sábado, 30 de abril de 2022

Miséria eterna, revolta eterna

Convencido de que a miséria está intimamente ligada à existência, não posso aderir a nenhuma doutrina humanitária. Elas me parecem, em sua totalidade, igualmente ilusórias e quiméricas. O próprio silêncio me parece um grito. Os animais - que vivem de seus próprios esforços - não conhecem a miséria, pois eles ignoram a hierarquia e a exploração. Este fenômeno somente aparece junto ao homem, o único que submeteu o seu igual; e somente o homem é capaz de tanto desprezo por si.

Toda a caridade do mundo não faz nada mais do que destacar a miséria, e rendê-la ainda mais revoltante do que a angústia absoluta. Frente à miséria, assim como frente às ruínas, nós deploramos uma ausência de humanidade, nós lamentamos que os homens não mudem radicalmente o que está em seu poder de mudança. Este sentimento mistura-se ao da eternidade da miséria, de seu caráter inelutável. Mesmo sabendo que os homens poderiam suprimir a miséria, nós estamos conscientes da sua permanência e acabamos por provar uma inabitual e amarga inquietude, um estado de alma perturbado e paradoxal, no qual o homem aparece em toda a sua inconsistência e pequenez. A miséria objetiva da vida social é, com efeito, apenas o pálido reflexo de uma miséria interior. E, só de pensar nisso, perco a vontade de viver. Eu deveria lançar minha pluma para chegar a um casebre em ruínas. Um desespero mortal me toma assim que evoco a terrível miséria do homem, sua decrepitude e gangrena. Em vez de elaborar teorias e de se apaixonar pelas ideologias, este animal racional faria melhor oferecendo tudo ao outro, até sua camisa - gesto de compreensão e de comunhão. A presença da miséria aqui embaixo compromete o homem mais do que tudo e faz compreender que este animal megalomaníaco é devotado a um fim catastrófico. Frente à miséria, tenho vergonha até da existência da música. A injustiça constitui a essência da vida social. Como aderir, sabendo disso, a qualquer doutrina?

A miséria destrói tudo na vida; rende-a infecciosa, hedionda e espectral. Existe a palidez aristocrática e a palidez da miséria: a primeira vem de um refinamento, a segunda de uma mumificação. Pois a miséria faz de todos um fantasma, ela cria sombras da vida e aparições estranhas, formas crepusculares como se saídas de um incêndio cósmico. Não há o menor traço de purificação em suas convulsões; somente o ódio, o desgosto e o azedume da carne. A miséria não concebe nada mais do que a doença numa alma inocente e angelical - e sua humildade não é imaculada; ela é venenosa, cruel e vingativa, e o compromisso ao que ela conduz esconde chagas e sofrimentos aguçados.

Não quero uma revolta relativa contra a injustiça. Admito apenas a revolta eterna, pois eterna é a miséria da humanidade.
Emil Cioran, "Nos cumes do desespero"

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