Não se pretende aqui alarmar a população, já angustiada o bastante, mas sim exortar as chamadas autoridades, em especial do governo federal, a cumprirem seu dever constitucional de zelar pela saúde pública e despertar a consciência cidadã para evitar o recrudescimento de uma tragédia que voltou a matar mais de 1,2 mil brasileiros por dia. É inaceitável conviver com isso. Achar normal um patamar de letalidade como esse é aceitar nossa morte como nação.
Três fatos concomitantes compõem a tal tempestade perfeita: 1) circula no País uma nova cepa do coronavírus que é potencialmente mais infecciosa, a variante P.1, identificada pela primeira vez em Manaus (AM); 2) a atuação tíbia do Ministério da Saúde, sob as ordens do presidente Jair Bolsonaro, sabotador de primeira hora de todos os esforços para frear o avanço da doença no Brasil; 3) a irresponsabilidade de muitos cidadãos, que a cada dia parecem mais convencidos de que, se a pandemia não acabou, também já passou o tempo das medidas restritivas e é hora de “voltar a viver a vida”.
Cientistas do Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), que conta com pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), publicaram um estudo no dia 16 passado que revela que a variante P.1 do novo coronavírus tem maior potencial de transmissão.
No dia 27, outro grupo de pesquisadores, oriundos da Universidade de Oxford, do King’s College de Londres, da Universidade Harvard e do Instituto de Medicina Tropical da USP, publicou um artigo apontando a variante P.1 como uma das causas mais prováveis do vertiginoso aumento de casos de covid-19 na capital amazonense, o que contribuiu para levar o sistema de saúde da cidade ao colapso.
A precariedade da testagem e rastreamento de casos no Brasil impede a identificação de outros casos da variante P.1 no País. Sabe-se que apenas em São Paulo, Estado com a melhor infraestrutura para diagnóstico, houve ao menos três casos. Não é improvável que a nova cepa já esteja em circulação em outros Estados.
Em entrevista à TV Cultura, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta alertou que o País corre um sério risco de ter uma “megaepidemia” de covid-19 nos próximos dois meses por conta da circulação da variante P.1, que já está presente em 90% dos casos da doença em Manaus. “O mundo inteiro está fechando os voos para o Brasil e o Brasil está não só aberto normalmente, como está retirando pacientes de Manaus e mandando para Goiás, para a Bahia, mandando para outros lugares sem os bloqueios de biossegurança”, disse Mandetta.
Enquanto isso, aprisionado pelas grades de seus interesses particulares, o presidente Jair Bolsonaro segue imperturbável diante das aflições dos brasileiros. Na última edição de sua live semanal, Bolsonaro recomendou que a sociedade precisa “aprender a conviver com a covid-19”. “Eu lamento as mortes, antes que falem que eu sou insensível”, disse, “mas temos que conviver com esse problema.” Até a quinta-feira passada, quando a famigerada live foi ao ar, o “problema” já tinha causado a morte de 221.676 brasileiros. O que se pode esperar de um governo encabeçado por alguém com esta índole?
É justamente diante da incúria e da brutal insensibilidade de agentes do Estado – muitos dos quais ainda haverão de responder pelos crimes que estão cometendo contra a saúde pública – que deve prevalecer a responsabilidade individual dos cidadãos. Aproxima-se o carnaval e teme-se pela falta de cuidado de muitas pessoas dispostas a ignorar as medidas de prevenção, o que já tem ocorrido em boa medida.
Jair Bolsonaro já basta como embaixador da morte.
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