sexta-feira, 28 de junho de 2024

Viva a Idade Média!

Pesquisando na internet, é possível encontrar notícias como as reproduzidas abaixo:

"Brasil registra 1.463 feminicídios em 2023. Ou seja, cerca de um caso a cada seis horas, representando uma alta de 1,6% em relação a 2022. Em 18 estados, a taxa de feminicídios ficou acima da média nacional, de 1,4 morte para cada 100 mil mulheres. Entre 2015 e 2023, quase 10,7 mil mulheres foram vítimas. Esse é o maior número registrado desde que a lei contra feminicídio foi criada, em 2015, segundo o relatório publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)."

"Atlas da Violência indica que uma mulher sofre violência sexual no país a cada 46 minutos, sendo vítimas mais frequentes as que têm de 10 a 14 anos de idade. Mostra também que mais de 144 mil mulheres foram vítimas de algum tipo de agressão em 2022, sendo os homens os principais agressores."

"Segundo dados da sétima edição do Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), em 2023, houve 155 mortes de pessoas trans no Brasil, sendo 145 casos de assassinatos e 10 que cometeram suicídio após sofrer violências ou devido à invisibilidade trans. O número de assassinatos aumentou 10,7%, em relação a 2022, quando houve 131 casos."


Essas manchetes revelam crimes bárbaros, mas o impressionante é ver que diversos setores da sociedade brasileira acham isso aceitável. Aliás, é comum vermos manifestações públicas nas redes sociais de pessoas colocando a culpa na vítima, proferindo afirmações do tipo: "Também, quem mandou ela estar vestida assim?", ou "Deus criou o homem e a mulher. O resto é aberração", ou ainda aquela célebre frase "Menina veste rosa e menino veste azul", dita por uma ex-ministra do governo passado.

É um comportamento típico de quem não aceita a diversidade e a liberdade de cada pessoa escolher o que quer ser para viver feliz. Por elas, regras e costumes considerados normais em períodos como, por exemplo, a Idade Média deveriam voltar a prevalecer. Nesse sentido, vale o registro da notícia abaixo:

"O líder supremo do Talibã, Hibatullah Akhundzada, anunciou que o grupo começará a aplicar a sua interpretação da lei sharia no Afeganistão, incluindo a reintrodução da flagelação pública e do apedrejamento de mulheres por adultério. 'Vamos açoitar as mulheres, apedrejá-las até a morte. Vocês podem chamar isso de violação dos direitos das mulheres porque eles entram em conflito com seus princípios democráticos, mas eu represento Alá, e você representa satanás.'"

Os talibãs têm como premissa que mulher é um ser inferior, que deve obediência ao homem. Infelizmente, há muita gente em nosso país que concorda. Não custa nada lembrar que, até 1962, as mulheres casadas só podiam trabalhar fora, abrir conta no banco, ter estabelecimento comercial ou mesmo viajar se o marido permitisse. E a autorização poderia ser revogada a qualquer momento, de acordo com o que previa o Código Civil de 1916. E que, somente em março do ano passado, entrou em vigor a Lei n° 14.443/2022 que dispensa o consentimento do cônjuge para autorizar a laqueadura em mulheres.

Inconformados com esses avanços, aqueles que podemos chamar de os talibãs brasileiros conseguiram aprovar a urgência para a votação do PL 1.904/2024 que equipara aborto após 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio, estabelecendo uma pena muito maior para a mulher vítima do estupro do que para o estuprador. Não custa lembrar que, caso aprovado, revogaria legislação vigente desde 1940.

Porém, para surpresa dos apoiadores, a revolta da sociedade e da opinião pública obrigou o presidente da Câmara dos Deputados a adiar a votação e decidir que será criada uma comissão para debater melhor o projeto. E tudo indica que será engavetado.

Entretanto, esses segmentos que tiveram muito apoio governamental no período de 2019 a 2022, não vão simplesmente desistir de suas pautas. A permanente ofensiva contra as mulheres e a população LGBTQIAP precisa ser respondida por quem acredita em uma sociedade apoiada nos princípios do respeito à diversidade e à liberdade de culto, bem como do combate ao racismo e a todas as formas de preconceito.

Hoje, comemoramos o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP . Infelizmente, neste ano, não temos mais a companhia de dois ativistas dessa causa que fizeram a diferença: Jobson Camargo e Eliseu Neto. A eles dedico minha coluna.

Democracia

Para que uma organização democrática exista é preciso que haja equilíbrio de poder entre os seus membros. Uma organização democrática entre lobos e cordeiros jamais poderia existir, ainda que os cordeiros fossem em número maior que os lobos, sempre ganhassem as votações e estivessem sempre com a razão. É hora de recontar a fábula do lobo e do cordeiro, porque ela nos ajuda a compreender o momento. “Estavam o lobo e o cordeiro a beber num riachinho, quando o lobo assim falou ao cordeiro: ‘Por que sujas a água que estou bebendo?’. Retrucou o cordeiro: ‘Como posso eu sujar a água que o senhor está bebendo se sou eu que estou abaixo na correnteza? A água passa primeiro pelo senhor e só depois chega a mim...’. O lobo não se alterou com as evidências. ‘Sim, de fato. Mas você sujou a minha água no ano passado’, disse o lobo. Respondeu o cordeiro: ‘Isso não pode ser, senhor lobo, pois tenho apenas seis meses. Não havia ainda nascido no ano passado’. O lobo arreganhou os dentes e gritou: ‘Se não foi você foi o seu pai’. E devorou o cordeiro...” Uma sociedade democrática entre os lobos é possível porque existe equilíbrio de poder entre os lobos. Uma sociedade democrática entre cordeiros é possível porque existe equilíbrio de poder entre os cordeiros. Mas não é possível uma sociedade democrática onde haja lobos e cordeiros. Os lobos sempre devorarão os cordeiros…

Rubem Alves, "Ostra feliz não faz pérola"

Mudança climática: o apocalipse mais caro da história

Ninguém esperava que o fim do mundo fosse custar tão caro. A Bloomberg publicou que será necessário investir US$ 226 trilhões até 2050 para desaquecer o clima sem esfriar os negócios no novo normal do planeta. Sem esse investimento o prejuízo total dos mercados será de US$2,3 quatrilhões ainda neste século.

Já a revista The Economist prevê que as mudanças climáticas custarão apenas ao setor de habitação cerca de US$25 trilhões até 2050. A grana vai sair do bolso dos proprietários: reformas, seguros mais caros, deflação dos preços em áreas vulneráveis ou mesmo com a destruição do imóvel.

Pelo ângulo social, a mudança climática poderá incluir mais 3 bilhões de pessoas na linha de pobreza, segundo o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Ilan Goldfagn.

O novo apocalipse conta com o auxílio luxuoso da economia global e seus consumidores. Quem não emite diretamente os gases efeito estufa em grande escala acaba consumindo os produtos dos emissores. Esse casamento entre a ânsia de lucrar e a obsessão de consumir tem caráter insaciável e inadiável.

O que dificulta qualquer questionamento das consequências ambientais ou sociais desse modelo são as sacrossantas Leis de Mercado, Liberdades Individuais e Livre Iniciativa (“direitos” tão sagrados que superam até os instintos básicos de sobrevivência e de comunidade).


Todo esse lucro e esse consumo são financiados pela degradação ambiental que não é contabilizada nos custos, nos juros nem nos preços, causando uma ilusão negligente de que a depredação dos recursos naturais e o desequilíbrio dos sistemas climáticos vai sair de graça para a humanidade.

É justamente aqui que está a impossibilidade de se responder a pergunta crucial da história humana: quem vai pagar a conta do estrago climático? Não haverá resposta enquanto a legitimidade intocável daquelas Leis da economia moderna estiver tão naturalizada nas mentes dos indivíduos, empresas e governos que, na falta de culpados, ninguém assuma responsabilidades.

Sem responsáveis, os prejuízos serão de todos. Tampouco se sabe quem pode coordenar esse debate. A ONU já não consegue se afirmar como governança superior capaz de influenciar decisões, mediar interesses e apontar estratégias. Resta ao seu Secretário-Geral António Guterres alertar que “mesmo se o mundo parar hoje totalmente de emitir gases efeito estufa, levaria décadas para dissipar a disrupção climática já produzida”.

Como nada está tão ruim que não possa piorar, a insegurança geopolítica causada pela guerra da Ucrânia e as tensões crescentes na Ásia e Oriente Médio esfriaram o ânimo das nações desenvolvidas para as tratativas sobre a transição energética e descarbonização. Na contramão, os investimentos em energia não renovável e em armamentos voltaram a níveis preocupantes. A renomada Deloitte também faz suas estimativas: “Até 2070 as perdas globais com a mudança climática totalizarão US$178 trilhões”.

Nesse cenário, despencou o valor financeiro destinado à cooperação internacional dos países ricos para os países pobres (pactuado na COP26), destinado à contenção e à adaptação às mudanças climáticas.

Por outro lado, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) chama a atenção para a oportunidade ainda rentável de se investir US$6,3 trilhões por ano até 2030 em infraestruturas adaptadas à mudança climaática que podem aumentar a resiliência da economia, especialmente nos países em desenvolvimento.

