A absoluta falta de postura do presidente também se projetará sobre a própria disposição dos brasileiros de respeitarem a lei e os direitos dos outros. Não me refiro apenas à longa lista de alegados crimes de responsabilidade, que têm sido sistematicamente objeto de pedidos de impeachment, de denúncias de crimes comuns que começam a ser investigados pela Procuradoria-Geral da República, ou de eventuais crimes contra a humanidade sob escrutínio de tribunais internacionais.
Falo de condutas mais corriqueiras que expressam uma espécie de obstinação do presidente em demonstrar que não aceita se submeter à regra da lei, como não usar capacete, trafegar do lado de fora do veículo, aglomerar ou não usar máscara. Nenhuma dessas atitudes que simbolizam sua insubordinação ao direito se equiparam, no entanto, ao gesto do presidente de abaixar, com um sorriso escancarado, a máscara de uma criança, em meio a uma pandemia que já ceifou mais de meio milhão de vidas, numa atitude ao mesmo tempo negligente e de clara exploração política daquela criança.
Como dispõe o código moral mais básico da maioria das pessoas, incorporado pelo artigo 227 da Constituição Federal, crianças devem ser objeto de um cuidado especial por parte de todos, devendo ser colocadas a salvo de toda forma de negligência ou exploração. Ao abaixar a máscara de uma criança, profanando esse código moral elementar, o presidente demonstrou não apenas seu desprezo pela lei, mas também pelo outro, como sujeito de direito, mesmo que seja uma criança.
Convido a leitora e o leitor a pensar nas consequências desse tipo de conduta sobre nossa capacidade de viver sob o governo das leis, pelo qual autoridades e cidadãos se dispõem a pautar as suas condutas e resolver os seus conflitos com base no direito.
Múltiplos são os fatores que contribuem para que os cidadãos se submetam à autoridade do direito. Entre esses fatores, certamente, está o da disposição de adultos e autoridades de respeitar as leis, os direitos e os compromissos que eles mesmos estabeleceram para regular o próprio comportamento.
Somente a partir do momento em que os cidadãos tenham confirmadas as suas expectativas de que as autoridades respeitam direitos e compromissos estabelecidos pela lei, tenderão a reciprocamente respeitar as leis e os direitos dos outros. Isso é particularmente relevante para a educação das novas gerações.
A insistência dos governantes de plantão de explicitar, às escâncaras, o seu desprezo pelos direitos de grupos vulneráveis e pelos limites estabelecidos pelo Estado de Direito terá um efeito devastador sobre a disposição dos demais membros da comunidade em se comportar de acordo com o império da lei. Pior do que isso, servirá de incentivo ao oportunismo e mesmo à delinquência como padrões de comportamento a serem normalizados.
Reverter esse legado da barbárie é o desafio imediato de nossas instituições e, no limiar, do eleitor de 2022.
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