem convicções é fascista.”

Seria isso um convite para adotar o rótulo de fascista? Este movimento parecia ansiar por uma concepção específica da cultura ocidental: um mundo nietzschiano em que os mais aptos sobrevivem, onde a ruptura e o caos dão origem à grandeza.

No dia seguinte, passei pela “Embaixada Praxis”, uma cobertura gigantesca na Broadway.

As prateleiras estavam realmente cheias de exemplares de Nietzsche, biografias de Napoleão e um volume intitulado O Manual do Ditador. Esperei um pouco, mas Dryden Brown nunca apareceu.

Saí me perguntando o que exatamente tinha testemunhado na noite anterior: seria um visão do futuro, no qual países como os Estados Unidos e o Reino Unido seriam envolvidos por uma teia de sociedades corporativas, um mundo no qual alguém poderia escolher se tornar cidadão de um pequeno Estado cibernético?

Ou estariam Dryden Brown e seus amigos apenas "trollando" — um grupo de empreendedores de tecnologia se passando por revolucionários de extrema direita para rir do establishment e se divertir?

Poderia Dryden Brown um dia se tornar um rei-CEO, governante de uma franquia de império de direita radical com postos avançados espalhados por todo o Mediterrâneo?

Eu duvido. Mas já existem medidas para promover mais portos livres e cidades autônomas.

E se a democracia estiver em apuros, o movimento do Estado em rede parece estar pronto para entrar em cena.

Gabriel Gatehouse 

Mortes em offline para encobrir as mortes na Faixa de Gaza

Relata o The Guardian, o mais importante jornal do Reino Unido: quando a conectividade de internet retornou a Jabalia, no norte de Gaza, após mais um apagão na última quinta-feira, o jornalista da Al Jazeera, Anas Al-Sharif, usou suas contas de mídia social para deixar o mundo saber o que aconteceu durante as horas em que a área ficou offline. Ataques aéreos israelenses atingiram várias casas na mesma rua no bairro de al-Hawaja, ele disse, matando ou ferindo cerca de 150 pessoas – mas ninguém sabia ao certo.

O cerco israelense cada vez mais apertado de Jabalia e várias outras partes do norte de Gaza — imposto por tanques e tropas terrestres — significou que equipes de defesa civil e médicos não puderam vir para resgatar aqueles presos sob os escombros. Nenhum repórter conseguiu ir, além de al-Sharif, que mora perto. “Nenhuma defesa civil, nenhuma cobertura, nada além de morte e destruição”, ele disse em um vídeo da rua silenciosa e escura. “Ninguém está vindo para salvá-los.”


Vários dias depois, ainda não há relatos oficiais ou abrangentes dos ataques em al-Hawaja, uma situação que se repete no norte de Gaza, à medida que o movimento e a comunicação se tornam cada vez mais difíceis após quatro semanas de uma nova ofensiva israelense na área.

Israel tem bloqueado rotineiramente as redes telefônicas e de internet de Gaza durante sua campanha de um ano contra o Hamas, desencadeada pelo ataque do grupo militante palestino em 7 de outubro de 2023. As redes também ficam rotineiramente offline devido a danos à infraestrutura ou à falta de eletricidade e combustível para os geradores.

No entanto, civis, humanitários, médicos e profissionais da mídia no norte de Gaza dizem que o problema está piorando, afetando os esforços de salvamento feitos por equipes de resgate e médicos, bem como a capacidade dos jornalistas de relatar as notícias.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Pensamento do Dia

 


Lula e eu estamos na idade da queda

Lula caiu no banheiro, cortou a cabeça e, em algumas horas, já estava apto para as tarefas cotidianas. Ele pratica musculação, caminha com regularidade, e sua dieta deve ser orientada por nutricionista. Nem todos os idosos, no entanto, têm a mesma sorte quando sofrem um acidente doméstico.