Seja qual for o cálculo, a mudança climática é o melhor exemplo de um “barato que custou caro”.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Orgulho não tem tempo

Os teólogos há muito o notaram: a esperança é o fruto da paciência. Deveríamos acrescentar: e da modéstia. O orgulhoso não tem tempo de esperar… Sem querer nem poder estar à espera, força os acontecimentos, como força a sua natureza; amargo, corrompido, quando esgota as suas revoltas, abdica: para ele, não há qualquer forma intermédia. É inegável que é lúcido; mas não esqueçamos que a lucidez é própria daqueles que, por incapacidade de amar, se dessolidarizam tanto dos outros como de si próprios.
Emil Ciorán

A tornozeleira e a vida social

Os acusados pelo 8/1, respondendo no conforto do lar aos crimes que cometeram em Brasília, não estão satisfeitos com essa condição. E com razão. A tornozeleira eletrônica que são obrigados a usar restringe sua vida social. Dependendo da hora, impede-os de prestigiar rodeios, cultos evangélicos e shows de cantores sertanejos. Além disso, ela é difícil de acomodar dentro das botas de vaqueiro. E a proibição de se comunicarem com seus aliados golpistas é mais um suplício —se não puderem conversar com outros bolsonaristas, vão conversar com quem?


Daí, para muitos, só havia uma coisa a fazer: quebrar a tornozeleira —há vídeos no YouTube e no TikTok ensinando— e fugir, de preferência para a Argentina, cujo novo presidente é um libertário. Para evitar o controle de fronteiras, acharam rotas e transportes alternativos, como caminhões por estradas vicinais, travessia de rios em barcos clandestinos e até deslocamentos a pé por centenas de quilômetros. Tudo pela liberdade.

Foi o que declarou outro dia uma foragida já a salvo em Buenos Aires: "A gente não pode ter o pensamento contrário ao do governo que está no poder. Deixei tudo para trás e fui buscar minha liberdade", disse ela. E um advogado da Associação de Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro —sim, existe, e funcionando legalmente— foi taxativo: "A liberdade é um direito assegurado em tratados internacionais e na Constituição". Significa que Drácula e Jack, o Estripador, se precisassem, viveriam aberta e livremente no Brasil.

Nos anos 1960 e 70, também não se podia pensar diferente do governo e muitos brasileiros tiveram de fugir para outros países. Não porque quisessem, mas era o único jeito de escapar da tortura nos cárceres e quartéis, às vezes só interrompida pelo "suicídio" ou por suas "fugas" e fuzilamento por "resistência à prisão".

Não tinha essa moleza de tornozeleira, não.

Bibliotecas secretas

Já é conhecido o poder econômico das empresas tecnológicas mastodônticas que revolucionaram o nosso tempo, as chamadas big techs. Na semana passada, tivemos mais uma prova de sua magnitude pecuniária: circulou a notícia de que a Nvidia – detentora de mais de 70% do mercado global de chips para inteligência artificial – conquistou o alto do pódio, a posição de mais valiosa do mundo, com um preço de US$ 3,33 trilhões. A Microsoft, dona do Windows, foi desbancada para o segundo lugar – vale “apenas” US$ 3,32 trilhões. Em terceiro segue a Apple, avaliada em US$ 3,21 trilhões. As três juntas somam uma cifra intergaláctica, que dá mais ou menos cinco vezes o PIB de um país do tamanho do Brasil.


É também conhecido o poder político dessas gigantes do capitalismo. Trata-se de uma força imperial que vem do alto, como a das divindades. Elon Musk, proprietário da SpaceX, da Tesla e do X (exTwitter), costuma desfilar por aí e por aqui rodeado por um séquito de tietes da extrema direita, incensado como santo profeta. Nas outras big techs, os sintomas de prepotência são iguais. Em maio do ano passado, a seção brasileira do Google

publicou em sua página inicial um link para um texto que fazia campanha contra a aprovação do Projeto de Lei 2.630, o PL das Fake News. Foi um choque. Muita gente, incrédula, se perguntava: como é que pode um site de buscas estrangeiro, que sempre jurou ser apartidário, respeitoso e isento, tentar encabrestar desse jeito a opinião pública de um país soberano?

Pois é, como pode? Muito simples: não pode. Ou não poderia. Tanto não poderia que, quase um ano depois, no final de janeiro de 2024, a Polícia Federal enviou ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o relatório com suas conclusões sobre o caso. Segundo o relatório, o Google incorreu em “abuso de poder econômico”. Diagnóstico preciso.

Preciso e desolador. Os conglomerados monopolistas globais fazem jus à fama de trilionários e poderosíssimos. Barbarizam em toda parte, como se flutuassem acima da lei – acima do alcance da lei. Quando estão na China, é verdade, posam de subservientes, mas, no resto do planeta, chutam a porta sem se incomodar com as boas maneiras. Tratam as tentativas de regulação como incômodos incidentais que vêm de baixo. Olham para a autoridade pública do mesmo modo que o playboy filhinho-de-papai olha para o guarda de trânsito que tenta multá-lo por excesso de velocidade.

E isso não é tudo. Aliás, isso não é nem o principal. A riqueza desmesurada e a estonteante máquina de propaganda não são as características centrais desses colossos da era digital. O que os coloca acima de todas as outras organizações, públicas ou privadas, é o saber técnico que acumulam a portas fechadas, entre quatro paredes de titânio. Nisso – mais do que no dinheiro sem limites e na capacidade de manipulação ideológica – reside a maior ameaça que eles representam para o mundo democrático. Esses bunkers inexpugnáveis abrigam um saber proprietário, privativo e blindado que é só deles e de mais ninguém.

O termo “saber”, aqui, não significa “sabedoria”. Não existe sapiência dentro desses bunkers, longe disso. Não existe cultura. A Meta – controladora do Facebook, do WhatsApp e do Instagram – e suas concorrentes, que lucram espalhando ignorância artificial, obscurantismo e atrações viciantes, não são templos de conhecimento ou de iluminação. São o oposto disso. O que elas concentram em seus escaninhos de silício não é a elevação do espírito, mas a técnica desumanizada, fria, num grau de matematização cibernética que mal imaginamos. Elas armazenam fórmulas e equações complexas que pavimentam a expansão da inteligência artificial, a ferramenta mais assombrosa jamais forjada pelo engenho humano e cada vez mais direcionada contra o talento humano.

As novas bibliotecas secretas, instaladas nas nervuras mais íntimas das big techs, não são mais como aquelas que atravessaram a Idade Média, hospedadas em mosteiros, conventos e abadias. O scriptorium monacal não se abria, jamais, a leitores vindos de fora da Igreja. Lá dentro, os códices e manuscritos conservavam a memória filosófica e teológica da antiguidade em sigilo absoluto. As ideias do passado repousavam em estantes labirínticas, isoladas do mundo secular e tratadas como substâncias perigosas, que não podiam entrar em contato com o presente para não perturbar o status quo.

O que as bibliotecas secretas de hoje têm em comum com suas precursoras medievais é apenas o regime de segredo. No mais, são diferentes. O que elas ocultam não é o pensamento dos antigos, mas os softwares e algoritmos que programam o que virá – à revelia da sociedade. Nenhuma autoridade pública tem meios de examinar seus arquivos. As instituições democráticas não sabem o que elas pesquisam, testam e realizam. As agências reguladoras não conseguem inspecioná-las. As bibliotecas secretas da Idade Média nos sonegavam o passado. As do século 21 nos sequestraram o futuro.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Alta produtividade


O mal nunca prospera melhor do que quando lhe põem um ideal à frente
Karl Kraus


As causas do fogo no Pantanal

"O Pantanal está secando. Literalmente secando”, diz o engenheiro florestal e ambientalista Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas. São várias as razões, todas ligadas ao desmatamento e à conversão de áreas para a agricultura e pecuária. Estamos longe do período em que geralmente há incêndio, o normal é que seja lá para agosto ou setembro. Por que está batendo recorde de focos de calor antes da época? Porque este ano não teve cheia. O regime de águas no bioma das águas está mudando. Isso está conectado com o que acontece em outros biomas.


O MapBiomas monitora tudo o que ocorre em todos os biomas brasileiros, e tem um banco de dados que recua até 1985. Está preparando um relatório sobre a superfície das águas, que deve ser divulgado hoje, com a informação de que a cobertura de água no bioma está 61% abaixo da média histórica. O que está destruindo o Pantanal é a união explosiva de três eventos predatórios:

—A corrente de água que vem da Amazônia, os chamados rios voadores, está diminuindo por causa do desmatamento na região. Outro problema é que no planalto, no entorno do Pantanal, muitas áreas estão sendo convertidas em pastagem ou em campos de soja. E isso aumentou muito o assoreamento da Bacia do Paraguai, porque está vindo muito sedimento. Tanto que o Pantanal está ficando mais raso. E tem um terceiro problema que é a destruição do pasto natural para ser substituído pelo pasto plantado — diz Tasso.

O desmatamento da Amazônia faz chover menos no Pantanal. A destruição do Cerrado, no entorno do Pantanal, pela pecuária e para a produção de soja, afeta os rios da Bacia do Alto Paraguai. O pasto do bioma, que tem um ritmo natural, é retirado para dar lugar ao capim plantado exótico, que tem outro regime totalmente diferente. É assim que o país está destruindo o Pantanal.

— O pasto no Pantanal nativo alaga e depois desalaga, por isso os bois se moviam tanto, no tradicional pastoreio em caravanas — explica.

O engenheiro agrônomo Eduardo Reis Rosa, coordenador do bioma Pantanal no MapBiomas, explica que a especulação imobiliária tem gerado essa troca do pasto nativo pelo pasto plantado com capim exótico.

—O cara vai lá e compra uma propriedade com vegetação natural. Desmata, ganha dinheiro com o desmatamento. Coloca uma pastagem degradada, exótica, mal manejada. Depois vende a propriedade por quatro vezes mais porque a área é declarada como produtiva. Então, ele vai para outra área de vegetação nativa para fazer o mesmo — diz Rosa.

Todo esse desmatamento, essa destruição da vegetação nativa própria de área alagada, e substituição por capim plantado não é ilegal. Nessa região, os proprietários têm autorização para desmatar 80% da área, segundo Rosa.

No planalto do entorno há cidades que são campeãs de desmatamento, como Rondonópolis, área agrícola forte, ou Cuiabá e Campo Grande, que são outra pressão contra o bioma. O que os especialistas explicam é que toda a Bacia do Alto Paraguai está sofrendo os efeitos do desmatamento.

O governo reuniu ontem a Sala da Situação, na Casa Civil, com 19 ministérios, para saber como agir. O governador do Mato Grosso do Sul decretou emergência nos 24 municípios afetados pela estiagem. Neste mês de junho, o número de queimadas está batendo recorde e existem 627 mil hectares destruídos pelo fogo. A região de Corumbá está ardendo há vinte dias. O dramático é tudo acontecer, nesse nível de gravidade, sem ter entrado ainda na temporada de secas.

Tudo está conectado, o que acontece no Cerrado e na Amazônia seca o Pantanal. Mas há mais ligação entre áreas do Brasil do que se imagina.

— Essa falta de água explica muito a chuva no Rio Grande do Sul. A seca e o calor na Região Sudeste fizeram com que a chuva ficasse aprisionada no Sul. Tem mais água vindo do Sul porque o oceano está mais quente do que nunca, e, com isso, evapora mais água. Aí tem mais água na atmosfera e ela não consegue vir para os outros estados, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Minas Gerais, sul da Bahia. Ao invés de chover nesses estados, choveu tudo no Rio Grande do Sul — explicou Tasso.

A proteção ambiental tem que ser em todos os biomas, porque o efeito de um sobre o outro mostra que eles são interdependentes. É uma só natureza. Ela não tem fronteiras.

Brasil está secando, aponta Mapbiomas

Em 2023, o território do Brasil ficou um pouco mais seco. Em todos os meses do ano, inclusive durante a temporada de chuvas, a superfície de água encolheu, aponta levantamento divulgado nesta quarta-feira pela organização não-governamental MapBiomas, uma rede que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia e que realiza estudos para monitorar mudanças na cobertura e no uso da terra.

A perda registrada no ano passado foi de 3% em comparação com 2022. É como se a água esparramada sobre 5.700 km² tivesse evaporado – o equivalente a cinco vezes a cidade de São Paulo.

Desde 1985, início do período analisado pelo Mapbiomas, a tendência observada no país é de declínio. Especificamente em 2023, a redução foi de 1,5% em relação à média histórica. Atualmente, a água cobre 183.000 km² do território brasileiro, o que corresponde a 2% do total.

"A tendência geral é de perda de água. A explicação para esse cenário é complexa e se deve a vários fatores como mudança nos padrões de precipitação, aumento de temperatura, verões mais quentes e mais longos, mudanças no uso do solo", afirma à DW Juliano Schirmbeck, coordenador técnico do Mapbiomas Água.
Extremos de Norte a Sul


O impacto dos eventos climáticos extremos de 2023 é um dos destaques preocupantes da coleção de dados. A Amazônia, por exemplo, iniciou aquele ano com superfície de água acima da média histórica e, meses depois, o bioma enfrentou uma seca sem precedentes. O rio Negro registrou o menor índice desde que seu nível começou a ser acompanhado, há 100 anos.

O Pampa, do lado oposto do Brasil, iniciou os primeiros quatro meses de 2023 na fase mais seca de sua série histórica. Em setembro, chuvas intensas começaram a ocorrer no Sul e provocaram inundações, deixando milhares de desabrigados e dezenas de mortos. "A chuva caiu principalmente em cidades que estão dentro do bioma Mata Atlântica, mas a água escorreu para o Pampa e fez com que aumentasse a disponibilidade", detalha Schirmbeck.

A era dos extremos impulsionados pelas mudanças climáticas, analisa o pesquisador, se mostrou com bastante clareza no ano que passou. "Há anos escutamos dos cientistas que as mudanças climáticas provocariam eventos extremos mais graves e com maior frequência. Isso foi visto nos extremos geográficos do Brasil", comenta o coordenador da série do Mapbiomas.

Proporcionalmente, o Pantanal foi o bioma que mais secou desde 1985. Em 2023, a superfície de água anual registrada ficou em 3.820 km², o que representou uma redução de 61% em relação à média histórica. Além da diminuição da área alagada, o tempo em que este terreno fica submerso também caiu.

"O Pantanal é uma das maiores áreas úmidas do mundo e está sob preocupação especial. A superfície de água anual, que permanece pelo menos seis meses, caiu drasticamente, é a maior redução desde 1985", pontua Schirmbeck.

Há quatro décadas, o Pantanal contava com mais de 65% de vegetação nativa em seu entorno. Atualmente, não passa de 40%. Muitos desses pontos concentram nascentes – que ajudam a inundar o terreno – , exatamente por onde avança a fronteira agrícola.

Com o bioma mais seco, a temporada de incêndios começou precocemente neste ano e coloca à prova a sua resiliência. Nas duas primeiras semanas de junho, o número de focos de calor é quase 700% maior que o mesmo período de 2020, o ano da pior crise do fogo até então.

A maior parte dos focos se concentra no município de Corumbá, Mato Grosso do Sul, onde também foi registrada, em 2023, a maior perda de superfície de água proporcional, com redução de 53% em comparação com a média histórica.

Já a superfície de água na Mata Atlântica cresceu, ficando 3% acima da média histórica. Diversas localidades no bioma registraram altos níveis de precipitação com inundações em áreas agrícolas e deslizamentos.

No Cerrado e na Caatinga, a disponibilidade superficial da água também aumentou. Isso pode ser explicado pela criação de reservatórios e hidrelétricas ao longo do tempo. Atualmente, 23% de toda água disponível no país se concentra em áreas construídas de armazenamento – a maioria está na Mata Atlântica.

Por outro lado, a situação é diferente quando se analisam os corpos hídricos naturais: sua superfície encolheu 30,8% em 2023 em relação a 1985. Metade das bacias hidrográficas do país estavam abaixo da média no ano passado.

"No Brasil, o ambiente natural está secando. O ganho de superfície é no ambiente antrópico, construído pelo homem. Isso vai na contramão das soluções associadas à água recomendadas num clima em mudança", afirma Schirmbeck, referindo-se a soluções baseadas na natureza como cidades-esponjas e preservação de áreas úmidas.

Essas estratégias permitem o armazenamento de água da chuva no solo que, aos poucos, escorre para os rios. Elas ajudam também a evitar enchentes nas grandes cidades, como as que ocorreram no fim de abril e começo de maio no Rio Grande do Sul.

Os dados do Mapbiomas Água usam como base as imagens do satélite Landsat 5. Ele faz parte de um programa da agência espacial americana Nasa e integra a rede de observação mais contínua de toda a Terra. Embora a antena do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) capte desde a década de 1970 as imagens do Landsat, a cobertura do território brasileiro de forma sistematizada se deu a partir de 1985.

Morador de Roca Sales, no Rio Grande do Sul, Schirmbeck precisou se refugiar em Belém, Pará, para finalizar a pesquisa sobre o cenário de 2023. Ele deixou a cidade gaúcha em 10 de maio depois das enchentes recordes atingirem duramente o cotidiano da família.

A casa construída em 1944 onde moravam os pais do pesquisador foi alagada. O casal de idosos foi retirado pelo telhado numa madrugada. A residência onde vivia com a esposa e a filha, de cinco anos, ficou isolada devido a um deslizamento de terra e perdeu a conexão com a rede de energia elétrica.

"Eu também virei um refugiado climático. Tudo o que estamos registrando é um alerta para repensarmos urgentemente a nossa relação com o meio ambiente, para darmos importância aos estudos científicos, aos dados, na tomada de decisão pelas autoridades", comenta ao relatar a experiência.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Direita, volver

Repercutiu uma discussão sobre se a universidade deveria abrir-se mais para o pensamento de direita. Houve quem enxergasse no argumento laivos de "Sobre a Liberdade", de John Stuart Mill, com sua ênfase no valor inerente da individualidade e da liberdade de expressão. Para o influente filósofo inglês oitocentista, uma opinião silenciada pode conter boa parte de verdade. Logo, diversidade e debate são eticamente saudáveis numa democracia, onde a razão estaria sempre com o povo, suposta expressão da vontade coletiva.

Mas argumento como intervenção racional no pensamento político precisa ser validado por prova prática. Isso ganha urgência nas mutações da experiência concreta, em que razão e percepção podem deixar de coincidir. São, portanto, viáveis alguns reparos empíricos à alegada ausência de direita no campo universitário.


É que em 50 anos de trabalho na maior universidade federal do país jamais tivemos percepção de domínio da esquerda, entendida como militância orientada pela revolução emancipatória. Esse foi sempre o fantasma útil da repressão. A realidade se matiza por silenciosa maioria conservadora, uma coorte de progressistas (centro-esquerda, social-democracia) e nichos convictos das utopias religiosamente reveladas pelo determinismo histórico.

A direita stricto-sensu, espectro reacionário de ideias, sempre esteve embuçada nas fileiras conservadoras. Calava por vergonha, mesmo durante a ditadura. Expõe-se agora como ultradireita, que é o brutalismo das situações extremas, apoiada no anonimato da desinformação das redes ou na blindagem parlamentar. Sem nada formular de interesse nacional, controla as duas casas legislativas federais, retrocede com religiosos a uma sinistra teocracia, realiza por ideologia o que os militares não conseguiram com armas.

Cabe, assim, duvidar da vontade dessa ultradireita de estar na universidade, espaço articulado, tanto nas ciências humanas como nas exatas, em torno da verdade. Aliás, direita e esquerda são termos antigos em que o mundo não mais se reconhece: o que é dado a ver ultrapassa qualquer realidade original. Politicamente, arma-se um projeto neobárbaro de poder, com as massas realocadas, da falência dos partidos populares, para a ultradireita.

Numa socio-ecologia da mentira, não é mais questão de pensamento, e sim de checagem de dados. Os extremistas sabem, como Thomas Jefferson, que "o preço da liberdade é a vigilância". Daí o recente ataque da câmara de horrores ao Netlab, laboratório de pesquisa em desinformação da ECO/UFRJ, assim como a outras iniciativas do gênero no Brasil e no mundo. Neobarbarismo, protofascismo são só termos aproximativos. O que há mesmo é pulsão brutalista de morte na dispersão de palavras, de sentido e de vida.

Muniz Sodré 

As diferenças não somem assim com facilidade

Em 1930, a escritora Rachel de Queiroz, uma menina, mal saída do curso superior e tendo recém-lançado “O Quinze”, abriu fogo contra um tal “manifesto” formulado e assinado pelo que havia de mais reacionário no governo de então. Da noite pro dia, Rachel se tornou musa, estrela que iluminava nosso curto céu democrático.

Mas não foi apenas a ação intempestiva dela que influenciou. Rachel começou a escrever artigos sobre liberdade de expressão que mandava publicar nos jornais mais à mão.

Na mesma época, numa mesa da Rua do Comércio, em Maceió, se reunia um grupo de amigos que, embora não se expressasse de um só modo, tinha algumas ideias em comum. E uma dessas era a ideia de liberdade. Eles achavam que sem liberdade não era possível construir alguma coisa que valesse à pena, sobretudo no campo cultural.


Durante anos esses amigos lutaram por uma expressão cultural decente e viram na questão estabelecida por Rachel de Queiroz um espaço importante para desenvolvê-la. Cada um deles continuou a desenvolver o que fazia, vinculados ao que já estavam compondo como cultura.

Graciliano Ramos mantinha seus relatórios da Prefeitura de Palmeira dos Índios no grupo. Jorge de Lima seguia fazendo seus poemas misteriosos. Raul Lima e Waldemar Cavalcanti precisavam continuar seus estudos. Théo Brandão fazia de Viçosa a cidade de seus sonhos folclóricos. Diégues Jr. seguia escrevendo nos jornais do Rio e Recife, descobrindo nomes mais ligados ao novo e à confirmação de uma cultura nacional, como havia acontecido recentemente, com um concerto de Heitor Villa Lobos.

E ainda havia aqueles que, não podendo deixar os lugares em que estavam acolhidos, contribuíam com pedaços de seus conhecimentos e ideias novas. Assinalo, até com exaltado reconhecimento, nomes como Jorge Amado, da Bahia, ou Gilberto Freyre, do Recife.

Essa mesa da Rua do Comércio acabou se tornando um elemento constitutivo e fundamental do movimento modernista no Nordeste. Eles não impuseram nada ao que devia ser o Modernismo, não estabeleceram regras para o movimento, não impuseram nenhum rumo para seus artistas.

Quando o Modernismo se tornou um valor nacional, capaz de determinar o que éramos e para onde queríamos ir, o exemplo nordestino, tenho certeza, acabou sendo oportuno para o movimento. Eles não se negavam a discutir a importância dos paulistas, não tinham nada a ver com as disputas gaúchas. Nunca nos metemos nessas questões de prioridades.

A simples luta pela negação de amarras criativas, em defesa da liberdade e contra manifestos pré-estabelecidos garantia o valor da obra.

sábado, 22 de junho de 2024

Pensamento do Dia

 


Governar as mentes

"É a economia, estúpido!". O slogan, criado pelo marqueteiro James Carville, que orientou a campanha presidencial vitoriosa de Bill Clinton, em 1992, ficou célebre, mas era política convencional: o governo deve administrar as coisas. Há, porém, um outro tipo de ação política que desafia a tradição democrática. O PL antiaborto não é (só) sobre aborto nem (apenas) um problema das mulheres. Avulta, atrás dele, uma estratégia política baseada na ideia de que o governo deve administrar as mentes.


O mundo moderno nasceu com a separação entre política e religião: Estado laico. Geralmente, com razão, aponta-se o fundamentalismo islâmico como a mais notável reação à modernidade. Arábia Saudita, Irã, Taleban —os Estados teocráticos formam uma nítida antítese à laicidade das democracias ocidentais. Neles, a religião figura como fonte de poder indiscutível e controle social absoluto. A estratégia política do fundamentalismo cristão inveja as prerrogativas dessas teocracias.

Príncipes sauditas bebem sem parar durante suas estadias nababescas na Europa. Os políticos que pregam a moral bíblica não ligam a mínima para os mandamentos: religião, para eles, é uma escada que conduz ao palácio. O PL antiaborto não é sobre fetos, mas uma aplicação circunstancial de seu slogan eleitoral: "É a moral, estúpido!". O herói principal dessa turma não é Trump ou, muito menos, Milei. Chama-se Nayib Bukele, o tiranete salvadorenho que roubou a cena na mais recente Conferência de Ação Política Conservadora, fórum da direita global realizado em Maryland, nos Estados Unidos, em fevereiro.

Bukele emergiu na política pela esquerda, no berço do partido FMLN, migrando mais tarde para a direita, pela qual elegeu-se presidente em 2019 e, violando a Constituição, reelegeu-se meses atrás. Há três anos, destruiu a independência do Judiciário, destituindo todos os seus juízes, o que lhe valeu um elogio ganancioso de Eduardo Bolsonaro. Os pilares paralelos de seu poder são a manipulação midiática das redes sociais e uma estreita aliança com vetores evangélicos fundamentalistas sediados nos EUA.

Os pastores Franklin Cerrato, da diáspora salvadorenha nos EUA, e Mario Bramnick, conselheiro de Trump, traçaram os contornos da aliança. Bukele atribuiu ao Espírito Santo a profecia de que governaria El Salvador, convidou o pastor midiático argentino Dante Gebel, da River Church de Anaheim (Califórnia) para orar na sua posse e comprometeu-se a criar uma Secretaria de Valores devotada à educação moral do país. No final de 2019, uma deputada do círculo presidencial apresentou moção que decretava a leitura compulsória da Bíblia nas escolas. Governar as mentes –eis o segredo da ditadura salvadorenha.

Bramnick celebrou o triunfo de Bukele de 2019 numa conferência evangélica por meio de uma referência à profecia bíblica das 70 semanas: "O tempo do cativeiro terminou. O Senhor está levantando Ciros não só nos EUA, mas na América Latina. Bolsonaro é um Ciro. Seu presidente Bukele é um Ciro. Deus está sobre ele".

O Ciro salvadorenho desfechou o autogolpe em fevereiro de 2020, dia da invasão militar da Assembleia Legislativa, quando sentou-se na cadeira da presidência do parlamento e, mãos sobre o rosto, pôs-se a rezar. Depois, no ápice da pandemia, decretou o Dia Nacional de Oração "para pedir a Deus que nos livre desta enfermidade".

As redes sociais, os pastores e as orações ajudaram, mas a reeleição de Bukele, com 85% dos votos, refletiu a popularidade de sua "guerra às gangues" que converteu El Salvador num Estado militar-policial em perene "estado de exceção". A mega-prisão de Tecoluca, uma das maiores do mundo, com capacidade para 40 mil prisioneiros, retrata melhor seu regime que qualquer imagem bíblica. O PL antiaborto é só uma pedra inaugural no edifício político distópico imaginado pelos nossos fundamentalistas.

Por que a Educação não avança no Brasil

"Das 20 metas do Plano Nacional de Educação, só 4 foram ao menos parcialmente cumpridas" – esse é o título de uma matéria publicada na Folha de S.Paulo há alguns dias e escrita por Isabela Palhares. Preocupante, né?

Para começar, acredito que caiba apresentar o Plano Nacional de Educação, o PNE. De forma simplista, é uma lei sancionada em 2014 pela ex-presidente Dilma Rousseff e que se pautava em um conjunto de 20 metas para a educação, indo do ensino básico ao superior.

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação divulgará na próxima terça um relatório completo de análise do avanço das metas, mas já adiantam que além de poucos avanços, tivemos alguns retrocessos. Inclusão e permanência seguem sendo grandes problemas.


Na próxima coluna, falarei mais sobre as metas, os avanços e os retrocessos. Nesta, pretendo elencar três hipóteses que podem ser boas em explicar o porquê de estarmos onde estamos. A primeira é a excessiva polarização política do Brasil, alinhada a uma falta de plano político estratégico; a segunda é a falta da real participação de importantes agentes na construção de políticas públicas. Por fim, precisamos falar sobre o teto de gastos e a excessiva austeridade.

O cenário político brasileiro é marcado por uma polarização exacerbada. Não estou dizendo que somos o único país do mundo em que há polarização, O problema não está em haver oposição, mas nasce na medida em que ela sobrepõe qualquer projeto político de longo prazo. De modo simplista: é aquele bom e velho "entra um e muda tudo que o outro fez".

Um professor deu uma aula muito boa sobre isso uma vez e citou brilhantemente um caso brasileiro que é exceção: o Ceará. O Estado é referência nacional em educação, com destaque para Sobral, e se tornou um exemplo de projeto que resiste às questões políticas. Não importa quem esteja no governo, saberão que é melhor não "mexer no que está dando certo".

Infelizmente, é uma exceção. Todo o restante se torna marionete nas mãos de quem está no poder. Não serei ingênuo ou romântico aqui de pautar meu incômodo no fato de que eles não têm o bem do povo em seus planos. O problema é ainda maior: muitas vezes, não têm nem mesmo uma estratégia por trás de suas políticas para além de agendas puramente políticas.
Faltam professores e profissionais da educação nas políticas públicas

Tendo estratégia ou não, é fato: políticas foram criadas durante todo o período. Acredito, inclusive, que muitas até eram bem intencionadas. Qual o problema então?

Aqui entramos no território das políticas públicas – e não coincidentemente essa é minha área de mestrado. Há um consenso na literatura acerca do seguinte ciclo de políticas públicas: identificação do problema, formulação da política, implementação e avaliação.

Na prática não há uma divisão tão clara e as fases se sobrepõem, de modo que a divisão exposta é mais no sentido didático.

Bom, qual o problema que quero trazer para a discussão? O fato de que os professores e demais agentes da educação são, quase sempre, subestimados no processo. Sempre são acionados na fase da implementação, e tendo suas ações pautadas em regras, diretrizes e metas.

Não são eles que são convidados para elencar os problemas reais ou para ajudar no desenho das políticas, de modo a fazer com que estas sejam coesas com as reais demandas e tenham instrumentos de operação exequíveis e eficientes. Geralmente os convidados, assumindo o título de "especialista em educação", são altos cargos de grandes institutos e fundações, e muitos desses não pisam em um colégio desde quando eram alunos.

Além disso, muitas das políticas simplesmente não são avaliadas. Como saber se são verdadeiramente eficientes?

Em suma, o processo de políticas públicas de educação no Brasil precisa urgentemente valorizar os profissionais que verdadeiramente estão nos colégios e os trazer para todas as etapas do processo. Somado a isso, todas as políticas precisam estar sempre em processo de avaliação para que ajustes possam ser feitos.

O Brasil não gasta pouco com educação, mas o teto de gastos limitou avanços

Por fim, mas não menos importante, precisamos falar sobre os gastos com educação. Não serei sensacionalista: o Brasil não é um dos países do mundo que menos gastam em educação. Em alguns momentos, sim, estivemos alinhados, no geral, com os países da OCDE.

Mas tiveram momentos problemáticos. De acordo com a Agência Brasil, o relatório de 2023 Education at a Glance, da OCDE, mostrou que "enquanto o Brasil investiu em 2020 US$ 4.306 por estudante, o equivalente a aproximadamente R$ 21,5 mil, os países da OCDE investiram, em média, US$ 11.560, ou R$ 57,8 mil". Os valores são referentes aos investimentos feitos desde o ensino fundamental até a educação superior.

A meta 10 do PNE diz: "Ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do PIB no quinto ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio”.

Em 2022, o Instituto de Estudos e Educacionais Anísio Teixeira (INEP) publicou um relatório de monitoramento. Lá, o investimento brasileiro em educação chegava a 5,5% do PIB, e o investimento público em educação pública, a 5% do PIB. Ou seja: bem distantes do próprio Plano Nacional de Educação.

Durante boa parte do PNE, esteve em vigor a lei do teto de gastos e agora está em alta a narrativa, adotada pela extrema direita, da austeridade exacerbada. Essas políticas limitam qualquer avanço possível na educação.

Quais são os maiores prejudicados diretos? Os milhões de estudantes brasileiros, mas não somente eles. Também os professores, suas famílias e toda a nação. Educação é um dos ingredientes mais importantes para o desenvolvimento de uma nação. Enquanto a educação for interpretada como um custo e não como um investimento, avançar com as metas será um dos mais ingênuos sonhos.

Cerco total

A afirmação veemente de Lula, em entrevista na terça-feira 18 à rádio CBN, de que os ricos tomaram conta do orçamento, retrata a situação real, de alto risco para o País, do cerco quase total dos recursos públicos por interesses privados, nem sempre defensáveis. O setor financeiro, a mídia, o Banco Central e parcela do setor produtivo agem como se estivessem todos diante de um balcão, a cobrar da política econômica juros altos sem limite e benefícios fiscais sem-fim, e o governo tivesse a obrigação de atendê-los, documenta o noticiário dia após dia. O preço do atendimento às demandas privadas inclui, entretanto, a ampliação e a perpetuação das iniquidades, além do aprofundamento das disfuncionalidades da economia brasileira.

“Há uma guerra histórica de determinados setores dos meios de comunicação e do mercado sobre a utilização dos recursos do orçamento. O que me deixa preocupado é que as mesmas pessoas que falam que é preciso parar de gastar são as que têm 546 bilhões de reais de desoneração de folha de pagamento e de isenção fiscal sem qualquer contrapartida. Ou seja, são os ricos que se apoderam de uma parte do orçamento do País”, disparou Lula na entrevista. O presidente disse ter ficado “perplexo” diante do montante de benefícios fiscais para os abastados, enquanto o governo se vê forçado a discutir cortes da ordem de 10 bilhões, e mencionou as isenções concedidas à agricultura, de 60 bilhões de ­reais. “Vai jogar isso em cima de quem? Do aposentado, do pescador, da dona de casa, da empregada doméstica? Não. Então eu quero discutir com seriedade.” Dias antes da entrevista à CBN, em conversa com jornalistas na Itália, onde participou de uma reunião do G-7, o grupo dos maiores PIBs do planeta, o petista desautorizou a discussão incipiente no governo sobre a mudança no piso constitucional da saúde e da educação.

O presidente citou números positivos de geração de empregos, aumento da renda e dos investimentos internos e estrangeiros e destacou: “Nós só temos uma coisa desajustada no Brasil neste instante, é o comportamento do Banco Central. Não demonstra nenhuma autonomia, tem lado político e trabalha muito mais para prejudicar o País do que para ajudar, porque não tem explicação a taxa de juros do jeito que está”. Lula mencionou o fato de Roberto Campos Neto insinuar a própria candidatura a um cargo em uma eventual reeleição do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, durante homenagem ao presidente do BC. Uma atitude oposta à chamada liturgia do cargo, semelhante ao passo dado por Campos Neto pouco tempo atrás, quando propôs a antecipação da discussão a respeito da própria sucessão.

Lula perguntou se o presidente do BC iria repetir o papel do juiz Sergio Moro, de “paladino da Justiça com o rabo preso a compromissos políticos”. Após a entrevista do presidente, a Comissão Mista de Orçamento aprovou um requerimento do PT de convocação de Campos Neto para explicar, entre outros aspectos, sua atuação política e possíveis conflitos de interesse.

“O que o mercado fez? colocou o orçamento como um fim, não como um meio. O orçamento é um instrumento de gestão, portanto, é um meio. Tanto que Keynes propôs tirar do orçamento o investimento corrente, porque ele é o regulador da economia. Isso não aparece no debate econômico, muito menos na mídia”, afirma o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial e colunista desta revista.

A construção do orçamento ao longo da história, prossegue Belluzzo, como uma peça de exposição pública do uso dos recursos é importante. É um compromisso que o Estado assume em relação à alocação de recursos que recebe dos contribuintes, para demonstrar como destina o que acumula na forma de impostos. Tornou-se, ao longo do tempo, cada vez mais público, mas aqui no Brasil inventaram o orçamento secreto, uma contradição em termos. Talvez a característica principal do orçamento seja não ser secreto, mas público. “O orçamento secreto deve ter sido ardilosamente construído nas casamatas do Arthur Lira. Até nos países mais conservadores do ponto de vista fiscal não se vê um fenômeno desses. É um retrato da política no País.”

O orçamento existe precisamente para impedir o que acontecia lá atrás, no período do feudalismo, quando João Sem Terra pegava o dinheiro dos impostos e gastava do jeito que queria, sublinha Belluzzo, em referência ao monarca inglês que reinou de 1199 a 1216 e impôs uma tributação altamente onerosa, cobrando impostos cada vez mais elevados, sem benefícios para os súditos. “O que se tenta fazer com a privatização do Orçamento é, de certa forma, uma refeudalização da economia.”

As pressões se intensificaram há uma semana, quando setores produtivos encabeçados pelo agronegócio apertaram o cerco ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e conseguiram derrubar a Medida Provisória que buscava preencher a lacuna de 20 bilhões de reais na receita tributária provocada pela desoneração de 17 setores da economia. A MP, que durou oito dias, visava ainda corrigir uma distorção na sistemática do PIS/Cofins que levava empresas a receber recursos do Estado como se fossem uma subvenção governamental.

O centro da apropriação privada do orçamento é o Congresso, deixaram claro consultores parlamentares, procuradores e economistas reunidos em seminário sobre a função da peça como instrumento das políticas governamentais e o papel do Executivo e do Legislativo, realizado na Câmara dos Deputados. O ­País vive “um parlamentarismo orçamentário sem freios” em que se opera “a revisão das vinculações que amparam os direitos fundamentais sem qualquer reflexão sobre as renúncias fiscais”, criticou Élida Graziane Pinto, do Ministério da Procuradoria de Contas de São Paulo. Segundo a procuradora, o planejamento é protocolar, a execução é abusiva e está sujeita à captura pelos fornecedores interessados em vender o seu produto. “Comprar kit de robótica para escola que não tem água tratada é uma despesa discricionária que tem de ser impugnada na prestação de contas. Comprar material apostilado enquanto tem criança fora das creches tem de ser glosado pelo Tribunal de Contas. Estamos agora repetindo o que em 1993 foi o escândalo dos Anões do Orçamento”, disparou.

Conforme dispositivo da LDO deste ano, que o governo vetou e os deputados derrubaram, empenhos de emendas podem ser feitos sem licença ambiental e sem projeto de engenharia. “Vai-se comprometer o gasto público com uma despesa que provavelmente não terá a menor condição de ser executada, porque não tem os elementos mínimos para tanto”, frisou Vinicius Leopoldino do Amaral, consultor do Senado. Além disso, haverá um prazo mínimo de três anos para que as condições suspensivas, como são chamados esses impedimentos, sejam sanados. Um empenho feito neste ano para uma obra sem licença ambiental e sem licença de engenharia, só a partir de 2027 é que será possível cobrar, e eventualmente desfazer, cancelar este empenho para essa obra, que já não exibiu os mínimos sinais de viabilidade no ano em que foi empenhada”, ressaltou.

Há um conjunto de situações alarmantes. O grande cavalo de batalha da LDO de 2023, só agora concluído, diz Amaral, é o cronograma de emendas. O Congresso tem pleiteado um cronograma antecipado para a execução. “É quase como se a despesa mais importante do orçamento fossem as emendas, porque elas teriam prazo para ser empenhadas, para ser pagas. São prazos estreitos, que farão com que as emendas escapem de um eventual contingenciamento. Ou seja, há um privilégio de execução dessas emendas, em ano eleitoral.” O consultor acrescenta: “É preocupante, pois agora temos um direito orçamentário geral, para as despesas comandadas pelo Executivo, e outro regime, especial, com diversos privilégios, para as emendas parlamentares. Não parece que este seja o modelo preconizado pela Constituição”.

Nas transferências especiais, sublinha Graziane Pinto, com esse modelo sem planejamento, sem plano de trabalho, de o dinheiro chegar direto na ponta, não ser tão rastreável, é muito difícil. “Nos Tribunais de Contas estaduais e municipais, a nossa capacidade de refinar essa informação sem ter um filtro prévio é muito árdua. Ainda mais tendo a indicação direta de CNPJ, sem a previsão de licença ambiental, de um projeto de engenharia”, esclarece. “Já acumulamos mais de 14 mil obras paradas. Parlamentar adora inaugurar placa. Se a gente não tivesse feito aquela recuperação do artigo 45 da LRF de priorizar as obras em andamento e a conservação do patrimônio público, seria uma engrenagem, desculpem, de risco, não estou sugerindo que já seja consumado, de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro. Por isso o escândalo dos Anões do Orçamento, de 1993, vem à memória.”

O mal da insistência do presidente do BC em manter sem justificativas suficientes o maior juro real do mundo fica claro na síntese apresentada pelo economista José Luiz Pagnussat, professor da Escola Nacional de Administração Pública: neste ano, o BPC vai custar 105 bilhões de reais. A projeção no relatório do segundo bimestre do orçamento com educação é 146 bilhões, com saúde em 199 bilhões, com todos os programas da assistência social 278 bilhões. O grande gasto, contudo, é com juros, despesa financeira. “Só nos últimos 12 meses gastamos 776 bilhões. Somando educação, assistência social, saúde e 80 bilhões das políticas ligadas a trabalho e assistência aos desempregados, temos o gasto financeiro, gasto com juros, superior à soma de todos esses valores. O aumento de 1% na taxa de juros da política monetária gera o gasto equivalente ao Bolsa Família.”

A ideia que persiste nas diversas regras fiscais, aponta o consultor parlamentar Pedro Garrido, é tirar dinheiro de políticas públicas, definidas pelo processo democrático brasileiro, via Congresso e sanção pelo presidente da República, ou até por emendas constitucionais, que criaram esses gastos. “Aponta-se que existe um grande problema fiscal no Brasil, a ser resolvido por meio da diminuição real das despesas. Querem “limar” esses gastos, principalmente os sociais”, ressalta.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

A mentira é mais interessante

"O que é a verdade"? Perguntava Pilatos gracejando, talvez que não esperasse pela resposta. Há quem se delicie com a inconstância, e considere servidão o fixar-se numa crença; há quem se afeiçoe ao livre-arbítrio tanto no pensar como no agir. E se bem que as seitas de filósofos desta espécie hajam desaparecido, sobrevivem alguns representantes da mesma família, apesar de nas veias não lhes correr tanto sangue como nas dos antigos. Não é somente a dificuldade e a canseira que o homem experimenta ao perseguir a verdade, nem sequer o facto de, uma vez encontrada, se impor aos pensamentos humanos, o que leva a conceder às mentiras os maiores favores; é sim, um natural mas corrompido amor da própria mentira. Uma das últimas escolas dos Gregos examinou esta questão, mas deteve-se a pensar no que leva o homem a armar as mentiras, quando não o faz por prazer, como os poetas, ou por utilidade, como os mercadores, mas pelo próprio mentir.


Não sei como dizê-lo, mas a verdade é uma luz nua e crua que não mostra as máscaras, as cegadas e os cortejos do mundo com metade da altivez e da graciosidade com que aparecem iluminados pelos candelabros. A verdade pode, talvez, atingir o preço da pérola que mais brilha durante o dia, mas não alcança o preço do diamante ou do carbúnculo que tanto mais brilham quanto mais variadas forem as luzes. Com a mistura da mentira mais se acresce o prazer. Haverá alguém para duvidar que, tirando ao espírito humano as opiniões vãs, as esperanças lisonjeiras, as falsas valorações, as imaginações pessoais, etc., para a maior parte da gente tudo o mais não seria senão uma espécie de pobres coisas contraídas, cheias de melancolia e de indisposição, enfim, desagradáveis?
Francis Bacon, "Ensaios"

Dia do Refugiado

 


O adolescente Lenz conhece a crueldade

O pai agarrou nele e levou-o ao quarto de uma empregada, a mais nova e a mais bonita da casa.

- Agora vais fazê-la, aqui, à minha frente.

A criadita estava assustada, claro, mas o estranho é que parecia que ela estava assustada com ele, e não com o pai: era o facto de Lenz ser um adolescente que assustava a criadita e não a violência com que o pai a disponibilizava ao filho, sem qualquer pudor, sem sequer ter o cuidado de sair. O pai queria ver.

- Vais fazê-la à minha frente - repetia.

Estas palavras do pai marcaram Lenz durante anos. Vais fazê-la.

O acto de fornicar a criadita era reduzido ao mais simples: a um fazer. Vais fazê-la, era a expressão, como se a criadita ainda não estivesse feita, como se fosse ainda uma matéria informe, que esperasse o acto dele, Lenz, para ser acabada. Esta mulher ainda não está feita antes de tu a fazeres, pensou o adolescente Lenz, de uma forma clara, e os gestos seguintes foram os gestos de um trabalhador, de um empregado que obedece às indicações de um encarregado mais experiente, neste caso o seu pai: vais fazê-la.

- Despe as calças - foi a segunda frase do pai. - Despe as calças.

O adolescente Lenz despiu as calças. E todas as ordens que se seguiram foram dirigidas exclusivamente a si; ou seja: o pai não dirigiu uma única frase à criadita - ela sabia o que havia a fazer e fez o que tinha de fazer, máquina que não tem alternativa. Ao contrário do adolescente Lenz que, apesar de tudo, poderia dizer ao pai: não quero.

- Despe as calças - ordenou o pai.

Lenz é conduzido, depois, quase empurrado, pelo pai até à criadita, que está deitada e espera.

- Avança - disse o pai, com rudeza.

E o adolescente Lenz, determinado, avançou sobre a criadita.

Gonçalo M. Tavares, "Aprender a rezar na Era da Técnica"

O debate abortado

Em 2009, o arcebispo de Olinda e Recife excomungou os médicos que fizeram o aborto de uma menina de 9 anos (9!) que havia sido estuprada pelo padrasto. O arcebispo não só não excomungou o padrasto, como ainda fez questão de dizer que o aborto era um crime pior do que o estupro. Houve uma enxurrada de artigos horrorizados na imprensa, e eu, otimista que era, achei que alguma coisa poderia mudar no país.

“Minha esperança é que esse tiro funesto saia pela culatra”, escrevi. “A discussão sobre o aborto, que a Igreja insiste em abafar sempre que vem à tona, voltou reforçada. Já não era sem tempo. A criminalização do aborto é uma das maiores violências institucionais contra as mulheres, especialmente as menos favorecidas, que por vezes se veem vítimas de procedimentos tão primitivos quanto a mente do arcebispo de Olinda e Recife.”

Naquela época, a bancada evangélica tinha 63 deputados e três senadores. Parecia muito, e era mesmo, mas hoje são 202 deputados e 26 senadores. Lula e o PT estavam no segundo mandato, com altos índices de aprovação — e zero interesse na pauta.

Em 2014, ano eleitoral, o assunto voltou aos jornais: Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, desapareceu depois de fazer um aborto clandestino. Seu corpo foi encontrado carbonizado, dias depois. Escrevi novamente.

“Não sei o que acho pior: uma candidata que é abertamente contra o aborto, uma candidata que não tem coragem de dizer que não é ou um candidato que se diz satisfeito com a nossa legislação obscurantista. As três posições se equivalem. Estamos em pleno ano de 2024, Constantinopla caiu em 1453 e, não obstante, continuamos gastando tempo e energia com essa discussão bizantina. Fazer ou não fazer aborto é questão de foro íntimo. Quem for contra aborto que não aborte, mas não queira impor as suas convicções ao resto da sociedade. Sabemos onde isso vai dar: aí está essa pobre moça, obrigada pela excelente legislação em vigor a procurar criminosos para se livrar da gravidez indesejada.”

