A sociedade brasileira é hoje uma sociedade que se define por valores e apreensões que dela fazem uma sociedade do medo. Esse medo é produto persistente de um imaginário de poder que nasceu com a República, deformada e antirrepublicana pois dominada por um movimento pendular entre o Exército e as oligarquias regionais. É um medo referencial de nossos bloqueios políticos.
Com o tempo, o próprio Exército tornou-se insensível ao atraso social e político na medida em que assumiu que o primado da ordem deveria prevalecer sobre o progresso por razões geopolíticas que não são necessariamente as nossas.
Tudo que possa representar resistência ao atraso, contestação do atraso ou ação concreta para romper-lhe a inércia e libertar a criatividade social e política da sociedade acaba sendo objeto de estigmatização e até repressão fundadas nesse imaginário tosco.
Inspirada no positivismo, a República adotou o mote de Ordem e Progresso e o inscreveu na bandeira, supostamente para dizer o que somos e queremos. Mas, ao longo da história republicana, a concepção de progresso foi decantada. Progresso sob a forma de crescimento econômico, sim. Mas não há progresso sem suas contrapartidas e desdobramentos, sem rupturas e atualizações. O progresso desordena a ordem para reordená-la.
O progresso é subversivo, resulta de contradições, induz e pede transformações sociais, modernização econômica social e política, emancipação dos cidadãos, libertação das instituições de tutelas que as reduzem a instrumentos de formas retrógradas e antidemocráticas de poder.
Progresso só o é como progresso social, isto é, desenvolvimento social, diferenciação social, multiplicação de sujeitos políticos, diversificação de projetos sociais. Para que com base neles a sociedade construa politicamente a conciliação possível que possa nortear a sociedade no interesse de todos. Isso é inviável sem conflito, debate, desacordo, busca.
A República do primado da Ordem nasceu para ser tutelada. O povo tratado como menor de idade e até mesmo como inimigo. Em Canudos (1896-97) e no Contestado (1912-16) o Exército fez guerra contra o povo, uma guerra das oligarquias. Cuja insurgência supostamente monarquista era um movimento religioso, milenarista. O do advento da era do Espírito Santo. O imperador do Divino cuja festa anual celebra e antecipa o tempo da fartura, da justiça, da liberdade, da esperança num mundo novo. Combateu religiosidade imaginando que combatia um surto monarquista e restaurador.
O Estado brasileiro, dominado por esse imaginário conflitivo e belicoso, até hoje é servil em relação aos que dele se valem para declarar guerra à sociedade. Estamos vivendo um momento desses.
A sociedade se tornou mais culta, politicamente mais esclarecida, com melhor e mais clara consciência de suas possibilidades históricas e de seu querer político. Em vez do Estado e dos governantes aprenderem com ela e se atualizarem, os menos capazes retocaram o imaginário do poder para mantê-lo prisioneiro da ordem imobilista. Desde os anos 1930 usaram o comunismo e as esquerdas como pretexto para manipular o inimigo cada vez mais fantasioso e bloquear o progresso possível.
Em 1968, fizeram a caça aos participantes da reunião da União Nacional de Estudantes definidos como comunistas. Aquela foi uma época em que os jovens estudantes de vários países, como Estados Unidos, França, Itália e Brasil, viviam um momento de crise de gerações. As sociedades envelheceram e os jovens proclamavam o teor da mudança, até mesmo na crítica de esquerda ao comunismo “oficial”, soviético ou chinês.
Os estudantes queriam o progresso da condição humana. Aqui foram tratados como subversivos, presos, induzidos à radicalização no combate ao autoritarismo de uma ditadura que fechava as portas ao protagonismo transformador que os jovens queriam e podiam.
Se se fizer um estudo inovador e investigativo sobre a repressão aos movimentos de resistência à ditadura, veremos que em boa parte os militantes foram empurrados violentamente para o beco sem saída do enfrentamento ao regime. A ditadura criou um sistema de repressão que aumentasse a necessidade de repressão e se justificasse em nome da defesa da ordem supostamente ameaçada. Na verdade, ameaçada por ela mesma.
Os aspectos sociais dessa armação foram propriamente geopolíticos com o estímulo à disseminação de igrejas e seitas fundamentalistas, conservadoras e imobilistas, inspiradas na cultura americana do reavivamento, da religiosidade de emergência que reduz a sociedade à expectativa do fim do mundo. Condenando e satanizando nela a práxis de transformação do mundo, as esquerdas e os conflitos renovadores e construtivos.
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