Estou lendo um belo livro da escritora portuguesa Lídia Jorge. Chama-se “Misericórdia” e se passa dentro de uma casa de repouso, chamada Hotel Paraíso. São precisamente 70 internos. Quando morre um, há nova admissão.

A narradora, que usa cadeira de rodas, ficou chocada quando uma recém-admitida descreveu sua queda. Era idêntica à que sofrera:

— Era demasiado semelhante ao que havia me acontecido três anos atrás, quando caí junto da porta de entrada e lá estive várias horas deitada de bruços, e o vizinho da Villa Sol me foi levantar do chão.

Havia sido como se os pulsos feridos tivessem aberto a decadência:

— Duas portas por onde a derrocada se infiltrava sem regresso.


O que é descrito no romance de Lídia Jorge costuma acontecer na realidade. Muitas vezes, a queda, dependendo da gravidade, pode ser o ponto de partida para uma decadência irreversível.

No meu tempo de redação, designaria um repórter para pesquisar a queda em idosos e aproveitaria a história do presidente para tornar o tema um pouco mais popular. Mas por que não fazer eu mesmo o trabalho? Lembro-me de que há uns dez anos sofri uma queda no banheiro de um hotel em Porto Velho. Não reparei no degrau e caí de costas. Senti dores incríveis por muitas noites e trabalhei no sacrifício, a câmera parecia uma peça de chumbo.

Os idosos muitas vezes têm problemas de equilíbrio, déficit de visão. Nesse caso, a casa torna-se uma perigosa armadilha. Precisa ser revista em todos os cômodos: tapetes enrolados, cadeiras sem braço, móveis ameaçadores. O banheiro, então, é um espaço escorregadio, e é preciso instalar barras para que se apoiem.

Segundo um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), 40% das pessoas com mais de 80 anos sofrem quedas. A situação é um pouco melhor entre os de 70 anos, mas não muito: 32% sofrem quedas.

Quando se olham os números mais amplos do SUS, observa-se que o custo de internação de idosos por queda é bastante alto. Pouco mais de 1,5 milhão de casos no país custaram quase R$ 2,5 bilhões ao sistema.

É um problema mundial, como mostra o próprio relatório da OMS. É preciso atacar os fatores ambientais, como os que mencionei, a casa como uma espécie de armadilha, mas também os fatores comportamentais, como exercícios leves, boa nutrição e sono, além da supressão de tabaco e álcool.

A queda é considerada a terceira causa de morte entre os idosos. No Brasil, o número de óbitos praticamente dobrou entre 2013 e 2022. Eram 4.816, passaram para 9.592. Esse aumento acontece porque a população está envelhecendo, mas também porque a subnotificação caiu. Os fatores que determinam as quedas são os mesmos: perda da massa muscular, problemas de equilíbrio, visão precária. É preciso acrescentar que não há grande debate sobre políticas públicas que atenuem o problema.

A queda do presidente, pelo menos, ensejou uma crônica, mas quem sabe o Ministério da Saúde não aproveita a oportunidade para fazer uma campanha?

Na ausência de políticas públicas, a própria família precisa ampliar sua atenção. Quando as condições físicas decaem com as cognitivas, a situação torna-se mais delicada. Não só caímos da nossa própria altura, como podemos cair da cama. Poucos se dão conta das inúmeras possibilidades de queda, embora saibamos que, para cair, basta estar de pé.

Talvez o Brasil subestime esses temas porque sempre se considerou um país de jovens e não percebeu que a realidade já não permite mais essa ilusão.

A guerra


A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como todo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

O grau menos zero da política

People Have the Power, cantava Patti Smith em 1988, altura em que não havia dúvida quanto a quem eram as pessoas e, sobretudo, a que se referia quando falava de poder.

Hoje começamos a ter fundadas dúvidas em relação a este “povo” e à sua capacidade de, no meio de tantas ações de marketing, informação, desinformação, Inteligência Artificial e outras manobras cibernéticas, ser quem mais ordena.

Quando Ray Bradbury escreveu Fahrenheit 451, mal sabia quão perto estava da realidade, ao falar da Tirania da Minoria.

A sua distopia parecia ser algo longínquo, quase improvável e no entanto assistimos nos últimos tempos a uma verdadeira manipulação das massas por minorias com agendas próprias, subordinadas a interesses económicos globais, ou, como no caso português mais à nossa escala, interesses meramente individuais ou corporativos quanto baste.


Assumir que é possível manipular eleições através das redes sociais, da contra informação ou até da IA, deveria deixar-nos aterrorizados porquanto o que pensávamos ser um objectivo alcançado – uma pessoa , um voto, uma vontade – é a utopia vigente.

Deveria obrigar-nos a repensar o modelo e o modo de nos organizarmos enquanto sociedade. Mas a realidade é que vivemos um tempo sem lideres!

Um tempo em que o poder acaba nas mãos de senhores da guerra, grupos económicos, religiosos que nada têm a ver com política, na verdadeira acessão do termo, na fórmula que Aristóteles enunciou.

Talvez tenhamos já remetido a noção de “política” e de “ políticos” para o reduto dos mitos, onde unicórnios não são mais cavalos alados mas grandes e novas empresas surgidas em tempo record.

Talvez sejamos apenas meia dúzia de velhos do Restelo a chamar a atenção para que a República vai completamente nua e nem o cabelo lhe tapa as “ vergonhas”. Antes as exibe como troféu.

Talvez…

Mas onde iremos parar com um Mundo sem estadistas, sem projectos humanistas e colectivos? Onde iremos parar quando se recrutam dirigentes ao mais alto nível nas fileiras das mocidades partidárias, transvestidas de agências de emprego garantido? Onde iremos parar sem vozes com peso, com um passado, com visão de futuro abrangente?

Temo bem que, no caso português e com a nossa tendência ancestral de importar as modas “ lá de fora” acabemos como os EUA.

A duas semanas das eleições mais importantes para o chamado Mundo Livre (?) e quando pensamos que já vimos tudo, eis que alguém tem a ideia fantástica de comprar, sem pejo ou subterfugio, o voto do eleitor comum.

Numa Roda da Sorte eleitoral, sorteia-se um milhão de dólares. É esse om preço da cidadania, da consciência política, do voto que custou sangue e lágrimas para se tornar universal. Um milhão de dólares é muito dinheiro! E se cada homem tem um preço, caso a moda pegue , por cá, e com a crise económica que vivemos desde os tempos de D. Afonso Henriques, a coisa é capaz de se fazer por cem mil euros e alguns trocos.

Está claro que dentro da cabinete de voto a decisão é de cada um e não é possível controlar se de facto o milhão foi ou não bem empegue.

Bem não é possível para já, pois há até quem, a um outro nível, considere legitimo o voto por e-mail e o voto electrónico, muito embora evite a grande abstenção, pode ser perigoso caso não seja firmemente controlado!

Acho sempre imensa graça aos nossos políticos quando afirmam publicamente que em política não vale tudo. Por norma são declarações feitas após tudo ter valido num jogo político qualquer.

Mas mesmo assim e como sempre, os EUA batem-nos aos pontos e colocam a Europa e o Mundo numa jogada praticamente de xeque mate internacional.

Não morro de amores pela Kamala e não considero que o mérito seja uma questão de género ou etnia. Mas entre dois males o menor, pois que Trump será, não tenho qualquer dúvida, o carrasco que decapitará uma Europa sem liderança, sem estadistas, sem rumo.

Com Trump não tenho qualquer dúvida que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia acabará em 24 horas com a capitulação da primeira e a vitória e o alargamento territorial da segunda.

Como também não me surpreende que no Médio Oriente o conflito termine rapidamente e em força com Israel a ocupar toda a zona e a deixar uma faixa de no man’s land de forma a criar um perímetro de segurança.

Quanto à Europa que não se soube construir como alternativa e modelo de intervenção internacional, será cada vez mais irrelevante, como é já a outro nível a Organização das Nações Unidas.

