Impressionante a atualidade dos temas. O texto que batizou o livro surgiu de um fato real. Um taxista paquistanês em Nova Iorque, ao saber que Eco era italiano, perguntou a ele quem eram os inimigos da Itália. Eco respondeu que a Itália não tinha inimigos. O paquistanês não só ficou insatisfeito, mas demonstrou sua irritação. Um país que não tem inimigos não pode ser levado a sério.
As reflexões de Umberto Eco em relação ao tema refletem a tendência brasileira de procurar causadores de dificuldades para o desenvolvimento nacional, como fórmula de escape à responsabilidade ou de assunção de flagrante incompetência.
Quando se cria um “inimigo imaginário”, absolve-se o governo que não sabe solucionar questões recorrentes, mas que se agravaram nos últimos anos, uma evidência do acelerado retrocesso em que a República mergulhou.
Teorias conspiratórias, invocação aos brios patrióticos, acusando outros países de interesses escusos, apelo ao surrado conceito de soberania, tudo isso vale para disfarçar a realidade: não existe foco, não existe programa, não existe projeto, a não ser a volúpia mesquinha pela permanência nas estruturas de poder.
Um inimigo assim imaginado passa a atrair a ira dos indignados com o quadro nacional: milhões de famélicos que reviram lixo ou procuram assistência médica apenas para dizer que o seu mal é fome. Desemprego galopante, ausência de política eficiente para garantir moradia – embora direito fundamental – para a legião dos sem teto.
Sem falar numa educação capenga, presa a conceitos necrosados como o de transmitir informação e fazer com que o educando memorize dados, como a ignorar que mediante um “clique”, tudo será obtido instantaneamente nas redes sociais. De forma atualizada, colorida e musicada, mais apetecível e sedutora do que as aulas insossas e as apostilas.
A pandemia escancarou o despreparo do governo para o enfrentamento de algo que a ciência já anunciava. Então é preciso encontrar culpados pela peste. Ela foi criada em laboratório estrangeiro, que em seguida fornece vacina com chip, hábil a controlar toda a população planetária e fazê-la submissa à hegemonia da macropotência.
Não existe falha atribuível aos detentores de cargos estatais. Tudo o que acontece tem o DNA perverso dos inimigos da Pátria. Eles se arrogam no direito de condenar o extermínio da floresta amazônica e de outros biomas, em vez de reconhecerem a sua cobiça por um patrimônio que é nosso. E que só nós podemos destruir…
Tudo se intensifica mediante o uso das redes sociais, usinas de abundante produção de ódio, a contaminar os radicais que sempre foram assim, mas que hoje não se envergonham mais de suas posições trogloditas.
O fenômeno da criação artificial de inimigos não se circunscreve à massa ignara, privada de condições de enxergar a realidade, na sua tosca e arrogante ignorância, travestida de patriotismo. Não. O produto mais nefasto é a contaminação de pretensos eruditos, que por fanatismo ou deliberada má-fé, ajudam a propagação das inverdades, formando violentos contingentes de beligerância.
Não é da índole humana aceitar as próprias falhas, fazer o “mea culpa” e reconhecer a fragilidade natural a uma criatura perecível, que tem algumas décadas apenas para fazer valer a sua passagem por este planeta.
Até os círculos considerados eruditos cedem à onda adversarial, cultivando a cultura do repasse. Tudo o que é de ruim provém do outro. A vitimização é uma carreira próspera para um brasileiro que sempre se considera injustiçado e impedido de avançar rumo à concretização de seus sonhos, pois a inveja alheia, a trama alienígena, representa inexpugnável barreira.
Somente a educação corrigiria a perigosa rota que, além de prosseguir no atraso, tornará o Brasil isolado e cada vez mais desacreditado. Mas essa missão não é exclusiva do Estado. É obrigação da família e da sociedade.
A esperança é a de que a lucidez remanescente assuma as rédeas desse encargo capaz de eliminar ou, ao menos mitigar, as graves máculas da democracia tupiniquim. Dentre as quais, não é a menor a religião de construir inimigos.
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