sábado, 30 de abril de 2022

Só faltam os dragões

Imagine um filme: o herói consegue fugir com a família de uma pandemia terrível, a qual, tendo sido deflagrada na cidade deles, está se propagando agora por todo o planeta. Vê-se um carro cruzando uma estrada, numa paisagem rural. Subitamente, surge um tornado, cortando a estrada. O nosso herói imobiliza a viatura. Hesita. Dá marcha à ré. Porém, rugindo mais do que o tornado, emerge um dinossauro na outra ponta da estrada. A esta altura os espectadores levantam-se, furiosos:

— Pô, cara, um dinossauro não! Assim também já é demais!

E é então que o céu se enche de dragões!

Nos últimos meses venho me sentindo um pouco como os espectadores revoltados de que falo atrás: primeiro uma pandemia, seguida de ciclones, tempestades, desabamentos, o diabo a quatro — e agora a ameaça de uma nova guerra mundial e de um apocalipse nuclear?! Assim também já é demais!


Catástrofes atrás de catástrofes, umas atropelando as outras, ameaçam a credibilidade do enredo. Num filme de pandemia não dá para colocar um terremoto. Numa invasão de extraterrestres não entram dinossauros. Se há um meteoro prestes a destruir a Terra, não faz o menor sentido acrescentar um apocalipse zumbi. Juntar Bolsonaro, milicianos, garimpeiros assassinos, pandemia, aquecimento global, Putin, eventos climáticos extremos, e ainda uma guerra nuclear é brincar com a paciência dos viventes.

Vamos com calma, senhor roteirista! Um desastre de cada vez!

Após tantos meses de terror, já todos percebemos quais são os grandes temas que o roteirista pretende deixar para reflexão:

1) Em primeiro lugar, está nos alertando para a urgência de repensar a nossa relação com o planeta. Insistir em manter uma economia predadora, com desmatamento selvagem, agricultura intensiva e a destruição sistemática de ecossistemas, conduzirá, mais cedo ou mais tarde, à extinção da Humanidade. A vida prosseguirá, é claro, mas acho que sem nós não terá tanta graça.

2) Democracias, ao contrário do que gostamos de imaginar, são sistemas frágeis, facilmente corrompidos a partir de dentro. Exigem cuidados constantes e mecanismos de vigilância, adaptação e renovação.

3) Cada um de nós tem o dever de lutar pelo desmantelamento completo de todos os arsenais nucleares. Enquanto isso não acontecer, não conseguiremos dormir em paz. Se nenhuma democracia é segura (e nenhuma é), nunca poderemos ter a certeza de que essas armas não venham a ser um dia utilizadas por déspotas loucos.

4) O que podemos fazer diante da fragilidade da moderna civilização, além de cumprir a nossa parte no processo de resistência contra a guerra e a destruição ambiental, é tentar viver intensamente cada instante: abrace seus filhos, cozinhe para seu amor, ria com seus amigos, corra na praia com seu cachorro.

Dito isto, imploro ao roteirista que nos deixe retomar o fôlego. Alguns minutos de sossego, por favor. Que venham os dragões, os vulcões, os furacões, desde que possamos, entretanto, estender uma rede no quintal e descansar um pouco. Muito obrigado.

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