Os autores relembram que os republicanos nos Estados Unidos defenderam e protegeram Donald Trump e até hoje, na sua grande maioria, não reconhecem sua derrota eleitoral. Aqui no Brasil o desenrolar da história foi diferente. Na mesma noite em que a vitória de Lula foi anunciada, os principais aliados de Jair Bolsonaro reconheceram a derrota de forma pública e inequívoca e posteriormente jogaram a pá de cal. “A direita brasileira também condenou vigorosamente a insurreição de 8 de janeiro”, dizem.
Estes episódios ressaltam a diferença de postura dos partidos da direita tradicional do Brasil e dos Estados Unidos. Enquanto a maioria dos líderes republicanos se recusa até hoje a aceitar publicamente os resultados da eleição de 2020, no Brasil o resultado da eleição de 2022 é uma questão pacificada. Outra diferença fundamental: os republicanos se empenharam para frustrar esforços do Congresso para impugnar e condenar Trump. Já no Brasil, Bolsonaro foi condenado pela Justiça Eleitoral, sem maiores contestações.
Assim, por incrível que possa parecer, os partidos e as instituições brasileiras deram uma resposta mais satisfatória do que os americanos. Como dizem os autores de Como Salvar a Democracia: Bolsonaro não chegou mais longe “porque as elites políticas e militares deixaram claro que não o apoiariam”.
Certamente essa não foi a causa única para o fracasso da tentativa de golpe que fez do 8 de janeiro o Dia da Infâmia, para utilizar a expressão cunhada pela ex-ministra do STF, Rosa Weber. Mas a conclusão de Levitsky e Ziblatt guarda sintonia com as palavras de Lula, pronunciadas no sua mensagem de Natal: “felizmente a tentativa de golpe causou efeito contrário. Uniu todas as instituições, mobilizou partidos políticos acima de ideologias, provocou pronta reação da sociedade.”
Isso não aconteceu nos Estados Unidos. Sua polarização até hoje é bem mais intensa do que a brasileira e paira sobre a democracia americana a ameaça de retrocessos face a resiliência da candidatura Donald Trump em 2024.
Uma das grandes causas para a intentona ter flopado foi a falta de uma ampla base social para o golpe. Seus arquitetos confundiram a votação expressiva de Bolsonaro como aval para a ruptura democrática. A base de sustentação para um golpe estava reduzida ao núcleo duro e radical do bolsonarismo. Governadores como Tarcísio de Freitas (SP) e Romeu Zema (MG) fizeram questão de, rapidamente, condenar o assalto aos três poderes da República.
Para entender sua derrota convém traçar um paralelo entre o Brasil do 8 de janeiro de 2023 com o de 31 de março de 1964. Naquela época, o golpe foi vitorioso por contar com uma base social de massas, principalmente na classe média, e por ter apoio de parte expressiva do Congresso Nacional, do empresariado e das Forças Armadas, como instituição. Basta citar um fato histórico. O cargo de presidente da República foi declarado vago pelo presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, quando João Goulart ainda se encontrava no território nacional.
Também a conjuntura internacional favoreceu o golpe, com o mundo dividido em dois blocos ideológicos e em plena guerra-fria. O Brasil estava na área de influência dos Estados Unidos, assim como a América do Sul. Daí o apoio dos americanos aos golpes do Brasil, do Uruguai, do Chile e da Argentina.
Todas essas condições faltaram à conspiração mal-sucedida do 8 de janeiro. O Supremo Tribunal Federal foi fundamental na contenção de incursões golpistas e na defesa da legalidade, das eleições e da democracia. Do mesmo modo se posicionaram os presidentes das duas casas legislativas, o empresariado, a sociedade civil e as instituições da República.
Se em 1964 os Estados Unidos tiveram um papel importante para a vitória do golpe, a história foi outra em janeiro do ano passado. O mundo atual é bem diferente da época da guerra-fria. Sinal dos novos tempos: o governo americano e seu presidente Joe Biden pressionaram para que o pronunciamento das urnas fosse respeitado, alertando para possíveis retaliações em caso de uma ruptura democrática no Brasil.
Pode-se especular se a história teria outro desfecho caso Donald Trump tivesse derrotado Joe Biden. Desde a Segunda Guerra Mundial, a doutrina militar brasileira tem identificação com a dos Estados Unidos e é impensável a modernização de nossas Forças Armadas sem a aquisição de materiais bélicos americanos. Mas certamente a posição de Biden contribuiu para nossos militares não ingressarem em tresloucada aventura.
Foi determinante o caminho seguido pelos militares desde a redemocratização de 1985, assegurando o mais longo período de nossa história republicana sem intervenções ou quarteladas. Ao se dedicarem até 2018 exclusivamente às suas funções constitucionais, as Forças Armadas se transformaram em uma das instituições mais respeitadas pelos brasileiros.
A infiltração do bolsonarismo nas Forças Armadas revelou-se mais profunda do que se imaginava, mas, apesar disso, não se viu a instituição envolvida no Golpe. Não houve um só movimento de tropas, apesar de o país ter 680 estabelecimentos militares. Isso demonstra a importância de ter uma cadeia de comando com controle da tropa e do estamento militar estruturado na hierarquia e disciplina.
Talvez esteja aqui um grande acerto de Lula. Observou o critério da antiguidade na escolha dos comandantes militares e escolheu um ministro da Defesa de perfil conciliador. A estratégia revelou-se correta. Em sua nota de Natal à tropa, o comandante do Exército, general Tomás Paiva, deixou claro que quer sua tropa focada “em coisa de soldado”, deixando a política de fora dos quarteis.
Voltando a Steve Levitsky e Daniel Ziblatt, talvez os autores de Como Salvar a Democracia tenham sido exageradamente otimistas na leitura de como superamos uma das mais graves ameaças à nossa democracia, desde o fim do regime ditatorial. Mas é alentador ler as palavras de um general entrevistado por Miriam Leitão: “Não pode haver essa percepção de que o Brasil pode ter um retrocesso que não cabe mais no século XXI. Os problemas da democracia se resolvem na democracia”.
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