O grau zero da política é aquilo a que um grande amigo meu, muito jovem, dizia há dias desgostoso e desiludido com tudo isto: Arrasar tudo e pôr galinhas.

Se calhar têm mais cérebro que alguns de nós que continuamos a picar o chão em busca duma minhoca gorda.

Por que ser máquina?

Resumos de resumos, resumos de resumos de resumos. Política? Uma coluna, duas frases, uma manchete! Depois, no ar, tudo se dissolve! A mente humana entra em turbilhão sob as mãos dos editores, exploradores, locutores de rádio, tão depressa que a centrífuga joga fora todo pensamento desnecessário, desperdiçador de tempo!

A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?

Ray Bradbury, "Fahrenheit 451"

A capa é verde, mesmo que digam que é vermelha

Uma professora de Filosofia está em frente a um anfiteatro cheio de universitários. Quando lhes mostra uma capa de cartolina e lhes pergunta de que cor é, todos respondem que é verde. A professora pede, então, aos alunos que, caso alguém chegue atrasado àquela aula e ela volte a perguntar a cor da capa, respondam que é vermelha. Pouco depois, entra um retardatário. A professora pergunta a vários alunos, um por um, de que cor é a capa. “Vermelha”, repetem, um após outro, perante o olhar incrédulo do estudante que chegou atrasado e se vai virando para trás, confuso com as respostas. Porém, quando chega a sua vez de responder, nem hesita: “É vermelha”, diz.

Na cena da série catalã Merlí, a professora usa a resposta para demonstrar a que ponto somos suscetíveis à pressão que exercem sobre nós as opiniões dos outros, “mesmo no que se refere à perceção física”. E explica como Nietzsche divide o mundo entre os que seguem os seus próprios desejos, impossíveis de dominar, e os que seguem os outros, fracos e sujeitos às vontades dos que os rodeiam.


“Não se preocupe. Este é o pão nosso de cada dia”, diz a mulher com um ar condescendente ao estudante embaraçado. “Somos muito submissos e acabamos por aceitar as ideias da maioria. Até na Alemanha, as pessoas foram capazes de acreditar no que repetia a propaganda nazi. Já dizia Kant, com toda a sua amargura, que o ser o humano é o único animal que precisa de um amo para viver”.

Na série, o aluno justifica-se, dizendo que a pergunta lhe pareceu um jogo e que se wlimitou a replicar a resposta que lhe parecia certa, tendo em conta o que tinham dito os outros. Na verdade, o maior perigo não está em quem repete, sem convicção, o que diz a maioria, embora esse seja um problema cada vez maior. O risco que enfrentamos está na forma como há cada vez mais pessoas capazes de acreditar convictamente que a capa de cartolina verde é vermelha.

O viés cognitivo é descrito como um erro de pensamento. Uma falha que ocorre quando o nosso cérebro segue um atalho, respondendo a um padrão conhecido. Vemos não o que lá está, mas o que nos parece provável que esteja, tendo em conta as nossas experiências passadas e crenças.

A forma como vemos o mundo é, em grande medida, construída a partir de vivências, mas também da valorização que fazemos dos relatos que ouvimos. Quem nos conta a história é uma parte importante de como a vamos ouvir. A autoridade que atribuímos às fontes tem também muito que ver com a forma como essas fontes validam ou não as nossas próprias conceções. E é aí que entra aquele que tem sido o maior catalisador da polarização das nossas sociedades: o insondável algoritmo.

O algoritmo traz até nós ideias com as quais acredita que vamos ter afinidade. Mas, como se move também pela capacidade de gerar reações, essas ideias são quase sempre envoltas num manto de emotividade capaz de acionar o grande motor de reação que é a indignação. E o problema é que a indignação é uma droga dura. Obriga a doses cada vez mais elevadas para gerar o mesmo efeito.

