O Brasil, a começar pelo presidente da República, em dois anos de pandemia, mais de 640 mil vidas perdidas, normalizou óbitos. Antes da Covid-19, Estado e sociedade já conviviam sem culpa com média de 60 mil homicídios por ano — sobretudo de pessoas negras, oito de cada dez tombados. Nas favelas cariocas, é recorrente ver parentes carregando jovens baleados em lençóis, cadeiras e carrinhos de mão. Em novembro, após a Chacina do Salgueiro, decorrente de uma operação policial em São Gonçalo, moradores retiraram de um mangue oito corpos. O poder público não aparece sequer para recolher as vidas que ceifam. É a política do “vocês que lutem”.
A indiferença multiplica violações. Em Petrópolis, cidadãos em choque usam enxadas e as próprias mãos, sem luvas, para revirar a lama em busca de vítimas. Perderam o teto e os amores, o bonde e a esperança. Deveriam receber acolhimento, alimento e afeto; assistência psicológica, conforto espiritual e abrigo. Mas, perplexos e destroçados, apelam às autoridades, via jornalistas, por ajuda para conseguirem, ao menos, oferecer aos seus enterro digno. Subtraíram-lhes os direitos à vida, ao luto, à dignidade humana, fundamentos da septuagenária declaração.
O Rio de Janeiro é território de carnificina permanente. Aqui morre-se a pauladas à beira-mar (caso de Moïse Kabagambe, de 24 anos); baleado pelo vizinho na volta do trabalho (Durval Teófilo Filho, 38); à queima-roupa ao vender bala na estação das barcas (Hiago Macedo, 22). Tudo isso num ano em que o segundo mês, fevereiro, nem chegou ao fim. São homens negros os alvos preferenciais das abordagens policiais, do cárcere, do extermínio. São predominantemente negras as famílias vítimas dos desastres naturais. São dimensões institucional e ambiental da mesma mazela, o racismo.
No ano passado, na CPI da Covid-19, o país foi apresentado ao conceito de mortes evitáveis. O epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas (RS), estimou que 400 mil brasileiros que sucumbiram ao coronavírus estariam vivos se a vacinação não demorasse, se houvesse lockdown, se distanciamento e uso de boas máscaras imperassem. Em Petrópolis, é certo que dezenas de vítimas estariam vivas se o Estado, na década perdida desde a última catástrofe, aplicasse conhecimentos e recursos para montar uma rede de informação e protocolo de atuação que limitasse a tempestade da última terça a prejuízos materiais.
Especialista em gerenciamento de risco, Gustavo Cunha Mello informa que o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) é capaz de prever —com cinco dias de antecedência e probabilidade de 90% de acerto — chuva forte em áreas de 12 quilômetros quadrados, pequenas portanto. Petrópolis inteira tem 791 quilômetros quadrados, segundo o IBGE. Em seis horas, a probabilidade é quase total. “É possível, com isso, preparar respostas, como planos de emergência, sirenes, encaminhamento da população para núcleos de defesa civil nas comunidades, evacuação de imóveis, intervenções no trânsito”, enumera.
De 2011 até agora, o acesso da população à telefonia móvel praticamente se universalizou. No país, 96% dos lares tinham celular em 2019, pelos dados da Pnad Contínua Anual; entre os habitantes, 81%. No Estado do Rio, quase nove em dez habitantes tinham celular no mesmo ano. É gente em condições de receber os alertas e que poderia se proteger se souber o que fazer com eles.
Em 2011, após a tragédia na Serra, a CPI da Alerj listou 42 propostas para evitar nova ocorrência. Em 2019, a CPI das Enchentes na capital elencou 105 medidas. Não falta informação. Tampouco dinheiro, ideias e pessoal capacitado. Em que pese o sucateamento dos órgãos de planejamento e defesa civil, há técnicos de qualidade em universidades e repartições públicas. O orçamento para prevenção de desastres nem sequer foi inteiramente usado.
No Rio — e Brasil afora, a julgar pelo que vimos em Minas Gerais, Bahia, São Paulo, semanas atrás — há carência de ação, estratégia, estrutura, vontade política. É vergonha na cara que falta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário