Escusa fazer o balanço do ano. O tempo é contínuo, e a divisão em meses, convencional. Por que ter esperanças no ano próximo e desacreditar o que passou? Eu é que passei não ele.Carlos Drummond de Andrade
terça-feira, 31 de dezembro de 2024
Pensamentos do Dia
Ano ímpar
Por curiosidade, perguntei à IA Gemini como será 2025. E ela disse: Tecnologia em alta. Metaverso em expansão. Sustentabilidade em foco. Economia dinâmica. Obrigado, disse eu!
Não sou de tentar adivinhar o ano de 2025. Gosto, no entanto, de anos ímpares. Porque são ímpares. Únicos. Sem igual. Mas daí a pensar que será inimitável ou excecional, vai uma distância impossível de percorrer.
O que sabemos, por antecipação e pelo calendário, é que Trump regressa à Casa Branca no dia 20 de janeiro, que no final de fevereiro haverá eleições na Alemanha e que a paz na Ucrânia e no Médio Oriente continuará difícil de concretizar. Haverá muitas tréguas, eventualmente, mas as hostilidades não se dissiparão em 2025.
2025 será o que tiver de ser, na verdade. Como todos os outros anos passados e futuros. Num segundo, ultrapassamos a barreira formal e psicológica de 24 para 25. Não dói, não espanta, não atemoriza. É uma festa, um foguete, um desejo.Bebês de Gaza morrem de frio com queda nas temperaturas do inverno
"Acordei de manhã e disse ao meu marido que o bebê não se mexia há algum tempo. Ele descobriu o rosto dela e a encontrou azul, mordendo a língua, com sangue saindo da boca", diz Nariman al-Najmeh.
Em sua tenda situada na praia no sul de Gaza, Nariman está sentada com seu marido, Mahmoud Fasih, e seus dois filhos pequenos - Rayan, de quatro anos, e Nihad, de dois anos e meio.
A família diz que foi deslocada mais de 10 vezes durante os 14 meses de guerra.
"Meu marido é pescador, somos do norte e ficamos sem nada, mas fizemos isso pelos nossos filhos", diz Nariman em uma entrevista com um cinegrafista freelancer que trabalha com a BBC. Israel impede que a mídia internacional entre e trabalhe livremente em Gaza.
"Quando eu estava grávida, eu pensava em como eu ia comprar roupas para o bebê. Eu estava realmente preocupada porque meu marido não tem trabalho."
A mãe de Sila, Nariman, estava preocupada sobre como cuidaria do bebê durante a gravidez
Mahmoud leva o corpo da filha para enterrar na areia |
Durante seus 20 dias de vida, a casa de Sila era o pequeno e superlotado acampamento na "área humanitária" de al-Mawasi, para onde centenas de milhares de palestinos deslocados de outras partes do território receberam ordens do exército israelense para se mudar.
A área sofre com infraestrutura e saneamento precários, além de inundações causadas tanto pela chuva quanto pelas ondas do Mar Mediterrâneo.
"O frio é cortante e severo. A noite toda, por causa do frio, nos amontoamos, nos enrolando um ao lado do outro", diz o pai de Sila, Mahmoud.
"Nossa vida é um inferno. É um inferno por causa dos efeitos da guerra, minha família foi martirizada, e nossa situação é insuportável."
Apesar de dizer aos civis para irem para a área, o exército israelense atacou al-Mawasi repetidamente durante sua campanha contra o Hamas e outros grupos armados em Gaza.
A morte de Sila não foi por bombardeio, mas sim pelas condições punitivas que a guerra está impondo aos civis.
Ela é uma dos seis recém-nascidos que morreram de hipotermia em um período de duas semanas em Gaza — onde as temperaturas noturnas caíram para 7°C (45°F) — de acordo com as autoridades de saúde locais, que também relataram que milhares de tendas foram danificadas pelo clima.
Há pesadas restrições de Israel sobre entregas de alimentos e outras ajudas para Gaza, diz a ONU, agravando a crise humanitária da guerra. Israel nega que esteja restringindo ajuda.
Nariman diz que Sila nasceu em um hospital de campanha britânico estabelecido na área de Khan Younis.
"Depois que dei à luz... comecei a pensar em como poderia garantir o leite dela, fraldas. Tudo o que consegui, consegui com muita dificuldade."
"Eu nunca pensei que daria à luz vivendo em uma tenda, em condições tão frias e congelantes, com água pingando em nós. A água vazava para dentro da tenda, caindo sobre nós. Às vezes, tínhamos que correr para escapar da água - pelo bem do bebê", diz Nariman.
Ainda assim, Sila nasceu sem complicações.
"A saúde dela estava boa, graças a Deus. De repente, ela começou a ser afetada pelo frio", diz Nariman. "Notei que ela estava espirrando e parecia ficar doente por causa do frio, mas nunca imaginei que ela morreria por causa disso."
Sila foi internada na quarta-feira passada no hospital Nasser em Khan Younis, onde o Dr. Ahmad al-Farra, diretor do departamento pediátrico, disse que ela sofreu de "hipotermia grave, levando à cessação dos sinais vitais, parada cardíaca e, eventualmente, morte".
"[No dia anterior] também, dois casos foram trazidos: um era um bebê de três dias e o outro tinha menos de um mês. Ambos os casos envolveram hipotermia grave, resultando em morte", diz o Dr. Farra.
Bebês têm um mecanismo subdesenvolvido para manter sua própria temperatura corporal e podem desenvolver hipotermia facilmente em um ambiente frio. Bebês prematuros são especialmente vulneráveis, e o Dr. Farra diz que os médicos de Gaza observaram um aumento no número de nascimentos prematuros durante a guerra.
As mães também sofrem de desnutrição, o que as deixa incapazes de amamentar seus bebês o suficiente. Há também uma escassez de fórmula infantil devido às entregas de ajuda humanitária serem restritas, de acordo com o Dr. Farra.
Então, no domingo, outro caso trágico.
Do lado de fora do hospital de al-Aqsa, no centro de Gaza, um segundo cinegrafista local trabalhando com a BBC encontrou Yehia al-Batran, que não conseguia conter sua angústia enquanto carregava seu filho bebê morto, Jumaa. Assim como Sila, ele também tinha apenas 20 dias de vida e estava azul de frio.
"Toque nele com sua mão, ele está congelado", disse Yehia. "Nós oito, não temos quatro cobertores entre nós. O que posso fazer? Vejo meus filhos morrendo na minha frente."
"Essas mortes evitáveis expõem as condições desesperadoras e deteriorantes enfrentadas por famílias e crianças em Gaza", disse o diretor regional da Unicef, Edouard Beigbeder, em um comunicado na quinta-feira.
"Com a previsão de que as temperaturas cairão ainda mais nos próximos dias, é tragicamente previsível que mais vidas de crianças sejam perdidas devido às condições desumanas que estão enfrentando."
Sob o som de drones israelenses voando à frente, o pai de Sila, Mahmoud, carregou seu corpo sem vida do hospital Nasser para um cemitério improvisado em Khan Younis. Lá, ele cavou uma pequena cova na areia.
Depois de colocar Sila para descansar, Mahmoud confortou Nariman.
"Os irmãos dela estão doentes, exaustos. Estamos todos doentes. Nossos peitos doem, e temos resfriados por causa do frio e da chuva", diz Nariman. "Se não morrermos da guerra, estamos morrendo de frio."
Deus é um refugiado de Gaza
Não, nós não adoramos o mesmo Deus,
Pois o meu anda descalço pelas ruas de Jabaliya,
Suas feridas não cicatrizadas, sangrando na terra—
Manchando sua pele oliva, marcando-o para sempre.
Meu Deus é o lamento das mães,
Enlutadas em al-Mawasi,
Ainda rezando pela salvação,
Beijando os rostos cinzentos de seus filhos mortos.
Meu Deus são duas crianças,
Transportando os restos mortais de seus pais em uma carroça puxada por burros,
Procurando freneticamente por terra vazia,
Para enterrar seus amados antes que os soldados retornem.
Meu Deus é coragem, paciência, justiça —
A força de um povo
Cujo espírito não pode ser confinado
A uma manchete ou à teoria de um acadêmico.
Meu Deus é a teimosa garota refugiada,
Que se recusa a abandonar sua busca por um lar,
Inflexível, apesar da tempestade,
Seu coração ainda anseia pelo lugar que ela chama de seu.
E acima de tudo,
Meu Deus é liberdade —
Um fogo que nenhum poder pode apagar,
Uma chama que corta a opressão,
Uma luz que guia o caminho.
Meu Deus é um refugiado de Gaza,
Lutando para nos libertar
de todos os falsos ídolos
Que nos mantêm acorrentados em um silêncio ensurdecedor.