O resultado são grupos de pessoas unidas por emoções descontroladas, juntas em crenças que se vão reforçando mutuamente. Incapazes de pôr em causa a forma como pensam. Muitas vezes sem sequer ter acesso a ideias que ponham em causa a forma como pensam.

Como jornalista lido muitas vezes com isto. As pessoas assumem uma determinada versão. E eu insisto, uma e outra vez, acumulando dados, citando fontes, acrescentando descrições e imagens. É exasperantemente rara a vez em que alguém muda de opinião depois de confrontado com uma notícia escrita segundo as regras de contraditório e verificação, com fontes identificadas e elementos que a sustentam. No máximo, consigo um sorriso com reticências, que deixa no ar a dúvida e não é um sinal de adesão. E isto, claro, quando se consegue convencer um leitor a ir para lá do título, que essa é já em si uma vitória para quem escreve.

O meu trabalho é escrever que a capa de cartolina é verde. Não porque eu digo que é verde, mas porque o método jornalístico que sigo permite concluir que é verde. Não sei quantas pessoas acreditam ainda na importância de ter um jornalista a escrever que a capa de cartolina é verde. Não sei quantas estarão disponíveis para aceitar que é verde depois de ter sido induzidas a acreditar que era vermelha. Mas foi para isto que escolhi esta profissão.

Foram muitas as vezes em que escrevi que a capa de cartolina era verde e isso ajudou a aumentar o número de pessoas que a viam dessa cor. Noutras, falhei. Mas não vou desistir. A capa de cartolina é verde.

Tarcísio de Freitas, um governador inocente e sem malícia

Foi assim em 1989, na véspera do dia da primeira eleição direta para presidente em segundo turno (Collor x Lula) depois do fim da ditadura militar de 64: a polícia paulista informou que os sequestradores do empresário Abílio Diniz, recém-libertado, eram ligados ao PT, e que camisetas e cartazes do partido haviam sido encontrados no local onde Diniz esteve preso.

A notícia espalhou-se pelo país por meio de jornais e de emissoras de rádio. O ministro da Justiça desmentiu-a. Mas quanto a mentira custou a Lula em número de votos, não se sabe, nunca se soube. Como nunca se saberá quantos votos poderá ter perdido Guilherme Boulos (PSOL) com a notícia de que setores do crime organizado recomendaram o voto nele para prefeito de São Paulo.

O portador da notícia foi o governador Tarcísio de Freitas, bolsonarista de quatro costados que posa de direita civilizada. Segundo a Folha de São Paulo, ele não apresentou provas do que disse. Mas nem a Folha, nem outros veículos de comunicação, se negaram a publicá-la. A licença para ferir ou matar agora é assim: você escreve “sem apresentar provas”, e passa a notícia adiante.


Aconteceu em 2018 com o kit-gay que beneficiou Bolsonaro na reta final do segundo turno contra Fernando Haddad (PT). Não lembro de termos nos referido a ele como “suposto kit-gay”. Antes de publicar, cabe à imprensa, supostamente séria, investigar uma suposta mentira ou uma eventual verdade. O kit-gay foi uma mentira como tantas outras publicadas à época.

Deu-se crédito a supostos comunicados de facções criminosas só porque um governador de Estado os divulgou. Os ditos comunicados foram apreendidos em setembro. A justiça de São Paulo não foi informada a respeito, nem a Polícia Federal. Mas indagado sobre a existência dos comunicados sem assinatura, cuja autoria sua polícia sequer investigou, Tarcísio falou sobre eles.

O que pretendeu com isso? Favorecer seu candidato a prefeito de São Paulo e prejudicar Boulos? Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição, não precisava de tal ajuda. Estava a poucas horas de ser reeleito, e Tarcísio sabia. Diante da má repercussão do seu gesto, Tarcísio disse que lhe faltou “malícia”, “experiência” e desculpou-se. Tadinho dele. Aprendendo com as lições que a vida lhe oferece.