Em 2016, eu ainda não tinha aprendido:

“A epidemia de zika e o aumento explosivo do número de casos de microcefalia puseram na ordem do dia o debate sobre a descriminalização do aborto. Da escuridão, às vezes, nasce a luz: tenho a impressão de que, em menos de um mês, foram publicados mais artigos e entrevistas sobre o assunto do que nos dez anos anteriores. Amaldiçoado com uma das classes políticas mais cínicas e calhordas do mundo, que foge de qualquer tema que possa desagradar aos religiosos, o Brasil está se devendo essa discussão há tempos — mas a simples menção da palavra ‘aborto’ basta para que os nossos legisladores, salvo raras e heroicas exceções, virem para o lado e façam cara de paisagem. Pouco importam, para eles, as vítimas da sua covardia. Quem sabe agora, diante do desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência.”

Que tonta, eu.

Mas me curei. Hoje nem acho mais que o problema esteja só em Brasília: parlamentar não surge do nada. O Congresso é apenas espelho da sociedade. Somos um país retrógrado, perverso e hipócrita, misógino do Oiapoque ao Chuí.

O Brasil é um desgosto que não passa nunca.
Cora Rónai 

Lugares de sonho ou de pesadelo

Quem não sonhou, um dia, com um lugar perfeito? Como a ilha dos Prazeres, perto da Toscânia, em que as crianças não precisam estudar nem lavar atrás das orelhas. Foi aonde levaram Pinóquio. Ou a ilha do Tesouro, na costa do México, onde, em 1754, o corsário inglês Flint enterrou uma arca com 700 mil libras. Ou a Terra do Nunca, onde os garotos, como Peter Pan, não crescem e não se tornam adultos. Pena que esses lugares só existam na fantasia de seus criadores, respectivamente Carlo Collodi, Robert Louis Stevenson e James M. Barrie. Aqui, no nosso quintal, os equivalentes seriam a Pasárgada de Manuel Bandeira, a Maracangalha de Dorival Caymmi ou a Platiplanto de José J. Veiga.

 


E há lugares imaginários que, paradoxalmente, existem, embora de difícil localização no mapa, por suas fronteiras difusas. O mais célebre deles foi detectado em 1974, pelo economista Edmar Bacha: o reino de Belíndia, um mix da Bélgica com a Índia, onde o lado indiano dava duro para o crescimento econômico, mas este só beneficiava o lado belga. Como, aliás, o PIB brasileiro durante a ditadura militar.

Na esteira de Bacha, Mario Henrique Simonsen detectou Banglabânia, misto de Bangladesh com Albânia, onde o já péssimo sempre podia piorar. Delfim Netto, por sua vez, descobriu a Ingana, mistura de Inglaterra com Gana, com seus impostos de país europeu e serviços públicos de Terceiro Mundo. E Bacha também localizou Rumala, uma combinação de Rússia com Guatemala —uma elite corrupta associada a uma alta taxa de criminalidade.

Há pouco, sob as trevas de Bolsonaro, Bacha descobriu também que o Brasil, com suas florestas em chamas e o garimpo ilegal nos territórios indígenas, estava sendo reduzido a um lugar chamado Brasa.

Os lugares imaginários costumam ser territórios do sonho. Mas estes são do pesadelo. O perigo é, ao acordar do pesadelo, descobrir que não estávamos dormindo.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Pensamento do Dia (esqueceu?)

 


Brasileiros ganham R$ 500 por mês para treinar AI

O mercado bilionário da inteligência artificial (IA) tem atraído talentos brasileiros com salários muito acima da média para engenheiros, matemáticos e outros profissionais que se destacam na área.

Mas nem todos os envolvidos com esta tecnologia estão em uma posição invejável.

Há todo um contingente de trabalhadores terceirizados que fazem um trabalho manual laborioso, ganham menos da metade de um salário mínimo, em média, e, por isso, têm mais de um emprego para conseguir pagar as contas — mas são essenciais para que os sistemas de IA sejam capazes de operar.

Os chamados “operários de dados” são considerados “trabalhadores fantasmas” porque executam nos bastidores uma série interminável de microtarefas para refinar as inteligências artificiais.


"Os sistemas de IA requerem muito trabalho humano manual e discreto para funcionarem, o que evidentemente contradiz a narrativa dominante da progressiva e inexorável automação”, diz a socióloga Paola Tubaro, especializada da ciência da computação e professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Economia e Estatística, na França.

“Por isso, empresas de tecnologia e desenvolvedores de IA não se dispõem a divulgar esse tipo de trabalho, que assim permanece escondido, ou seja, 'fantasma'".

Mas o que faz um operário dos dados?

"Eles inserem dados para treinar e moderar sistemas e atividades de IA", explica Rafael Grohmann, professor da Universidade de Toronto que pesquisa o trabalho no mundo contemporâneo.

Esse tipo de atividade ficou conhecida como microtrabalho, pela natureza fragmentada das tarefas envolvidas. O fenômeno é novo, assim como os termos usados para descrevê-lo, diz Grohmann.

“Temos usado muito o termo data workers [operários de dados, em tradução livre do inglês], o que os diferencia dos tech workers [profissionais de tecnologia], que são os responsáveis por produzir, projetar e analisar os dados da IA".

Na prática, esses trabalhadores (de dados) também podem ser chamados de "treinadores de IA".

Pegue um sistema como o ChatGPT, por exemplo. Os “treinadores” são responsáveis por alimentar o robô com as informações e dados que ele precisa para responder perguntas de usuários, auxiliar em traduções, fazer pesquisas, dentre outras tarefas.

Praticamente todos os sistemas de IA dependem destes operários de dados. Redes sociais, por exemplo, os contratam para monitorar as postagens e interações e detectar ações que ferem suas regras ou a lei.

Na comparação com uma fábrica tradicional, esses profissionais seriam o chão de fábrica.

"A lógica do que é a classe operária vai mudando com o tempo. Essa é uma nova apresentação do que são os blue-collars [termo em inglês para a classe operária] e os white-collars [os executivos, que estão longe das tarefas manuais]", diz Grohmann.

Os operários de dados ganham, em média, R$ 583,71 por mês em um emprego, segundo a pesquisa Microtrabalho no Brasil: Quem são os trabalhadores por trás da inteligência artificial.

Esses trabalhadores ganham por cada tarefa concluída e não por hora trabalhada. Segundo o estudo, esse valor médio mensal corresponde a cerca de 15,5 horas de dedicação por semana (cerca de R$ 9,41 por hora, na média).

Segundo um estudo de 2018 da Organização Internacional do Trabalho realizado com 3,5 mil microtrabalhadores de 75 países, a média global de ganho por hora é de US$ 4,43 (cerca de R$ 24, em valores atuais).

Mas, enquanto nos Estados Unidos o valor é maior, de US$ 4,70 (cerca de R$ 25), os operários de dados da África faturam bem menos, US$ 1,33 (cerca de R$ 7) por hora.

No Brasil, de acordo com a pesquisa Microtrabalho no Brasil, o valor gira em torno de US$ 1,60 (cerca R$ 9).

A pesquisa, conduzida por Tubaro junto com o psicólogo brasileiro Matheus Viana Braz e o sociólogo italiano Antonio Casilli, fez uma radiografia da situação do trabalho fantasma no Brasil.

Esse valor fica muito aquém do que os empregadores prometiam a esses trabalhadores que ganhariam realizando estas funções.

Os 477 trabalhadores fantasmas ouvidos pela pesquisa esperavam receber três vezes isso, cerca de R$ 1,6 mil por mês.

Pelo ganho bem abaixo do esperado, eles costumam acumular empregos, por vezes na mesma área, e conseguem com as múltiplas jornadas chegar a uma renda mensal média de R$ 1,8 mil.

O pesquisador em inovação e ciência de dados Mauro Zackiewicz, de 50 anos, que tem um doutorado nesta área, conta que trabalhou por pouco menos de um mês para uma fabricante de celulares recebendo documentos, como áudios triviais, conversas curtas e, por vezes cenas de filmes ou novelas.

“Tinha de corrigir tudo, provavelmente para alimentar de dados um sistema de reconhecimento de voz, mas nem chegaram a me contar para o que fazíamos aquilo", conta ele.

"Ganhava pouca coisa, dava apenas para a subsistência, e nem tinha contrato, o que é, digamos assim, curioso para uma grande empresa."

A pesquisa Microtrabalho no Brasil constatou que 66% dessa força de trabalho só ganha o suficiente para pagar as contas mais básicas.

A grande concorrência entre esses trabalhadores é um fator que contribui para os salários baixos, explica Tubaro.

"As plataformas querem garantir mão-de-obra suficiente para atender picos de demandas. O resultado é que, na maior parte do tempo, há excesso de trabalhadores e, por consequência, muita competição entre eles", explica a socióloga.

Isso significa que, na prática, os operários de dados não conseguem bater as metas estabelecidas pelos empregadores e, como são remunerados de acordo com isso, ganham valores reduzidos por cada hora trabalhada.

A pesquisa Microtrabalho no Brasil constatou que há muitas pessoas com diploma universitário fazendo esse tipo de serviço.

Dos quinze participantes selecionados para entrevistas, como uma amostra representativa do setor, treze eram formados em cursos variados, como direito, administração, ciências da computação e fisioterapia.

Sete em cada dez trabalhadores deste mercado têm entre 18 e 35 anos, segundo o estudo. De cada cinco, três são mulheres.

A maioria mora nos Estados de São Paulo (28,8%), Rio de Janeiro (12,6%) e Minas Gerais (9,7%).

O estudante Gustavo Luiz, de 19 anos, se divide entre o curso de inteligência artificial da Universidade Federal de Goiás, e o emprego como operário de dados.

“Estou trabalhado no desenvolvimento de um sistema de IA para analisar sentimentos expressos em textos e frases em português”, conta ele.