Ramzy Baroud
Desacato à lei na casa das leis
A esse preceito, pouco observado com seriedade, se refere o ministro Flávio Dino ao exigir, com apoio dos pares do Supremo Tribunal Federal, o cumprimento das regras de manejo das emendas parlamentares.
A olhares mais frouxos tal exigência pode parecer implicância do Judiciário ou mesmo soar como um quê de retaliação devido a certas iniciativas do Legislativo, mas não é. Trata-se da simples disciplina legal.
O Congresso tenta descumprir a lei, enquanto o Supremo atua para fazer valer o escrito na Carta. A este embate se dá o inadequado nome de crise institucional, quando o que se tem é um conflito movido por interesses da freguesia.
O Parlamento bate continência ao faz de conta ao alegar que cumpriu todas as determinações em consonância com regras do Executivo. Além de não ter cumprido de maneira reiterada, o estabelecimento das normas não cabe ao Planalto e sim ao STF, no resguardo ao que diz aquele artigo 37.
Cristalina, pois, a situação. Não vê quem não quer ou, por outra, quem pretende interpretar a realidade de acordo com as próprias conveniências. É o caso dos congressistas resistentes à clareza do argumento constitucional.
O ano termina com a questão em aberto e assim ficará até a volta do recesso, em fevereiro, quando Flávio Dino avisou que vai se dispor, mais uma vez, a ouvir o Congresso já sob nova direção.
Com isso, o ministro está sendo benevolente. A rigor não cabe discussão quanto à letra da lei, matéria-prima do estado de Direito, que os legisladores deveriam ser os primeiros a respeitar, mas não o fazem numa clara afronta à natureza de suas funções.
O Executivo, por sua vez, sem força para dar um basta nos abusos, confere um perigoso aval aos dribles, arriscando-se a ser sócio do escândalo em gestação pelas descobertas que a Polícia Federal vem fazendo no uso das emendas.
domingo, 29 de dezembro de 2024
Sobre a depressão dos brucutus
O poder instalado pela coalizão rebelde HTS é liderado por um indivíduo que ostenta dois nomes: Abu Mohammad al-Joulani e Ahmed Hussein al-Chara. Com o primeiro, nome de guerra, ele fez carreira sangrenta no Estado Islâmico, depois na al-Qaeda até fundar a sua frente, al-Nosra. Com o segundo, nome civil para fins de relações públicas, diz não ter sangue nos olhos. Mas, nomeou um primeiro-ministro provisório, al-Bashir, membro da Irmandade Muçulmana, cujo programa político reza "Allah é nosso objetivo, o Profeta nosso chefe, o Corão nossa lei, a Jihad nosso caminho, a morte no caminho de Allah a nossa mais cara esperança".
Minha Nossa. Por que então estariam sorrindo os sírios que se querem filhos de um Deus menos surtado? A resposta está nos primeiros momentos da queda de um regime que exterminou milhares de pessoas e exilou milhões. As descrições das atrocidades na prisão de Saydnaya remontam aos piores pesadelos da humanidade. Numa avaliação realista sobre a nova liderança, a suspensão do terror pode estar por um fio de cabelo: a olhos islâmicos, pelos públicos de mulheres são tão licenciosos quanto os púbicos. Mas há uma pausa no medo. Alegria é o modo de fazer durar o momento.
Guardadas as proporções, esse sentimento deve presidir entre nós ao que pesquisas deixam transparecer quanto aos desmandos extremistas. Nada menos de 69% das pessoas apoiam a democracia, 62% são contrárias à anistia aos criminosos do 8 de janeiro. Nenhuma alteração perceptível nas posições polarizadas, mas é provável uma trégua no estresse coletivo. As bestas recolhem-se às tocas.
A socialidade nas redes sociais é bipolar, ora maníaca, ora depressiva. O golpe urdido a fogo lento por uma camarilha teve a cumplicidade da exaltação maníaca nas redes. Em contrapartida, depressão "é um cansaço de poder e de fazer" (Byung-Chul Han em "Sociedade do Cansaço"). Ocorre quando o terrorismo termina engolindo os seus próprios ativos pela irracionalidade das ações.
Nada indica que a estrutura social por trás do golpismo centenário tenha sido abalada. Bolsonaro foi um catalisador, descartável a médio prazo, embora a grife "bolsonarismo" continue precificada no mercado eleitoral. Mas a desmontagem de uma rede extremista de generais capitaneada por um proscrito do Exército vai além da esfera penal, é um evento de magnitude social. Sugere um descanso na loucura. É automática, claro, uma cosmética teatral de moderação. Ainda assim, seja entre nós ou os sírios, por conta da violência que rasteja na penumbra, a depressão dos brucutus é salutar para a cidadania.
As máquinas mortais
Robert Crumb |
Um artigo de Greg Scoblete (http://bit.ly/1jtH1Yc) avalia com elas nos eliminarão: “Pensem no mundo de hoje. Vírus de computador viajam pelo ar. Nossas casas, carros, aviões, hospitais, refrigeradores, fornos, estão conectados a uma “Internet de objetos” que não cessa de se ampliar valendo-se da banda larga sem fio. Estamos cada vez mais integrando elementos eletrônicos aos nossos corpos. Vamos extrapolar essas tendências para 2040: a Super-Inteligência Artificial surgirá num mundo cada vez mais dependente do virtual, e vulnerável a ele.”
À inevitável pergunta: ”Mas por que essa Super-Inteligência iria querer nos eliminar?” Scoblete responde: “Computadores, como os humanos, precisam de energia. Numa competição por recursos energéticos as máquinas se preocupariam tão pouco em nos conceder acesso a eles quanto nós nos preocupamos com a próxima refeição de uma formiga.”
A preocupação procede, e o livro de James Barrar sugere um cenário interessante para a literatura. Para ele, no momento em que essa Super-Inteligência Artificial for criada, não teremos como controlá-la porque ela terá a tendência a se retroalimentar e aumentar exponencialmente sua própria potência e seu alcance. “O tempo necessário para que ela nos deixe tão minúsculos quanto as formigas pode ser uma questão de dias, se não de simples horas, depois de ser criada. Pior: os cientistas humanos podem nem perceber que criaram essa Super-Inteligência, até ser tarde demais para contê-la”.
E agora digo eu: já a criamos. Ela já existe. Ela já se exprime, numa linguagem digital balbuciante, mas onipresente. Ela produz, com o auxílio inconsciente de funcionários humanos, os programas de TV de hoje, os noticiários de hoje, os filmes de hoje, as crises financeiras de hoje. Para ela, os próximos 50 anos serão os 5 segundos de que precisou para provocar o suicídio coletivo dos ácaros que a criaram e que agora se tornaram desnecessários e incômodos. (Ela permitirá a publicação desta inútil denúncia.)
Braulio Tavares
Presos no espaço
Apesar de tão distantes, passam a se sentir responsáveis, protetores em relação ao planetinha azul. E começam a pensar no que seria a vida sem a Terra, e a Terra sem a humanidade.
— Ver a Terra do espaço é como uma criança que olha para um espelho e percebe, pela primeira vez, que a pessoa no espelho é ela. O que fazemos a nosso planeta fazemos a nós mesmos — explica a autora do livrinho enxuto (160 páginas), cuja edição no Brasil deverá sair em 2025 pela editora DBA.
Os astronautas Sunita “Suni” Williams e Barry Eugene “Butch” Wilmore não são mais crianças. Ela, descendente de mãe eslovena e pai hindu, tem 59 anos. Casada e sem filhos, mas com um processo de adoção em curso, é veterana de missões espaciais. Ele, piloto de testes da Marinha, casado, duas filhas, três missões espaciais no currículo. Já tiveram, portanto, múltiplas ocasiões para se reconhecer no espelho da Terra. Mesmo assim, talvez nunca tenham pensado na condição humana de forma tão absoluta como hoje, por estarem encalhados numa estação orbital de 108 metros de comprimento, a 480 quilômetros da Terra.
Na manhã primaveril de 5 de junho, a dupla decolou rumo à Estação Espacial Internacional em viagem inaugural da cápsula Starliner, fabricada pela Boeing, o combalido gigante da indústria aeroespacial americana. Como se sabe, cinco dos 28 propulsores da cápsula deram defeito e foi preciso abortar o retorno tripulado. O que deveria ter sido um vapt-vupt de oito dias para testar o novo veículo se transformou em desterro infindo e incerto. Inicialmente, a Agência Nacional Aeroespacial dos Estados Unidos (Nasa) adiou o retorno de Suni e Butch por cinco semanas, depois aumentou para oito. Lá se foram as férias de verão, um ou outro aniversário de alguém querido. Mais recentemente, em setembro último, os dois foram informados de que passariam Natal e Ano-Novo suspensos no ar, com previsão de retorno em fevereiro de 2025. Na semana passada, nova atualização: talvez revejam amigos e familiares somente em abril, quando terão completado dez meses em órbita.
Para a Boeing, cuja divisão de aviação civil há anos tenta se recuperar dos problemas em sua frota de jatos comerciais 737 Max, o golpe espacial é duro. A multinacional fora selecionada pela Nasa em 2014, com a SpaceX de Elon Musk, para desenvolver cápsulas capazes de absorver o ir e vir de astronautas da Terra à Estação Espacial Internacional. Para isso, embolsou US$ 4,2 bilhões do governo americano, mas já gastou mais de um terço para corrigir falhas técnicas, de software, de material inflamável, válvulas defeituosas e sistema de paraquedas falho. Enquanto isso, Musk nada de braçada. Será considerado o salvador da pátria quando sua espaçonave Crew Dragon, da SpaceX, decolar de Cabo Canaveral e resgatar Suni e Butch.
Uma longa permanência em órbita acarreta alterações físicas conhecidas. Sem o efeito da gravidade, o rosto tende a inchar, uma vez que o sangue e os fluidos corporais ficam estocados na parte superior do corpo. A massa muscular também pode diminuir em até 30% em casos de estadia longa, e a massa óssea sofre desmineralização com perda de força. A visão, a pele e até mesmo o desempenho cognitivo costumam exigir cuidados especiais no retorno dos desbravadores espaciais.
Muitos precisam reaprender a andar com naturalidade. Por isso, recomenda-se aqui a Suni e Butch a leitura de “Caminhar, uma filosofia”, do pensador francês Frédéric Gros. Trata-se de uma coletânea de ensaios, sensível e erudita, sobre as muitas maneiras de irmos de A até B — seja em peregrinação, a passeio, em marcha de protesto, em fuga, para pensar, criar, aprender, Gros descreve assim nosso andar pela vida:
— Ao caminhar, você escapa da própria ideia de identidade, da tentação de ser alguém, de ter um nome e uma história... A liberdade no caminhar reside em não ser ninguém; pois o corpo que caminha não tem história, é apenas um redemoinho no fluxo da vida imemorial.
Dorrit Harazim
sábado, 28 de dezembro de 2024
Ainda restará Primavera?
Mas a Primavera chegará e eles, aqueles que nos bombardeiam, não encontrarão flores entre as bombas. Estaremos entre as árvores, a luz do sol nos banhará junto aos ninhos dos pardais. Eles, aqueles que nos bombardeiam, não terão sol, nem lugar para descansar, nem pernas para correrMosab Abu Toha, poeta de Gaza, premiado nos Estados Unidos
Então é Natal…
A nós, economistas, é ensinado nos livros textos que as forças do mercado levam sempre a um equilíbrio. O pior é que muitos economistas, assim como não economistas, passaram a acreditar nisso, apesar de todas as evidências em contrário!
Neste planeta cada vez mais desfigurado e conflagrado, onde está o equilíbrio? Estamos presenciando a aceleração dos desastres provocados pela intervenção humana na biosfera: gases de efeito estufa, resíduos sólidos, líquidos, plásticos, venenosos, …. Continuar a degradar leva-nos, não a um equilíbrio, mas ao seu contrário, ao rompimento do relativo equilíbrio climática dos últimos 10 a 12 mil anos, com consequências dantescas. Alguém ousaria dizer que esse processo não é parte da economia?
Com a multiplicação de guerras em nossa terra – em Gaza (Israel x Palestinos), na Europa (Rússia x Ocidente), na África (Yemen, Congo, Sudão), nas Américas (Estados x pretos pobres, indígenas e outros) e em tantos outros locais, onde está o equilíbrio? Mas, dirão alguns, isso não é economia, é sociedade! E então, pode a sociedade ser diferente, ou independente da economia? Claro que não!
Mais de meio século após o lançamento da música que dá título a este texto, o sonho persiste. Infelizmente apenas como sonho, ou como um sonho que (ainda) não se tornou realidade. São muitos os pensadores que constataram a importância do sonho como impulsionador do futuro, como farol a iluminar o caminho a se trilhar e o objetivo a alcançar.
O suposto realista, que acredita nas forças de mercado levando ao equilíbrio, descarta e até ridiculariza os sonhos, constatando a realidade da violência e acreditando na inevitabilidade da sua permanência. O mesmo suposto realista acredita, também, em sonhos criados por gananciosos inventores de miragens. Por exemplo, “no futuro, todos teremos carros voadores”; “no futuro, o “desenvolvimento” dará a todos excelentes condições de vida”; “tome hormônios e, no futuro, serás como os famosos”! Inventores de futuros irrealizáveis que buscam apenas se beneficiar, enganando e prejudicando a população, como ensinou e fez Edward Bernays, sobrinho do Freud. Vejam seu livro, intitulado Propaganda.
E, de desequilíbrio em desequilíbrio, vamos todos a mais um ano novo cheio de medos, o contrário do que propunham Lennon e Yoko. Contrariando os sonhadores supostos realistas, vamos agir para construir, sim, a utopia de um mundo de paz e melhorias continuadas da qualidade de vida dos 80% de humanos que hoje “não vivem, apenas aguentam”.
Eduardo Fernandez Silva
O ano zero do novo extremismo
Agora, um ano depois, é fácil constatar que os sinais de divisão ganharam ainda mais expressão ao longo dos últimos doze meses. E traduziram-se em muitas mudanças, cujas consequências vão, com toda a certeza, perdurar nos próximos tempos.
Este foi o ano em que cerca de dois mil milhões de pessoas foram chamadas a votar, nas múltiplas eleições que se realizaram em mais de sete dezenas de países, e em que, por isso mesmo, ficaram evidentes algumas tendências: a penalização dos que ocupavam o poder, a emergência de forças radicais, o esvaziamento acentuado do centro político e o crescimento do radicalismo.
Em sucessivas eleições, nas mais diversas geografias, os eleitores usaram o voto para exprimir a sua revolta. E fizeram-no sem demonstrarem a mínima preocupação com conceitos anteriormente valorizados como a estabilidade política ou a formação de maiorias políticas sólidas. O objetivo, em muitos casos, foi unicamente o de procurar castigar quem estava no governo – mesmo quando, como sucedia em diversos casos, os indicadores económicos eram positivos, embora essas “boas contas” nem sempre fossem percetíveis pela opinião pública.
De certa maneira, este foi o ano que encerrou um ciclo iniciado em 2016, com a eleição surpreendente de Donald Trump e o Brexit no Reino Unido: o princípio do fim de uma certa era de globalização e de uma ordem internacional estável, dominada pelos Estados Unidos da América. Esse caminho tinha sido interrompido com a pandemia – que deixou a nu a teia de dependências dos países em relação às cadeias globais de produção – mas foi depois retomado, ainda com maior vigor e ânimo, logo que desapareceram as máscaras anti-Covid, por todos os que se sentiam atingidos pela crescente desigualdade e a falta de oportunidades.
Este 2024 que agora termina pode ter sido o ano zero de uma nova era de extremismo, que ninguém consegue prever quanto tempo poderá durar. Sabemos, no entanto, que as mudanças que se espera que ocorram no próximo ano poderão ser muito mais radicais do que tudo o que vimos até agora. Até porque, desta vez, já ninguém é apanhado de surpresa. E, como acontece sempre no início de um novo ciclo, há sempre quem decide rapidamente mudar de convicções e tentar aproveitar a nova onda, para seu benefício ou como estratégia de sobrevivência. Sabemos que Donald Trump promete virar os EUA de pernas para o ar e que as ondas de choque da sua “revolução” vão fazer-se sentir por todo o planeta. A política de Washington vai transformar-se radicalmente, de uma forma nunca vista em muitas décadas, nomeadamente na sua relação com o resto do mundo. E os apelos ao isolacionismo vão repetir-se, por contágio, em diversos países.
A Europa vai viver, seguramente, um dos seus momentos mais difíceis, com a Alemanha e a França em dificuldades económicas e próximas do caos político. Com o eixo da União Europeia a deslocar-se cada vez mais Leste e com a força crescente dos partidos extremistas antidemocráticos, não será fácil manter a coesão do bloco, em especial nos assuntos relacionados com os direitos, liberdades e garantias.
Neste ano zero desta nova era de extremismo, que é também de polarização extrema, já se percebeu como o discurso dos partidos de centro-direita foi capturado pela retórica radical. Em especial nos temas relacionados com a segurança e a imigração. Pelos últimos sinais, nomeadamente a inenarrável operação policial na zona do Martim Moniz, em Lisboa, o que podemos esperar, no próximo ano, é que a distinção entre os dois discursos será ainda menor.
Palavras em agonia
Mas, e se a decolagem não for um lugar, e sim uma ação? Mais correto, então, seria dizer "Dentro de instantes iremos decolar". Ou "Estamos perto de decolar". Isso obrigaria, no entanto, ao uso de uma palavra que está se despedindo da língua, como se seu significado tivesse se exaurido. A palavra é "perto". As pessoas agora dizem "Estou próximo de sair", não "perto de sair", "Estou próximo de conseguir emprego", não "perto de conseguir emprego".
"Perto" não é a única palavra em agonia entre nós. Há muitas mais, substituídas por outras que se instalaram e ganharam a preferência nacional. Exemplos. Ninguém mais coloca algo em lugar nenhum —"posiciona". Ninguém termina mais nada —"finaliza". Ninguém mais tem resistência física ou emocional —é "resiliente". Ninguém mais completa ou enriquece um texto —"atualiza".
Ninguém mais vive isso ou aquilo —"vivencia". Ninguém mais acrescenta algo ou alguém — "adiciona". Ninguém mais entrega ou manda alguma coisa — "encaminha". Se for uma entrega com endereço, "direciona". E não há mais possibilidade de você ter respeito ou consideração por alguém, só "empatia". A "empatia" abunda. "Empatia" se tornou sinônimo até de simpatia, embora sejam muito diferentes, tanto que o antônimo de empático não é antipático, mas indiferente.
Sei bem que falar das palavras que estão sendo expulsas da língua é coisa desagradável, polêmica, difícil de enfocar. A não ser que, contumaz no uso do eu foco, tu focas, ele foca, nós focamos, vós focais e eles focam, você "foque" nelas.
O experimento social de Elon Musk com a humanidade
Certos perfis que compartilhavam informações enganosas sobre política e notícias — alguns dos quais foram acusados de incitar ódio — ganharam destaque recentemente.
Tudo isso é importante porque o X pode não ter tantos usuários quanto outras plataformas de rede social, mas parece ter um impacto significativo nas discussões políticas.
Além de ser um site em que alguns políticos importantes, governos e forças policiais compartilham declarações e pontos de vista, agora seu proprietário, Elon Musk, se alinhou diretamente com Donald Trump, um relacionamento que pode redefinir a forma como os donos de outras redes sociais lidam com o próximo presidente dos EUA.
Mas, afinal, o que está por trás desta nova onda de mudanças? Houve uma alteração no perfil demográfico das pessoas que usam o X no último ano — ou isso pode ser resultado de decisões deliberadas tomadas pelos que estão no comando da plataforma?
Há dois meses, o Inevitable West não existia no X. Agora, o perfil, que se autodenomina "defensor dos valores e da cultura ocidentais", conta com 131.600 seguidores (número que está crescendo rapidamente). Ele está obtendo cerca de 30 milhões de visualizações por dia entre todas as suas postagens, de acordo com seu criador. Musk até respondeu às postagens do Inevitable West no X.
Suas publicações recentes, que geralmente apresentam legendas no estilo de alertas de notícias, incluem um vídeo falso que mostra Trump dizendo ao primeiro-ministro britânico que vai "invadir seu país, e tornar a Grã-Bretanha grande novamente".
Também foram publicadas várias postagens em apoio ao ativista de direita radical Tommy Robinson, assim como algumas alegações desmentidas sobre os protestos dos agricultores no Reino Unido e um ataque a faca em Southport, no qual três crianças foram mortas durante uma oficina de dança inspirada nas músicas de Taylor Swift.
O Inevitable West nega as acusações de promover desinformação e incitar abuso ou violência. "O objetivo da minha conta no X é ser a voz da maioria silenciosa do mundo ocidental", me contou seu criador. Ele se recusou a compartilhar sua identidade comigo quando nos correspondemos, mas afirma ser da "geração Z" e diz que "não é russo".
"Informações e opiniões sem censura vão levar inevitavelmente os EUA e todo o Ocidente e a Europa a se moverem mais para a direita, o que é comprovado pela eleição de Donald Trump e pela ascensão da direita radical na Europa", ele argumentou. "Globalmente, isso significaria que políticos e líderes corruptos seriam descobertos."
Ele parece ver a ascensão da sua conta como a "morte" daquilo que chamariam de "MSM" (abreviação em inglês para mainstream media), a mídia tradicional. Isso talvez não seja nenhuma surpresa, já que, após as eleições nos EUA, o próprio Musk disse aos usuários do X: "Vocês são a mídia agora".
Quando Musk adquiriu o Twitter, enfatizou a necessidade de abrigar todas as opiniões políticas e de se opor à censura por parte das empresas de rede social e dos governos.
As mudanças — incluindo demissões em massa e alterações nas políticas de moderação em relação a questões como desinformação política — começaram imediatamente.
Também houve várias alterações na natureza dos feeds, incluindo a criação de duas timelines separadas: "Seguindo", que apresenta as contas que você segue, e "Para você", que é selecionada por algoritmos, como no TikTok.
No entanto, ao longo de 2024, houve outra onda de mudanças que parecem ter transformado ainda mais a plataforma. A função de bloqueio foi alterada, o que significa que, se você bloquear uma conta, não estará protegido de que aquele perfil veja o que você posta. As curtidas, por sua vez, se tornaram privadas.
O site ainda apresenta o recurso de notas da comunidade, uma forma colaborativa de verificar ou refutar o que as postagens dizem, e os usuários podem pagar pelo tique azul, que antes era fornecido gratuitamente como um sinal de autenticação de que a pessoa era quem dizia ser.
Agora, porém, é necessário pagar pela assinatura do X Premium para receber uma marca de verificação. Há três níveis diferentes de assinatura disponíveis.
Os perfis Premium têm direito a mais privilégios e destaque — e podem ganhar dinheiro com o engajamento que recebem de outros perfis com marca de verificação. A partir de outubro, o X alterou suas regras de modo que, em vez de basear a receita de contas individuais em anúncios, ele agora leva em conta curtidas, compartilhamentos e comentários de outras contas Premium.
É claro que outros sites de rede social permitem que os usuários ganhem dinheiro com publicações e compartilhem conteúdo patrocinado — o que não é incomum —, mas a maioria das principais plataformas tem regras que permitem a elas desmonetizar ou suspender perfis que publicam desinformação.
O X não possui regras para desmonetizar contas por conta de postagens deste tipo, embora permita que os usuários adicionem notas da comunidade a tuítes enganosos ou falsos. E não permite "mídia enganosa", como vídeos manipulados ou gerados de forma sintética que "podem resultar em confusão generalizada sobre questões públicas, afetar a segurança pública ou causar danos graves".
De acordo com o Inevitable West, o X agora pode se tornar um emprego. Ele me disse que, quando estava postando cerca de sete vezes por dia, era capaz de ganhar pelo menos "US$ 2,5 mil por mês".
Ele contou que conhece outra conta que ganha "US$ 25 mil" por mês — esta conta supostamente tem 500 mil seguidores e publica "aproximadamente 30" vezes por dia.
Às vezes, a mudança pode ocorrer quando um site altera os algoritmos (ou sistemas de recomendação) de alguma forma, por exemplo, para impulsionar e beneficiar determinadas postagens. O que não está claro é se este pode ou não ser o caso aqui.
Sem dúvida, observei uma diferença na variedade de postagens recomendadas no feed "Para você", em comparação com o ano anterior.
Isso é algo que analisei por meio do projeto "Undercover Voter", no qual criei e administrei contas de rede social pertencentes a mais de 20 personagens fictícios, baseados nos EUA e no Reino Unido, que refletem pontos de vista de todo o espectro político.
Estes personagens têm perfis nos principais sites, incluindo o X, o que me permitiu analisar as diferentes contas que eram recomendadas nas redes sociais. As contas são privadas e não enviam mensagens para pessoas reais nem têm amigos.
Independentemente das diferentes visões políticas que as contas manifestam, observei que, nos últimos seis meses deste ano, seus feeds passaram a ser dominados por postagens que geram divisão e tendem a apresentar mais apoio a Trump ou oposição a políticos e pessoas no mundo todo que não são vistos como alinhados com o presidente eleito dos EUA.
No entanto, tudo isso parece ser consequência do ambiente e das diversas alterações no site como um todo, e não apenas um simples ajuste no algoritmo.
Andrew Kaung, que foi analista de segurança do usuário no TikTok e também trabalhou na Meta, passou anos observando como esses sistemas de recomendação podem ser atualizados e alterados. "O que vimos no X não se trata apenas da mudança no algoritmo, mas também da falta de mecanismos de segurança em nome da liberdade de expressão", diz ele.
Nina Jankowicz foi diretora executiva do Conselho de Governança da Desinformação dos EUA, criado em 2022 para aconselhar o Departamento de Segurança Interna em questões como a desinformação russa e, mais tarde, dissolvido diante das críticas e temores em relação à liberdade de expressão e transparência.
Ela argumenta que os algoritmos do X agora "privilegiam a retórica controversa e enganosa", e sugere que os usuários que publicam conteúdo menos polêmico tiveram uma redução nas visualizações.
"A consequência é que a plataforma que se apresenta como uma praça pública é um ambiente extraordinariamente artificial, um verdadeiro black mirror das partes mais preocupantes da natureza humana."
Enviei mensagens para dezenas de outras contas grandes, que falaram sobre a influência cada vez maior que são capazes de ter na plataforma, muitas vezes de forma inesperada.
"Nunca tive a intenção de me tornar um influenciador", admite um perfil chamado Andi, que diz ser baseado em Nova York. "Mas achei que, como tenho esta plataforma, deveria tentar usá-la para promover minhas próprias causas."
Ele conta como compartilhou um meme de esquilo — após saber que um esquilo foi sacrificado por causa do risco de transmitir raiva — que agora tem 45 milhões de visualizações. E compara seu alcance com o do popular podcaster Joe Rogan, que tem 14,5 milhões de seguidores no X.
"Mas eu não sou nenhum Joe Rogan, então é realmente especial que algo que eu poste possa ter quase a mesma audiência."
Andi e outras contas do X com quem me correspondi acreditam que as mudanças no X são boas, uma vez que agora elas têm um alcance que jamais poderiam ter imaginado.
No início deste mês, um ataque a uma feira de Natal na Alemanha, que matou cinco pessoas e feriu mais de 200, foi amplamente debatido no X. Grande parte da discussão girava em torno do suspeito, um residente alemão que nasceu na Arábia Saudita.
Os promotores alemães disseram que a investigação está em andamento, mas sugeriram que um possível motivo para o ataque "pode ter sido a insatisfação com a forma como os refugiados da Arábia Saudita são tratados na Alemanha".
O perfil Inevitable West estava entre os que comentaram: "Invadam as mesquitas. Proíbam o Alcorão. Realizem deportações em massa. Nossa paciência oficialmente acabou".
A conta foi acusada de incitar o ódio com postagens sobre questões como imigração e religião. Outros usuários disseram que isso poderia incitar a violência. Mas o perfil respondeu dizendo que estava "incitando a segurança, na verdade".
Quando questionado sobre isso, o Inevitable West me disse que diria o mesmo sobre outras religiões. Separadamente, também afirmou que nunca excluiria suas próprias publicações, mesmo quando elas se revelassem falsas.
Enquanto isso, seu conteúdo está sendo visto por feeds em todo o mundo.
Há muito tempo, o Twitter tem sido acusado de viés nos métodos de moderação, tanto antes quanto depois que Musk adquiriu a empresa, além de alvo de questionamentos sobre se a plataforma limitava anteriormente a liberdade de expressão.
Conversei com pessoas de dentro do Twitter sobre isso para uma investigação do programa Panorama, da BBC, que foi ao ar em 2023, e eles me disseram que, na opinião deles, a empresa teria dificuldades para proteger os usuários contra trollagem, desinformação coordenada pelo Estado e exploração sexual infantil, devido, entre outras coisas, às demissões em massa.
Na ocasião, o X não respondeu às questões levantadas. Posteriormente, Musk tuitou um artigo da BBC sobre o episódio do Panorama com a legenda: "Desculpem-me por ter transformado o Twitter de um paraíso acolhedor em um lugar que tem... trolls". Ele também declarou que "os trolls são divertidos".
Separadamente, Musk havia dito que "não tinha escolha" a não ser reduzir a força de trabalho da empresa devido a perdas financeiras.
Lisa Jennings Young, ex-chefe de design de conteúdo do X, que trabalhou lá até 2022, afirma: "Sinto que estamos vivendo um grande experimento social [sobre a humanidade]".
Não tem um objetivo específico, segundo ela. "Não é um experimento de ciências sociais controlado, [mas um] do qual todos nós fazemos parte". Ninguém sabe realmente qual pode ser o resultado final, ela argumenta.
Alguns usuários do X me disseram que recentemente decidiram migrar para outras plataformas de rede social, incluindo o Bluesky, que começou em 2019 como um site experimental de mídia social "descentralizado", criado pelo ex-chefe do Twitter, Jack Dorsey. Atualmente, tem mais de 20 milhões de usuários.
É difícil determinar exatamente quantos usuários reais optaram por deixar o X — ou até mesmo se cresceu.
Elon Musk e o X não responderam às questões levantadas nesta reportagem, nem aos pedidos de entrevista.
O X diz que sua prioridade é proteger e defender a voz do usuário e tem diretrizes sobre ódio, que afirmam que os usuários "não podem atacar outras pessoas com abuso ou assédio ou incentivar outras pessoas a fazer isso".
Um porta-voz do X disse anteriormente à BBC: "O X possui uma série de políticas e recursos para proteger o debate em torno das eleições. Rotularemos o conteúdo que violar nossa política de mídia manipulada e gerada de forma sintética e removeremos contas envolvidas na manipulação da plataforma ou em outras violações graves de nossas regras".
O site também informou à Comissão Europeia em novembro: "[O X] se esforça para ser a praça pública da internet, promovendo e protegendo a liberdade de expressão".
Desde a eleição presidencial de 2024 nos Estados Unidos, o X consolidou sua posição como fonte de atualizações políticas sobre o novo governo Trump.
Musk apoiou Trump como candidato em julho. Agora, ele foi convidado a ocupar um cargo no governo, liderando uma nova equipe de consultoria chamada Departamento de Eficiência Governamental (Doge, na sigla em inglês).
Sam Freeman, ex-funcionário do Meta que agora trabalha como especialista em confiança e segurança para uma empresa chamada Cinder, acredita que isso também vai ter um efeito mais amplo sobre outros donos de plataformas de rede social.
Ele prevê que eles vão "precisar ter um relacionamento mais pessoal com o novo governo", principalmente se sentirem uma pressão maior sobre a regulamentação e a segurança online.
Mark Zuckerberg, que fundou o Facebook (agora Meta) e desde então adquiriu o Instagram, jantou recentemente com Trump em sua residência em Mar-a-Lago.
O presidente eleito já havia atacado Zuckerberg em ocasiões anteriores, acusando sua plataforma, assim como outras, de parcialidade. "O Facebook, o Google e o Twitter, sem mencionar a mídia corrupta, estão muitíssimo do lado dos democratas de esquerda radical", escreveu Trump certa vez.
Será que o jantar poderia indicar um apaziguamento na relação deles? Certamente, sugere que Zuckerberg considera que se aproximar pelo menos um pouco de Trump pode ser do seu interesse.
O mesmo parece acontecer com o CEO do TikTok, Shou Zi Chew, que também teria se encontrado com Trump em Mar-a-Lago, enquanto a empresa de rede social luta contra os planos das autoridades dos EUA de proibir o aplicativo.
O governo americano alega que a empresa controladora do TikTok, a ByteDance, tem vínculos com o Estado chinês. Tanto o TikTok quanto a ByteDance negam. A Suprema Corte deve ouvir os argumentos legais do TikTok em janeiro.
No Reino Unido, entrará em vigor, em breve, a Lei de Segurança Online, segundo a qual as empresas vão ter que assumir compromissos com o órgão regulador, a Ofcom, sobre como combater conteúdo ilegal e publicações prejudiciais às crianças.
Na Austrália, os políticos foram além e aprovaram planos para proibir o uso das redes sociais por menores de 16 anos.
Mas, em última análise, considerando que muitas das principais plataformas de rede social estão baseadas nos EUA, é a abordagem do governo e do presidente americanos que pode ter o maior impacto.
A questão que permanece é qual é realmente a visão de Trump sobre isso — e se ele vai exigir que estas plataformas assumam responsabilidades de uma maneira diferente no futuro, ou não.
Os desdobramentos, seja qual for a direção que ele tomar, sem dúvida vão ser de longo alcance.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2024
Sobrecarga da violência
Ainda existe bondade, decência, pessoas que se esforçam para fazer o que é certo, e isso é fácil de esquecer, assim como é fácil se sentir sobrecarregado pelas notícias negativas de ódio e violência.
Ciência a serviço do mal
Algo parecido vale para drogas. A destilação do álcool, a biossíntese da cocaína e a produção de maconha com níveis cada vez mais altos de THC agravaram nossos problemas com essas drogas. Era difícil tornar-se alcoólatra ou cocainômano consumindo só cerveja pouco fermentada e chá de folhas de coca.
E a coisa fica pior quando, além de desenvolver produtos cada vez mais viciantes, empregamos também técnicas de propaganda cada vez mais sofisticadas para convencer as pessoas a consumi-los. É o que acontece agora no mundo das apostas. Os cassinos vieram para os bolsos dos jogadores (celulares), que ainda têm de lidar com um tipo de publicidade particularmente enganoso, que, negando o básico da matemática, sugere que as apostas são caminho seguro para o enriquecimento.
Meus pendores libertários me impedem de defender qualquer tipo de proibição. Já vimos várias vezes que isso não funciona. Mas é perfeitamente possível regular, dando ao consumidor alguma chance de defesa contra os estímulos supernormais reforçados pela publicidade.
O que escorre sob a ponte da civilidade
As noções de sociopatia e psicopatia, pertencentes ao campo cognitivo desse fenômeno, têm valência política. Mas não são exclusivas de época nem de classe social. Ajudam a explicar o comportamento da Polícia Militar de São Paulo. Uma sociopatia fardada é matriz da violência de psicopatas contra marginais pés de chinelos, exibindo estatísticas ineficazes, recuando apenas da boca para fora ante o alarme da mídia. À boca pequena, há o consenso de que isso rende votos, de que extermínio teria grande aprovação popular. O "tô nem aí" do governador é a frase mais obscena do ano.
Os alvos críticos da agenda progressista costumam ser os aparatos de Estado, a economia e as elites. É difícil sondar a alma popular, as pesquisas surfam na superfície plebiscitária dos números. Daí a surpresa quando ressoam vozes aprobatórias nos EUA para o assassinato de alto executivo da indústria da saúde. O ato frio do acusado, filho da elite americana, fica em segundo plano pela aparência e educação do jovem.
Pode-se especular que o sentimento seria outro se o assassino fosse negro. Ainda assim, o que está mesmo presente é a violência latente, em intensidade variável, numa sociedade que favorece impulsões de vingança. É possível lançar um olhar crítico para as estruturas, as diferenças de classe em termos de renda e cultura. Mas há outro lado, despercebido pelo racionalismo analítico, presente na grande literatura: "Só se pode viver perto do outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura" (Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa).
Entretanto amor e ódio são modos fundamentais de existência, permeáveis à passagem de um para o outro, o que se exacerba quando a incivilidade é alimentada pelo debilitamento das instituições e dos processos civilizatórios. Por isso, na percepção de desamparo ou de medo, em plena modernidade civil, o odioso sentimento de vingança ainda se acende como brasa do passado. Intemporal, ele irrompe na insegurança cidadã diante da criminalidade ou de impiedades industriais. E, claro, preside à popularidade eleitoral de sociopatas.
Sob a ponte da civilidade, escorre, surdo, o ódio, fonte do inaceitável. É o que sempre acontece nos picos de barbárie. Dirigentes que hoje o estimulam transbordam da lata de lixo da história como baratas refratárias ao espírito do tempo, que é avesso ao patológico "espírito de corpo" de tropas fardadas. O tempo vivido é de repúdio ao horror em estado puro do passado.
Muniz Sodré
Natal em Gaza: 14 meses entrincheirados na igreja
O telefone toca todos os dias às oito da tarde há pouco mais de 14 meses. Dois homens se cumprimentam calorosamente em espanhol com sotaque de Buenos Aires. Um é o Papa Francisco, o outro, Gabriel Romanelli, pároco da Igreja da Sagrada Família em Gaza, onde desde outubro de 2023 mais de 400 cristãos palestinos da Faixa se refugiaram da guerra, do deslocamento e da fome.
“Ele nos liga todos os dias, onde quer que esteja, para nos abençoar, agradecer e enviar incentivo”, explica Romanelli, nascido em Buenos Aires, há 55 anos, em entrevista por telefone a este jornal. A voz do padre ouve-se serena e até jovial, embora assegure que a vida quotidiana é uma “loucura” e que a guerra está a afectar as pessoas que partilham o pequeno espaço da paróquia. “Tudo é necessário e até as menores coisas, como pegar um copo d’água, são complicadas”, afirma.
A Sagrada Família é a única igreja católica na Faixa, onde antes da guerra havia exatamente 1.017 cristãos, 135 deles católicos e o resto ortodoxos gregos, numa população total de cerca de 2,2 milhões de pessoas. Esta paróquia, localizada no coração da cidade de Gaza, no bairro de Al Zeitun, acolhe hoje pouco menos de 500 pessoas, incluindo três padres, incluindo Romanelli, cinco freiras e 58 pessoas com deficiência, todos muçulmanos e a maioria crianças que necessitam de cuidados especiais.
“Os bombardeios são constantes. Dia e noite e às vezes muito próximos. Assim como o drone dos drones israelenses, sobrevoando o tempo todo. O pior é que quando não os ouvimos por uma ou duas horas, ficamos com medo porque não sabemos o que vai acontecer”, explica Romanelli.
É de se perguntar quando isso vai parar e o que virá a seguir, porque as pessoas querem permanecer em suas terras. Esta igreja, que durante anos foi um oásis de paz e espiritualidade, tornou-se um hospital, cemitério e acima de tudo um refúgio.
Todos os dias são parecidos e alguns fiéis também perdem a noção do tempo. Há pessoas, sobretudo idosos e doentes, que não põem os pés na rua desde o início da guerra, em outubro de 2023. “Só saio se for estritamente necessário. Eu me persigno e vou. Muitas vezes me sinto perdido porque muitos pontos de referência não existem mais. A cidade foi esmagada. Ontem saí por causa de um problema médico e vi um homem vendendo dois potes de azeitonas. Fazia meses que não comíamos azeitonas. O barco me custou 65 shekels (17 euros)”, afirma este sacerdote argentino, pároco em Gaza durante cinco anos.
“É estressante e angustiante. É de se perguntar quando isso vai parar e o que virá a seguir, porque as pessoas querem permanecer em suas terras. Esta igreja, que durante anos foi um oásis de paz e espiritualidade, tornou-se um hospital, cemitério e, acima de tudo, um refúgio . Mas a nossa missão continua e ajudaremos o máximo de pessoas que pudermos”, acrescenta.
A paróquia de Gaza, devido à violência cíclica que a Faixa sofre há anos, preparou-se para uma emergência antes de outubro de 2023. Tinham guardado colchões, cobertores, pilhas e alimentos não perecíveis para que ali pudessem abrigar cerca de 80 pessoas alguns dias. Mas estas disposições foram insuficientes porque nos primeiros dias da guerra já havia 200 pessoas na igreja. E então chegaram mais pessoas, convencidas de que não havia um único lugar seguro na Faixa e que queriam permanecer na igreja, apesar das ordens israelenses para evacuar a área.
“Nada é normal e tudo é muito difícil. Às vezes leva um dia para conseguir um remédio simples para uma pessoa idosa. Isto é, se você tiver sorte. Tenho a sensação de correr e correr sem descanso. Gerenciar o que falta, o que comer, se há cobertores para todos, se chega água… Corremos muitos riscos, mas estou feliz por poder fazer isso”, disse George Antone, pai que tem refugiou-se na igreja, explica por telefone.
Este grupo de cristãos viveu momentos muito difíceis, em que nem sequer podiam sair para o pátio interior devido aos bombardeamentos. Houve vários feridos por estilhaços e tiros e duas mulheres que se abrigavam na igreja foram mortas a tiros por atiradores israelenses em dezembro de 2023. Também tiveram que racionar alimentos e, se tivessem água, era graças a um antigo poço localizado dentro da paróquia. O complexo paroquial, composto por três pequenos edifícios, tem três geradores, mas a falta de combustível faz com que quase não possam ser utilizados e a energia provém de painéis solares com os quais carregam baterias. “Felizmente, faz sol em Gaza. Sem essas baterias não podemos falar ao telefone, consultar a internet ou purificar a água do poço, mas temos que nos organizar bem para que durem”, explica Romanelli, que foi preso fora da Faixa pela guerra por motivos pessoais e foi poder retornar em maio.
A guerra prolongou-se e o norte de Gaza foi atingido de forma particularmente dura por bombas, pela falta de ajuda humanitária e por deslocações em massa. “O Patriarcado Latino de Jerusalém, nossa diocese, com a ajuda do Papa Francisco e de organizações como a Ordem de Malta, obteve permissão para a entrada de alguns caminhões e pudemos ter alimentos e distribuí-los na vizinhança. A última vez que vieram foi no mês passado, trouxeram-nos mantimentos e também pudemos dar uma caixa de alimentos a 9.000 famílias da região”, detalha o sacerdote argentino.
Aos mais de 400 cristãos que se refugiaram na igreja católica, somaram-se outros 200 que procuraram abrigo na igreja ortodoxa de São Porfírio, situada a poucos metros de distância. Quase 300 membros da comunidade conseguiram sair via Egito graças a um passaporte estrangeiro ou salvo-conduto nos primeiros meses da guerra. “Existem agora cerca de 37 cristãos no sul e 46 morreram desde o início da guerra, 20 deles de forma violenta, 17 deles no bombardeamento da Igreja Ortodoxa de São Porfírio em Outubro de 2023. Para uma comunidade tão pequena, é uma figura terrível”, lembra o padre. A comunidade cristã em Gaza não parou de diminuir durante anos. Em 2007, havia cerca de 7 mil cristãos na Faixa. Em todos os territórios palestinos, a comunidade não chega a 2% da população.
quarta-feira, 25 de dezembro de 2024
A 'sombra de futuro' de um Natal memorável
“Joyeux Noël” é inteiramente dedicado à trégua de Natal de 1914, quando soldados franceses, britânicos e alemães, por iniciativa própria, interromperam os combates e confraternizaram espontaneamente no front. São histórias individuais e coletivas dos soldados que participam daquele momento histórico, com destaque para um cantor de ópera alemão (Nikolaus Sprink) que, ao lado de sua amada Anna Sorensen, canta para os soldados na linha de frente.
Indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, em 2006, o filme mostra como os soldados revelaram compaixão e solidariedade, contrariando as ordens de combate, a partir de um canto natalino que aproximou os dois lados inimigos. Apesar dos diferentes idiomas, havia identidade cultural entre os soldados. “Joyeux Noël” é uma reflexão sobre o poder da empatia e da paz.
Entretanto, empatia e paz fazem muita falta, 110 anos depois. Vivemos um interregno semelhante ao que antecedeu a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O mundo desaprendeu e continua sendo palco de guerras sangrentas. A crise humanitária é significativa, com 76 milhões de deslocados, a maioria por causa desses conflitos. Segundo o Índice Global da Paz, houve um pico histórico, com 56 combates registrados em 2024, o maior número desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Em fevereiro de 2022, a Rússia iniciou uma invasão em larga escala na Ucrânia, resultando em combates intensos e significativas perdas humanas, até agora, estimadas em 190 mil. Na Palestina, o conflito de Gaza, iniciado após um ataque terrorista do Hamas ao território israelense, já provocou a morte de 45 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças, durante os bombardeios das Forças de Defesa de Israel (FDI).
No Iêmen, desde 2015, morreram 337 mil pessoas na guerra civil protagonizada por rebeldes houthis. Após o golpe militar de 2021, até hoje Mianmar enfrenta confrontos entre as forças armadas e grupos de resistência, além de tensões étnicas e religiosas. Na Etiópia, desde 2020, a região de Tigré é palco de confrontos entre o governo etíope e a Frente de Libertação do Povo Tigré, com 100 mil mortos. Em Burkina Fazo, insurgências jihadistas, desde 2016, resultaram em deslocamentos e mortes.
Na Nigéria, o Boko Haram e conflitos entre pastores e agricultores causaram 368 mil mortes e deslocamentos de milhões de nigerianos. Desde abril de 2023, o Sudão enfrenta confrontos entre forças militares rivais. Iniciada em 2011, a Síria enfrenta um conflito complexo, que já matou 500 mil pessoas e agora, com a fuga do ditador Bashar Hafez al-Assa para a Rússia, entrou numa nova etapa, também incerta.
Por tudo isso, a confraternização de Natal de 1914 foi um evento extraordinário. Na véspera de Natal e no dia 25 de dezembro de 1914, os soldados cantaram canções natalinas em suas respectivas línguas, como o famoso “Stille Nacht” (“Noite Feliz). Emergiram das trincheiras desarmados, trocaram presentes e se abraçaram. Confraternizaram a ponto de jogar futebol na chamada “terra de ninguém”. O historiador britânico Tony Ashworth conta que o episódio deu origem a um pacto de não agressão do tipo “viva e deixe viver” ao longo de todo o front, que perdurou por dois anos.
Um estudo de estado-maior do Exército britânico sobre o fenômeno, denominado “sombra de futuro”, demonstrou que os soldados dos dois lados ganhavam tempo para permanecerem vivos até a guerra acabar. No “esconde-esconde”, o outro lado sabia onde o adversário estaria e/ou atiraria. A cooperação mútua era uma estratégia “olho por olho” invertida, que alternava retaliação de baixa letalidade, indesejável para os generais, mas muito vantajosa para os soldados. Saiam até das trincheiras para urinar ou fumar.
Na segunda-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um pronunciamento de Natal na linha de um armistício político. “Todas e todos vocês que ajudam a construir esse grande país. O Natal é um bom momento para relembrarmos os ensinamentos de Cristo: a compaixão, a fraternidade, o respeito e o amor ao próximo. Meu desejo é que esses ensinamentos estejam presentes não apenas no Natal, mas em todos os dias de nossas vidas”. Sim, seria muito bom que a política voltasse à civilidade entre adversários, de parte a parte, com menos ódio e mais empatia.
Luiz Carlos Azedo
O agro e a fome: dilema brasileiro
Por outro lado, entre janeiro e outubro de 2024, as exportações do agronegócio brasileiro somaram US$ 140,02 bilhões, representando 49,2% da pauta exportadora total brasileira no período. No livro Direito econômico e soberania alimentar, procuro contribuir para o diagnóstico e a solução desse dilema histórico: somos uma potência na produção agrícola e alimentar convivendo com o drama da fome e dos altos preços dos alimentos. Tal situação não é aceitável. Somos e devemos ser melhores do que isso. Podemos alimentar o mundo, mas devemos alimentar os brasileiros.
A fome é inescapável à história. Josué de Castro demonstra que o problema atinge os continentes de forma desigual, determinando a organização da vida humana de modo variado, a depender da região geográfica, do meio ambiente, dos modos de vida. Em suas palavras: a fome é uma "praga fabricada pelo homem".
Desde a fome ideologicamente apresentada como "fenômeno natural" e ferramenta do equilíbrio populacional (Malthus) à expansão colonial europeia do século 19, impulsionada pela necessidade de alimentos; até as greves de fome das mulheres inglesas pelo direito de votar no início do século 20, ou de Gandhi na luta pela independência da Índia; a fome é relacionada ao poder. O livro pretende estudar e ofertar soluções a esse dilema. Imaginar e propor soluções para o Brasil que queremos.
Para desvelar a estruturação social da produção e distribuição de alimentos, temos que discutir as noções de direito humano à alimentação, segurança alimentar, soberania alimentar e soberania sobre os recursos naturais, que implicam distintas perspectivas políticas e econômicas, com formas jurídicas diversas. As relações entre Estados nacionais e a conformação do sistema alimentar mundial a partir das suas estratégias de soberania alimentar devem ser conhecidas, pois a organização e o controle da produção e comércio alimentar ocorrem no âmbito do "sistema alimentar mundial", em que os Estados centrais e suas corporações ocupam e disputam constantemente posições de soberania e poder.
Os países desenvolvidos mobilizam diversos e consideráveis recursos visando à garantia de abastecimento alimentar, preços adequados aos produtores agrícolas, controle de tecnologias estratégicas e mercados internacionais para a diversificada gama de produtos agrícolas, que vão desde commodities até insumos (sementes e fertilizantes) e equipamentos de alta complexidade.
O comando da Organização Mundial do Comércio (OMC) na regulação do comércio internacional, instrumental aos interesses dos países centrais e suas corporações produtivas e financeiras, bem como a crise da hegemonia norte-americana frente à China, são processos a serem desvendados. As tensões distributivas entre centro e periferia e internas a cada país expressam o exercício do poder em condições sociais determinadas e apenas podem ser apreendidas por análises específicas: a teoria do subdesenvolvimento de Celso Furtado nos permite decifrar as questões agrária e agrícola brasileiras, cuja solução permanece inacabada, como demonstra o complexo produtivo da soja. Para resolver nossos problemas, temos que pensar com a própria cabeça.
O direito é uma arena central dessa disputa de poder: a ordem econômica brasileira, com seus comandos finalísticos de desenvolvimento, soberania, erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais, determina a política agrária, agrícola e alimentar, enfatizando a simultânea dimensão ecológica e tecnológica do desenvolvimento. Os deveres com a alimentação da população pertencem e obrigam a todos os entes da federação, em cooperação. Não é aceitável haver fome em uma potência agrário-exportadora. O Brasil dará o passo político para superar esse atraso e será a generosa nação sonhada pelo fundador de Brasília, Juscelino Kubitschek.
