André Gabeh, escritor engajado contra qualquer tipo de preconceito, acaba de lançar o delicioso “Nunca foi sorte, sempre foi macumba”. Um livro reverente (“Minha vida é toda sob o hálito dos Orixás. Os Deuses dos meus ancestrais são ricos, belos, imensos e estão em todos os meus momentos”, “Na Umbanda eu vi o mistério. (...) No Candomblé eu senti a força de seres que são a própria energia da natureza”). E também engraçadíssimo (não vou dar espóileres; morram de rir por sua conta e risco).
Nem o Gabeh escaparia aos patrulheiros das microagressões do cotidiano. Ele microagride ao escrever “macumba” — “Palavra utilizada de forma racista para nomear as oferendas aos orixás (...), associando-as a algo ruim”, segundo o “Dicionário de expressões (anti) racistas”, da Defensoria Pública da Bahia.
Cartilhas e manuais editados no afã de sanitizar o idioma deixaram de ser novidade. Neste ano, o index prohibitorum ganhou mais projeção ao ser endossado, acriticamente, por uma agência de checagem. A reação foi, finalmente, à altura do equívoco que é deixar em segundo plano o racismo real e investir contra um imaginário. A imprensa repercutiu amplamente o assunto. Aqui no GLOBO, tratei do absurdo de um checador não checar. A Defensoria baiana entrou no artigo como Eva na Salve-Rainha, mas encrespou com a crítica (“encrespar” pode?) e sacou da falácia do “se você não concorda com meus métodos, está defendendo ou justificando aquilo a que me oponho”.
Não estou. O racismo é uma abominação. Eu, a Defensoria e a torcida do Flamengo estamos do mesmo lado. A diferença é que considero um tiro no pé lançar mão de invencionices que desqualificam a argumentação — e depois apelar para o autoritarismo. Quando um órgão de Estado não reconhece um erro e ainda se arroga o direito de decidir que temas merecem a atenção de um articulista ou a quem um jornal deve abrir espaço nas suas páginas de opinião, disseminar delírios etimológicos é até um delito menor.
Garante a Defensoria que a palavra “nhaca” reforça estereótipos e preconceitos porque seria referência a uma ilha africana. Se é, Aurélio, Aulete, Houaiss e Michaelis ignoravam. Antenor Nascentes supõe que venha do tupi yákwa (“que tem cheiro”). E a Defensoria se defende com um Saussure de mão única — expressões inocentes se tornam racistas; mas uma vez racistas, racistas até morrer. Quem, ao xingar alguém de “boçal”, tem em mente que era assim que se denominava o escravizado que ainda não falava português? Quem?
Como é que “mulata/o” virou ofensa, depois de frequentar impunemente o idioma por quase 500 anos? Possivelmente quando da importação da one drop rule, teoria segundo a qual só há pretos e brancos, sem os 50 (ou 50 mil) tons intermediários gerados pela miscigenação. E aí caíram em desgraça os mulatos, morenos, pardos, caboclos — 46,8% da população que desaparecem, absorvidos pelos 9,4% de pretos (Pnad 2019).
Ser semanticamente incorreto não deveria ser motivo de orgulho — menos ainda quando a causa prejudicada é o antirracismo.
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