O que fará a justiça? Nada, ora. Quanto aos habituais cúmplices de mentiras que caracterizam abuso de poder entre outros crimes, esses dirão, como já começaram a dizer desde ontem para salvar a própria face, que terá sido algo “muito grave” caso se confirme que a manobra sórdida de Tarcísio teve o claro propósito de influir nos resultados da eleição. Como se prova uma intenção?

Viva, pois, a democracia, a imprensa responsável, a justiça que se finge de cega quando lhe é conveniente e o direito à mentira assegurado pela Constituição.

domingo, 27 de outubro de 2024

Pensamento do Dia

 


Crimes de guerra em Gaza

Salvação

Quando as últimas moléculas de liberdade se escondiam na poesia, as pessoas sufocadas pela repressão procuravam-nas, encontravam-nas e respiravam-nas para sobreviver

Ana Blandiana, poeta premiada com o Princesa de Astúrias

A liberdade afetiva das escravizadas

A preta Umbelina não saía de casa fazia quase um ano. João, escravizado pelo padre Oliveira, alimentava pelas ruas da cidade gaúcha de Cachoeiro do Sul o boato de assassiná-la. Vingaria sua honra ferida, mesmo que sua vida findasse na forca. No dia 19 de dezembro de 1851, Umbelina foi buscar um barril de água na fonte. Embalava medo. Em frente à marcenaria deu-se o encontro. João a agrediu. Umbelina caiu atordoada. O homem fugiu.

O motivo da violência: Umbelina rejeitou João e terminou a relação. Tinha um novo amor. O escravizado amargurado tentou reconquistá-la com presentes e dinheiro. Nova recusa e uma acusação, a mulher deduziu que os regalos eram roubados. João contou para todos que Umbelina aceitou o dinheiro e juntou-se com outro. O conflito foi parar na Justiça.

Como se desenrolavam as relações amorosas entre escravizados? Nossa primeira resposta vem do artigo “Mulheres escravizadas e relacionamentos afetivos: pensando projetos amorosos e as masculinidades negras a partir da interseccionalidade”, de Marina Camilo Haack, doutora em História Social na USP, publicada na Revista Em tempo De Histórias, da Unb (Universidade de Brasília).

O tema gênero e escravidão vem ganhando cada vez mais espaço na pós-graduação. A intenção é desfazer estereótipos, preconceitos e dar nitidez às imagens das mulheres no período, enxergando resistências e acordos, sem jamais esquecer o contexto de violência e exploração de seus corpos.

Além dos serviços domésticos, algumas escravizadas tinham o direito à rua, fazendo compras ou trabalhando em quitandas, lavando as roupas nos rios. Essa certa mobilidade oferecia os perigos dos abusos sexuais e roubos, mas permitia a presença em diferentes espaços, “possibilitou firmar parcerias, laços de amizade e solidariedades que ultrapassavam os limites da propriedade, ter parceiros afetivos, sexuais e desenvolver relações mais “simétricas”. Assim, algumas mulheres conseguiam escolher seus parceiros. Assim, construiu-se o estereótipo supersexualizado da mulher negra, já que essa liberdade era inaceitável para a “honra” do branco europeu e seus casamentos arranjados entre famílias.

O trabalho de Haack utiliza processos criminais como fonte de pesquisa. Entre mortes e agressões em uma sociedade patriarcal, tenta encontrar pistas das teias afetivas dessas mulheres. Os crimes passionais entre escravizados estavam relacionados às rupturas de relacionamentos ou na defesa da vida da parceira(o).

Indignada com as ameaças a Umbelina, no dia 22 de dezembro de 1851 a escravizadora Inocência Maria Pacheco entregou uma petição ao delegado municipal de Cachoeiro do Sul. Por empatia ou sororidade? Pelo prejuízo. Por causa de João, não podia utilizar os serviços da preta adequadamente. A sentença foi de 100 açoites. Com a atuação de um advogado e do padre, a pena diminuiu para 20 açoites e um ferro atado ao pescoço por um mês.