quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Meu país ainda está aí

Meu país ainda existe. Um pouco envergonhado, se escondendo pelo cantos, mas está aí, não sumiu de vez não. Estão tentando acabar com ele no grito, na bala e na incompetência. Mas ainda respira, o meu país.


Está nas dobras das saias das mulheres que jamais se dobram. Em algum vão entre os tijolos de um bar, onde cinco amigos se reúnem há décadas. Num cruzamento perfeito na pelada na praia. Nas risadas dos moleques de cascão nos pés, que correm sem sentir dor, pisando em pedras como em folhas.

Está na música de Garoto e Pixinguinha. Nas árvores que florescem em pleno inverno. Numa tela de Portinari, carregada de um amarelo que envenena tanto quem pinta quanto quem olha. Na minhoca que se contorce, revelada pela enxada. Num verso seco de João Cabral. No porteiro do prédio que sabe cantar sambas que ninguém mais sabe, ele está.

No meu país, éramos tão magros. Viajávamos de carona em caminhão e dormíamos em redes nas casas de pescadores hospitaleiros. Conversávamos no escuro, e nos entendíamos mais no silêncio que nas palavras. Foi o que mais mudou. Meu país se drogou, inchou, se corrompeu, ficou violento. Mas ele há de voltar, tem que voltar, o mundo fica muito pobre sem o meu país.

Que um bicho grande (um gavião, de preferência) passe voando e dê uma bela cagada na cabeça de cada um que tenta destruir meu país. Chegará o dia em que todas as formigas sairão da terra para carregar em procissão, para o diabo que os carregue, os homens de arma, serra e fósforo na mão. Uma chuva trouxe seu antigo cheiro quente, úmido, de terra satisfeita. E se esse cheiro resiste, por que não a esperança?

Meu país é onde os marimbondos fazem suas casas apoiadas nos telhados das casas. O dos cachorros de rua vagabundos e pacíficos. Dos homens da roça que contam histórias enquanto enrolam a palha para pitar. O da música popular mais linda do mundo. Das fazedoras de doces no fogão a lenha, que cozinham em silêncio os segredos bem guardados. Da paçoca, da farofa, da cocada e do pastel de vento.

Um violão triste é como luta o meu país. No jogo da capoeira, mais dança que briga, é como luta o meu país. O das casas de cinco cores na fachada – sem contar as das janelas. O dos sorrisos de marfim nas peles pretas. Das maritacas que nos fios berram as últimas fofocas. O das nascentes dos rios, antes que o esgoto as alcançassem, e o das matas de cem tons de verde, antes que as serras elétricas as descobrissem.

Meu país resiste. Mas por ora, prefere se refugiar no porão, no escuro, amoitado, escondendo os dejetos, quase morto de desgosto. Sai muito raramente, apenas para nos sinalizar que ainda está. Veste uns trapos de cores esmaecidas, que nos causam dor e revolta.

Devolvam meu país, filhos desnaturados do meu país.
Cássio Zanatta

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