sábado, 2 de julho de 2022

Governo Bolsonaro é um pastelão amador e sangrento

Se fosse obra de ficção, o governo Bolsonaro não passaria pelo crivo de críticos exigentes. Falta-lhe verossimilhança, esse conceito tão caro à literatura e ao drama. Tudo é tão caricatural e grotesco que um editor de livros ou um diretor de teatro ou cinema diriam: "Não dá para aceitar essa porcaria. Se a arte não reproduzir minimamente os critérios de razoabilidade e plausibilidade do mundo real, é impossível haver comunicação com o público". Antes de jogar o texto no lixo, esse meu crítico imaginário pensaria, com ar aborrecido: "Vá ler Aristóteles e não me amole. Ou escolha o caminho da literatura fantástica".

Os contrastes exagerados; a falta de nuances de caráter; o lobo que não disfarça a sua natureza mesmo em pele de cordeiro; a hipocrisia rasgada; o sujeito que vocaliza o contrário daquilo que pensa e que pratica o oposto do que diz... Nada disso rende boas histórias. Há bem mais do que 50 tons de maldade e de bondade nas pessoas. Sem ambiguidade não se constroem boas personagens. Vivemos, no entanto, um pastelão amador e sangrento. O bolsonarismo é um vilão sem imaginação. A personagem principal faz troça de doentes que morrem sufocados.


Trata-se de uma gente mesquinha mesmo quando afeta sabedoria superior. Na campanha eleitoral de 2018, Paulo Guedes falava nos salões do capital em nome da responsabilidade fiscal, opondo-se, então, ao que seria o populismo das esquerdas. Afinal, a presidenta "do outro lado" havia sido deposta em razão da suposta pedalada. Com a PEC dos Precatórios, o Ministério da Economia pedalou, furou o teto e deu calote. Tudo de uma vez. Tomaram gosto. A três meses da eleição, instaura-se a desordem fiscal na União e nos estados para baixar o preço dos combustíveis e se violam a Lei Eleitoral e a Constituição com o que o próprio Guedes chamou "PEC Kamikaze".

Eis os senhores que anunciam ter os arcanos da tradição, da família e do cristianismo. Falcatruas de proporções bíblicas tragam o Ministério da Educação. Os protagonistas são pastores que evocam, com as artimanhas do demônio, o nome de Deus. Vituperam contra as ditas licenciosidades do nosso tempo, a Anitta, a Pabllo e a "ideologia de gênero". O Código Penal e a Lei 12.850 põem nome nas coisas que esses homens pios praticaram por lá: tráfico de influência, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, organização criminosa. Os garantidores dos costumes eram só uma súcia de ladrões.

Uma das figuras mais salientes e buliçosas dessa turma tão empenhada em combater os hábitos degenerados do nosso tempo era parceiro frequente das "lives" do presidente. Pedro Guimarães, ex-presidente da Caixa, não só tentava conferir robustez técnica aos desatinos do chefe como prometia, se preciso, pôr seu próprio corpo à prova em defesa da "nossa liberdade", para citar o "capitão". Em 2020, ameaçou pegar suas 15 armas e dar a vida, se preciso fosse, para combater quem tentasse impor restrições à sua família em razão da Covid. Esses valentes têm um lema: "Minhas armas, minhas regras".

Abriu-se a caixa de Pandora e lá de dentro saíram todos os males do mundo. Segundo testemunhos, o chefão da CEF submetia mulheres, de forma sistemática, a assédio sexual. Áudios evidenciam a rotina de assédio também moral. Há indícios de que o próprio Planalto sabia há tempos que algo não estava bem por lá. Guimarães, no entanto, era o mais frequente parceiro de cena do chefe.

O centrão foi um dos Belzebus da campanha bolsonarista em 2018. Hoje, Arthur Lira e Ciro Nogueira governam o país e estão empenhados em tornar de execução obrigatória as tais emendas do relator. A turma daria, assim, o seu próprio golpe, independentemente da sorte do seu líder. Ainda que não houvesse as lambanças do MEC e da Codevasf, o orçamento secreto já faria deste governo o mais corrupto da história.

É essa gente que ameaça o TSE e flerta com golpe de Estado caso perca a eleição. Flávio Bolsonaro, o patriota da "rachadinha", voltou a fazer ameaças em entrevista publicada ontem. Somos personagens de uma obra de ficção que afronta todos os fundamentos da verossimilhança. E, no entanto, é tudo verdade. E é preciso reagir no mundo dos fatos.

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