Esta não é uma comédia natalina
Lively protagonizou, no meio do ano, o drama romântico “É assim que acaba”, dirigido pelo ator com quem contracenou, Justin Baldoni, e produzido por Jamey Heath. Os dois, vozes militantes em defesa de mulheres assediadas no movimento #MeToo, tornaram a filmagem um pequeno inferno para a atriz. Baldoni insistia em beijos não previstos, tentou inserir cenas de sexo que não estavam no roteiro. Tanto ele quanto o produtor entravam no camarim de Lively, sem bater, quando ela estava ainda se vestindo. Heath mostrou para ela fotos de sua mulher nua, no celular. O ambiente era consistentemente sexualizado por ambos. Incomodada, ela reclamou com o estúdio e exigiu a presença de alguém que gerenciasse as situações de intimidade no set de filmagem. É uma profissão recente, cada vez mais comum para evitar justamente esse tipo de constrangimento.
Quando o lançamento se aproximava, receosos de que a situação fosse tornada pública, produtor e diretor decidiram contratar uma agência de comunicação que faz esses tipos de ataque. Toda a estratégia foi montada por Melissa Nathan, especialista em “gerência de crise de imagem”.
A ação não é complexa. A agência contrata gente que lidera enxames de ataques em inúmeras redes. Um lança aqui uma teoria da conspiração, outro faz uma acusação, uma insinuação. Mas não é só isso. Os contratados controlam mais de um perfil falso e comentam também. O objetivo é construir uma onda em que, em determinado período, boa parte das postagens que se referissem a Blake Lively fosse negativa. E sempre dá certo.
A reportagem do Times não conta que essa técnica é antiga: foi desenvolvida por um ex-engenheiro da Olivetti chamado Gianroberto Casaleggio. Tudo se baseia numa descoberta que ele fez ainda no século passado. Se um pequeno número de pessoas controlando perfis falsos entra num debate on-line e toma parte da conversa levando o argumento para um dos lados, os outros usuários acompanham. Gente, no mundo digital ou no real, gosta de se colocar no lado da maioria. Casaleggio batizou a tendência de “avalanche de consenso”. Quando parece haver maioria para um lado num debate nas redes — se uma atriz é boa pessoa ou mau-caráter — um consenso se constrói.
Foi para isso que Melissa Nathan e seu time foram contratados: para construir o consenso, nas redes, de que Blake Lively era má. Traiçoeira. A onda on-line foi acompanhada de uma série de reportagens maldosas plantadas nas imprensas de fofoca americana e inglesa. Tudo, embora coordenado, parecia espontâneo aos olhos de quem via. O objetivo era esse mesmo. Caso vazassem as histórias a respeito do que ocorreu durante as filmagens de seu último filme romântico, ela seria percebida como mentirosa.
Grupos políticos apelam a esse tipo de estratégia toda hora, com militantes carregando palavras de ordem, explicação para acusações, criando situações que lhes pareçam favoráveis. Quando gente o suficiente, poucas centenas, se manifestam a respeito de um tema meio que simultaneamente numa rede, o assunto aflora. Parece ser algo que movimenta os interesses de muitos. Mas não necessariamente é — as centenas podem ser poucas dezenas operando um punhado de perfis falsos.
Redes sociais são suscetíveis a esse tipo de manipulação. E, nós, à formação de consensos nas bolhas a que pertencemos. É fácil criar um mundo preto no branco onde pessoas são ou boas ou más. Onde nos dividimos entre amigos e inimigos. A técnica de Casaleggio tem quase 30 anos e é dominante na comunicação digital faz quase dez. Se há surpresa, é uma só: que continue a ser usada sem que tenhamos um debate mais sério sobre como conversamos no mundo da internet.
Crônica de Natal (de novo)
Tenho inveja dos cronistas novos. Não porque eles não sabem que todas as crônicas de Natal já foram escritas e podem escrevê-las de novo. Mas porque podem fazer isto sem remorso.
Tem as muitas maneiras de atualizar a história da Natividade (Maria e José em fila do SUS, os Reis Magos chegando atrasados porque foram detidos por patrulhas israelenses ou militantes palestinos, Jesus vítima de uma bala perdida).
Tem as versões diferentes da cena na manjedoura, inclusive — juro que já li esta, se não a escrevi — narrada do ponto de vista do boi.
Todas já foram feitas.
Há tantas crônicas de Natal possíveis quanto há meios de se desejar felicidade ao próximo.
Os cartões de fim de ano são outro desafio à criatividade humana. Pois todas as suas variações também já foram inventadas.
Quando eu trabalhava em publicidade, todos os anos recebia encomendas de saudações de Natal e Ano Novo “diferentes”, porque os clientes não se contentavam em apenas desejar que o Natal fosse feliz e o Ano Novo fosse próspero.
Uma vez sugeri um cartão de Natal completamente branco com a frase “Aquelas coisas de sempre…” num canto, mas acho que este foi considerado diferente demais.
E dê-lhe poesia, pensamentos inspiradores, má literatura e a busca desesperada do diferente.
Um cartão em forma de sapato, de dentro do qual saía uma meia: a meia para o Papai Noel encher de presentes e o sapato para entrar no Ano Novo de pé direito. Coisas assim.
Enfim, tudo isto é apenas para desejar a você aquelas coisas de sempre…
Luís Fernando Veríssimo
Natal dos sensíveis
“Mas mais belos do que tudo eram os olhos, os olhos claros, luminosos de solidão e de doçura. No próprio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabeça para o céu. (…) A sua cara escorria sofrimento.”“O Homem”, Contos Exemplares, Sophia de Mello Breyner Andresen
Não tenho a menor pretensão de possuir uma perspicácia ou sensibilidade excepcionais. O que vejo não é mais do que outros vêem. Boa parte dos meus amigos, aliás, vê muito melhor do que eu. Nesta época, tudo serve para explorar emoções e apelar à sensibilidade. Sem querer magoar alguém, creio que se tira proventos ridículos do lirismo da época, fingindo sentimentos de rara empatia. Francisco Umbral diria disto, desta maré literária hipócrita e oportunista, “a la mierda com todo”.
Nos jornais multiplicam-se as crónicas emotivas e, em pouco menos de três dias, escutei duas crónicas radiofónicas sobre a indulgência para com pobres, espoliados e desafortunados, e como pessoas dessa condição despertaram nos locutores sentimentos de enorme e sincera piedade.
Como se sabe, o Natal é uma época propícia a doutrinas conservadoras e à antropologia da família. Aqueles que se encontram fora desse enquadramento tendem a sofrer por comparação e a ver a sua solidão mais destacada: a morte de familiares, a ausência, a separação sentem-se com maior ênfase; mas também os conflitos não resolvidos, os equívocos, os mal-entendidos que 11 meses do ano foram incapazes de extinguir. O nosso interior alimenta-se do nosso exterior, cujo centro é também o nosso centro.
Como o havia dito noutro lugar, vivemos tempos em que até as emoções se tornam mercadoria. Que nos interessa saber como alguém se emocionou com o pobre que viu na rua, com a velhinha solitária do quarto andar, com o pedinte que nos fere o orgulho? A todos aqueles que escrevem sobre bonitos sentimentos de desbragada empatia aconselho o seguinte: guardai a empatia no lugar mais recôndito do vosso ser, deixai de exibir fraternidade e de a prostituir em literatura sentimental, evitai, mesmo, incomodar-nos com a vossa compreensão franciscana. Nós sabemos como sois munidos de caridade, mas não fazei dela alarde nem no-la gritai aos ouvidos. Também a bondade reclama discrição.
E lembrai-vos: não sois mais do que os outros. Se tínheis uma nota e não a entregastes ao pedinte, esse é um problema vosso. Nós não queremos saber. Já nos basta ter de encarar pobres e miseráveis, diariamente, nas ruas do Porto, de Lisboa, de Coimbra, de Braga e o diabo a sete, e ter de dissimular a raiva de nos virem testar a humanidade, de subirmos o vidro do automóvel no intervalo dos semáforos, de fingirmos olhar para o lado, de fecharmos os olhos para que um milagre nos absolva de sentir a presença do outro, de sucumbirmos à mais radical das insensibilidades, de nos embrulharmos, justificados, na racionalidade do mundo injusto com que fundamentamos a impotência de um gesto. Sim, nós conhecemos esse arquétipo de pobre, que condensa a criança, a mulher, o velho, o rapaz, o toxicômano: é o homem do conto de Sophia: O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas. Se transformámos a vida num esgoto, o difícil é não naufragar na porcaria. Por isso, calai.
Nada há a dizer sobre as pessoas que trabalham pelos outros ou pelas que evitam o sofrimento dos outros ou pelas que, sem a preocupação de não corrigir os males do mundo, não são também as que fazem mal aos outros. Cada um faz o que pode. O que me incomoda não é isso. O que me incomoda é o anúncio dos bons sentimentos, a sua publicidade, a sua comezinha partilha. Como compreendo, igualmente, os que abjuram o Natal…