“Esse modelo vai receber dados e tentar encontrar padrões, como de sentimentos, em comentários nas redes sociais.”

Por ser um fenômeno detectado mais recentemente, não há dados precisos sobre o aumento da demanda por esse tipo de trabalho no Brasil.

Mas ofertas do tipo em plataformas de trabalho, como a rede social LinkedIn, têm se multiplicado. Para começar a trabalhar com isso, normalmente basta se cadastrar em um site e seguir as orientações.

Guilherme Graper, de 24 anos, conta que trabalha em uma plataforma da Amazon, mas contratado por outras empresas.

"Por exemplo, tem uma demanda de colocar nomes de médicos nesse sistema para treinar uma IA para pesquisar por médicos em toda a internet", explica.

Os ganhos variam muito. Guilherme diz que já chegou a tirar em um mês apenas R$ 300, mas também já ultrapassou a casa dos R$ 5 mil. Em média, ele calcula que ganha cerca de R$ 2 mil mensais.

Na maioria dos casos, as empresas que contratam trabalhadores fantasmas prestam na verdade serviços para outras bem maiores.

Gigantes de tecnologia, como Meta (do Facebook e Instagram) e a OpenAI (do ChatGPT) subcontratam os seus operários de dados.

"Trata-se de uma realidade do Sul Global [termo que designa países mais pobres, a maioria localizada no hemisfério sul]. São trabalhadores na Venezuela, na Colômbia, no Quênia", ressalta Grohmann.

Apesar de estarem distantes dos maiores centros mundiais de tecnologia, como o Vale do Silício californiano, usualmente os operários de dados treinam IAs de propriedade das grandes marcas do setor.

"A distância não é somente geográfica, como também linguística e cultural. Geralmente, essa distância leva a redução de custos para as empresas do Vale do Silício, mas resultam em baixa qualidade", comenta a socióloga Paola Tubaro.

Tanto a terceirização quanto a falta de regulamentação da profissão levam também, segundo Tubaro, a "práticas sob condições indesejáveis, com precariedade, baixos pagamentos, falta de reconhecimento, informalidade e, como em casos de moderação de conteúdo em redes sociais, riscos à saúde mental".

"Os moderadores de conteúdo das redes sociais ainda estão expostos a riscos psicológicos", completa Tubaro.

Isso por efeito do contato diário com imagens de crueldade, crimes e outras atrocidades que são detectadas pelo algoritmo dessas plataformas e, depois, repassados para avaliação humana.

Já há, contudo, iniciativas que visam regulamentar esse trabalho. É o caso do projeto global Fairwork, coordenado pelo instituto Oxford Internet e pelo Centro de Ciências Sociais WZB Berlin.

Presente em 38 países de cinco continentes, inclusive no Brasil, a organização denuncia abusos relacionados aos trabalhadores de dados, além de propor soluções.

Em todo o mundo, a Fairwork afirma ter convencido 64 empresas de tecnologia a implementar um total de 300 mudanças em políticas internas, como de salários mínimos para a categoria.

A organização é influente principalmente na Europa, mas também tem presença no Brasil, onde tem atuado em prol da criação de leis para regularizar essa categoria de trabalhadores.

A Fairwork destaca em seu site que está "envolvida com o grupo de trabalho tripartido do governo (brasileiro) que procura elaborar um projeto de lei para proteger os direitos dos trabalhadores".

Além de atuar no Congresso em favor de leis que garantam mais direitos trabalhistas, a organização produz relatórios que denunciam o cenário no Brasil.

O documento, divulgado em 2023, apontou que, em uma análise de onze empresas do setor, apenas duas conseguiam garantir ao menos um salário mínimo de pagamento a estes trabalhadores.

Tubaro avalia que estas iniciativas podem ajudar a combater condições de trabalho que são consideradas precárias.

A pesquisadora destaca como bons exemplos leis recentemente aprovadas na Alemanha e na França e que, segundo avalia, "exigem que pelo menos as grandes empresas exerçam a devida diligência no respeito dos direitos humanos e laborais ao longo de suas cadeias de abastecimento".

Trata-se de um problema global. A Fairwork produz relatórios sobre os cenários para os microtrabalhadores em 36 países, tanto em desenvolvimento, como Argentina, Quênia e Índia, quanto desenvolvidos, como França e Estados Unidos.

Segundo um desses relatórios, 16% dos trabalhadores americanos realizam alguma forma de microtrabalho, mesmo que como renda secundária. É o país que lidera o ranking neste quesito.

Dentre a atuação de treze empresas nos Estados Unidos, apenas 3 alcançaram os critérios estabelecidos para serem consideradas como ambientes de trabalho justos.

"Há custos globais para esse rápido desenvolvimento e pelo aumento da presença da IA", afirma o pesquisador Rafael Grohmann. "Mas há especificidades para cada país e isso exige atenção".

Em países como os Estados Unidos, esses trabalhadores costumam atuar mais, por exemplo, como motoristas de Uber.

"As tarefas mais precárias, como as de moderação de conteúdo, costumam ser terceirizadas para nações da África, da Ásia e da América Latina", diz Grohmann.

Nosso senhor

O mercado financeiro e os rentistas (e os economistas que trabalham para os rentistas e os financistas) passaram a capturar o patrimônio público. Eles estão, no ano da graça de 2024, portanto 30 anos depois do real, capturando 7% do PIB
Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda

Pautas contraditórias

É surpreendente como as sucessivas vitórias eleitorais da direita ainda surpreendem analistas e militantes de esquerda presos à antiga Era de Abundância, por não perceberem a pauta dos eleitores na Era dos Limites: visível no desequilíbrio ecológico, no esgotamento financeiro dos Estados, na pressão dos imigrantes, nas reivindicações das minorias, nos deficits previdenciários, na inversão da pirâmide etária com mais velhos e menos jovens.

Até recentemente, com os recursos que pareciam ilimitados na natureza e no Estado, a esquerda apontava na direção do aumento dos direitos sociais. Era possível receber imigrantes sem reduzir direitos já conquistados, aumentar o consumo sem pressionar desequilíbrios ecológicos para as gerações futuras, atender a crescentes benefícios previdenciários, respeitar minorias sem ofender a maioria. A migração em massa desarticula os direitos conquistados em décadas passadas, a crise ambiental não permite oferecer o mesmo padrão de consumo às gerações futuras, as finanças públicas desequilibradas não asseguram os recursos fiscais necessários para aposentadorias e outros benefícios. Com a consciência dos limites de recursos e o fim da ideia de abundância para todos, esses direitos e promessas ficam ameaçados, e o eleitor opta pela direita para defender privilégios com a mesma lógica que antes votava em propostas progressistas da esquerda para aumentar direitos.


O eleitor fica na direita porque mantém a mesma lógica democrática de usar seu poder soberano para construir de imediato uma sociedade melhor para si e seu entorno. Antes, era abrindo as fronteiras para as novas gerações. Originários de outros países, os estrangeiros, agora, já não cabem dentro das fronteiras nacionais: nem os estrangeiros geográficos que pedem para entrar; nem os estrangeiros sociais, os pobres do próprio país, que um livro de 2002 chamava de "instrangeiros"; nem os estrangeiros geracionais, jovens atuais e os que ainda vão nascer e precisarão evitar a hecatombe climática.

A pauta dos eleitores perdeu sintonia com a pauta humanista, mas as chamadas forças progressistas mantêm-se prisioneiras a um tipo de futuro que o presente faz impossível. A visão humanista olha o futuro da humanidade com ampliação de direitos para todos os seres humanos, não importa em que lado estiver da fronteira geográfica, social ou geracional. O discurso da direita fala para o presente e para a nação, com a manutenção dos privilégios, a garantia da ordem e dos costumes e ainda oferece paliativos sociais que acenam a uma utopia provisória, como carro elétrico que minora a crise ecológica sem resolvê-la e rendas mínimas que mitigam a penúria dos pobres sem superar a tragédia da pobreza, sem incorporar os "instrangeiros".

A Era dos Limites criou um divórcio entre o humanismo planetário e futurista, e a democracia nacional e imediatista. O eleitor defende seus interesses locais e de curto prazo, mas a esquerda, em vez de inventar novas utopias, fica presa na nostalgia ideológica, até da necrofilia ideológica. Não oferece propostas para fazer a democracia avançar a alguma forma de "humanocracia" (voto nacional submetido a valores universais); não busca convencer o eleitor a entender os riscos ecológicos e morais da xenofobia e do imediatismo contra a humanidade e o futuro; nem desperta em cada indivíduo um sentimento de solidariedade com todos os seres humanos e com a natureza; não propõe uma alternativa à riqueza medida pelo PIB. Não entende que seu humanismo é recusado porque não atende à pauta dos eleitores com horror ao futuro, aos riscos, aos estrangeiros, às incertezas, à violência, ao crime, às mudanças no clima e nos costumes. No lugar de oferecer novas utopias convincentes filosoficamente e sedutoras eleitoralmente, a esquerda prefere ficar presa a ideias do passado ou cair no eleitoralismo, ou substituir a legítima vontade individualista e imediatista do eleitor pela vontade ilegítima de autocratas. No lugar de perceber o esgotamento de suas ideias, acusa o eleitor e a direita eleita.

A esquerda precisa entender as mudanças ocorridas, tratar as ideologias passadas como peças de museus intelectuais, do tempo anterior à Era dos Limites, e formular novos sonhos e propostas necessárias para ampliar direitos sociais e ecológicos a toda humanidade com apoio do eleitor nacional que não quer perder seus privilégios atuais em nome do futuro e da humanidade.