terça-feira, 16 de agosto de 2022

O demônio da fé dos outros

Como Jair Bolsonaro deve estar informado, sua mulher é ainda mais sem noção do que ele. Com poucas palavras, ela desmontou a fantasia de que o Brasil seja um país tolerante com a diversidade religiosa. “Isso pode, né? Falar de Deus, não”, comentou Michelle no post de uma vereadora dizendo que Lula “entregou a alma para vencer a eleição” e mostrando um vídeo dele na cerimônia de purificação da Irmandade da Boa Morte e Glória, em Cachoeira, na Bahia. O ataque não é contra Lula, o anátema de seu bendito consorte. Lula é um detalhe, porque o sujeito oculto é a religião afro.

Antes perseguida pelas autoridades da Colônia e do Império, pela polícia da República Velha, também pelas forças repressoras de Getúlio, as religiões afro só encontraram compreensão (eufemismo, é claro) em meados do século passado. Se deixaram de ser violentadas pela polícia, ao menos na aparência legal, tornaram-se alvo preferencial desde a ascensão de algumas correntes evangélicas. Mais do que religioso, é ideológico. A cerimônia da Irmandade baiana ocorre há 200 anos.


Como Michelle sabe, num único exemplo, o lendário terreiro Casa Branca, da nação nagô, é reconhecido como patrimônio cultural brasileiro desde 1984. O templo de Guilherme de Pádua, frequentado por ela, não recebeu tamanha honraria.

Michelle, porém, está incorporada a um quadro maior. Melhor: em que momento nasce a crença e se inicia a busca pelo voto?

Vale a pena buscar indícios.

Se Bolsonaro se configurar apenas como um pesadelo de inverno, ao olharmos para este período, certos fatos não deverão ser negados em seu crédito, qual seja, desmentir alguns mitos: 1) o Brasil ser uma terra cordata; 2) racialmente democrática; 3) fraternal com todos os credos; e 4) não existir racismo.

Desde sempre — só alguns empresários não sabiam —, Bolsonaro tratou de escandir seus preconceitos contra os gays, as mulheres e a vida alheia. Se defendeu o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, a guerra civil como método político de extermínio dos adversários e a sanguinária ditadura militar brasileira, mesmo sendo “liberdade de expressão”, perpetrou na prática a liberação geral das armas.

— Quero todo mundo armado — já esperneou sua principal política pública.

Como se por acaso o Brasil já não trouxesse a manchete anual sobre homicídios por armas de fogo, cujos principais alvos são os jovens negros. Eis uma política pública. Em pouco mais de três anos, Bolsonaro distribuiu sua parlapatia léxica num exercício diário de deseducação de civilidade. Foi útil. Ajudou o Brasil a deixar de ignorar que, atrás de sua retórica, escondem-se milhões de cidadãos prontos a tuitar preconceitos medievais como se fossem ventríloquos. Até que sua política pública passou a mostrar resultados práticos, com assassinatos a sangue-frio até na plateia de espetáculos musicais.

A linguagem, como Bolsonaro cansou de estudar em vários livros, é uma arma branca capaz de induzir ao amor — ou ao ódio. Não tenho visto muito amor vindo dele ou de seus ventríloquos, como as incendiárias Damares Alves, Carla Zambelli — e agora, Michelle Bolsonaro. A questão: será que atrás de um grande homem sem noção existe uma grande mulher ainda mais sem noção?

Ao mirar o candomblé, Michelle explicitou a perseguição empreendida por certos cultos evangélicos contra as religiões de matriz afro no Brasil. Realçou a intolerância de sua representação diante da diversidade religiosa. Basta uma busca casual pela internet e surgirão centenas de casos de ataques a terreiros e a seus praticantes.

O preconceito da primeira-dama só estimula maior violência contra religiões afro, como o candomblé. Damares e Michelle — são tão parecidas, meu Deus — falam em inferno (não é o preço do tomate) e em luta contra contra o mal (não é a gestão de Pazuello), mas atiçam o povo armado contra seus desafetos religiosos.

É ideológico. E nem é original em seu preconceito. Para fugir dos maus-tratos, os negros escravizados se aproximaram das igrejas e criaram várias irmandades. Como proteção, também, para não ser surrados por chicotadas, aceitavam ser batizados. Para o sincretismo, apenas um passo. Foi um artifício de sobrevivência física e cultural.

Na década de 1940, a antropóloga Ruth Landes — judia, branca e de olhos claros — escreveu o belíssimo e revelador “Cidade das mulheres”. Ciceroneada por Edison Carneiro, percorreu os terreiros de Salvador para construir uma obra precursora que identificava o predomínio das mulheres como mães de santo, quase um matriarcado, a inexistência na religião de preconceito de gênero e nenhum problema com a prática sexual.

Não à toa, Michelles e Damares daquele tempo (sou capaz de imaginar a razão) também espalhavam mentiras diversas, incomodadas com tanta liberdade, ausência de culpa e o dionisíaco sabor pela vida frugal, dedicada de fato ao outro, sem pedir dízimo em troca.

Para combater um tipo de religião tão livre e alegre — seria inveja? —, buscam até hoje, agora com ajuda do aparato presidencial, colocar os seus demônios na fé dos outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário