quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Quando as comidas nos comem

Quando eu era jovem e metido a teórico da vida social, escrevi no livro “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro”, em 1979, que havia três modos de ritualizar. O primeiro, reforçando os elos sociais existentes; o segundo, neutralizando vínculos estabelecidos; e o terceiro — certamente o mais divertido e contraditório —, invertendo rotinas e fazendo tudo ao contrário. Cantar, em vez de discursar; desfilar dançando, em vez de trotar firme para o emprego; beber, pular e ficar “sem fazer nada”, em plena liberdade, em vez de trabalhar; e, por fim, mas não por último, instituindo o Rei Momo como desgovernante, esquecendo esses nossos administradores estadomaníacos, dedicados a desmanchar o feito e fazer desmanchando, com a conhecida ineficiência e o gozo dos privilégios de seus cargos.

No primeiro caso, vivemos solenidades; no segundo, lutos, despedidas e rejeições; no terceiro, revoluções e rebeliões que, no caso brasileiro, se concretizam em carnavais e nessa festa ou ritual de passagem do ano velho para o ano novo. Trânsito carnavalesco e musicado que acasala a fluidez do tempo que passa invisível e incessante com a música que, num sentido profundo, o imita, ajudando a esquecer frustrações.


Esse fazer pelo avesso — vestir uma fantasia, comer coletivamente uma mesma comida numa comunhão de corpos e almas — inventa esses tempos que acabamos de viver. Tempos especiais quando abandonamos o que fazemos rotineira e “naturalmente”, para oferecer presentes e comidas especialmente preparadas, que devem ser obrigatoriamente degustadas. Esses pratos especiais imperativos e irrecusáveis — tortas, assados, nozes, passas que viram “comidas” especiais — são comidas que nos comem!

Tal como o bolo de aniversário do Marquinho (que docemente representa sua pessoa) tem que ser comido e — claro está! — come e, dessa maneira, congrega seus convidados.

Essa abertura para o outro e o gentil canibalismo de ser comido pela comida que se come são centrais na ceia do Ano-Novo.

Ela é vital na reinvenção do tempo. No caso brasileiro, é evidente o papel da comida em encontros ritualizados em que a mesquinhez política e a sovinice do economizar cedem lugar ao “dar” presentes — “lembranças” e comidas ao lado do abrir a porta da casa, indo além dos parentes que comungam conosco sendo comidos — repito — pela mesma comida. A comensalidade vira pelo avesso diferenças, como já havia demonstrado William Robertson Smith em seu clássico estudo da comensalidade entre os semitas.

Tempos natalinos e carnavalescos são tempos, reitero, de gastar em vez de economizar e do desfilar exibicionista no lugar de trabalhar sem louvor e recompensa equitativa. Neles, o arroz com feijão comido em família de olho na dieta é cerimonialmente substituído por pratos afinados com o “tempo”.

A bacalhoada suculenta da Mara, o irresistível (e complicado) peru de Natal do Mário de Andrade, os pavês e rabanadas obrigatoriamente comidos pelos convidados que transformam a “mesa” da família numa espécie de “távola redonda” vestida com a melhor toalha, sobre a qual ficam expostos os “pratos” que nos canibalizam porque são obrigatoriamente comidos e, no calor da comensalidade, nos devoram. São eles que nos comem, fazendo com que o “comer pra viver” vire o pantagruélico “viver pra comer”.

A inversão legaliza passar do egoísmo ao altruísmo de uma “educada” hospitalidade e de tudo o mais que “devemos” aos convidados. Alguns deles, por sinal, nossos opositores no estúpido pantanal da “política”.

No ritualizar, o abandono das rotinas — daquilo que fazemos “sem pensar” ou “naturalmente” — é central. Por meio dessa inversão, reiteramos afeto e encapsulamos o tempo. Mudar rotinas, passando do trabalho à festa, ajuda a sentir o tempo que, como a água, não pode ser cortado. Mas pode ser, como acabamos de experimentar, aprisionado nos calendários.

Curioso, todavia, assinalar que capturamos o invisível tempo e passamos de um ano a outro, mas não conseguimos mudar o velho Brasil concreto e vexaminoso na sua estadopatia geradora da pobreza que sustenta o populismo e a corrupção.

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