terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

O autêntico nocivo

Bolsonaro é o autêntico. Assim vai percebido por parcela relevante da população. E não adiantará argumentar que autenticidade não seja qualidade per se. Tampouco explicar que essa autenticidade seja produto — nada novo — de personalismo extremo, ao qual se soma a pregação permanente de polarização para guerra, comando confundido com ser politicamente incorreto. Nem que sua autenticidade tenha a mesma consistência da de um sociopata. Ele é o mito. Muitos anos sob mentalidade autoritária nos trouxeram até aqui.

Bolsonaro elegeu-se vendendo também a imagem de alguém que quebrava a liturgia de Brasília. Num país com baixa cultura republicana, e com tradição personalista, isso é um tesouro para a modalidade de populismo que representa.

Impossível não associar essa concepção de homem público original à maneira como soube explorar as demandas antipolíticas derivadas do lava-jatismo. O sujeito que é autêntico porque nada deveria ao sistema. É desde essa farsa que arma sua carcaça de líder popular — um poderoso que sai do palácio de moto, simulando improviso, para jogar porrinha numa padaria. Porque pode; porque é gente como a gente; porque está limpo.


Isso é investimento de longo prazo, cujos dividendos são colhidos em eventos como o recente encontro com artistas numa churrascaria, pouco depois do episódio “leite condensado”. Bolsonaro estava acuado. E reagiu conforme seu padrão, com a agressividade revestida de fala do povo — resposta de alguém que se apregoa como perseguido e que, injustamente caçado, insurge-se dizendo, com coragem, o que de hábito só se diria em privado. E então cresce.

Ele é limpo — este, o pressuposto. E, porque limpo, não pode admitir que o queiram desonrar — daí que estoure. Sua linguagem é recebida como manifestação de homem difamado, que se defende com indignação — autorizado a tudo. É a vítima e o mito ao mesmo tempo. Bolsonaro tem o termômetro da acolhida de seus “enfia no rabo”. É o zap profundo onde circula influentemente. Confrontá-lo nesse campo é perder de goleada; o terreno em que se sente à vontade, o da briga de rua, e para o qual sempre quererá levar os críticos. Na rinha, vencerá.

O Bolsonaro autêntico vencerá também — já está testado — se confrontado somente com o Bolsonaro nem tão limpo assim; ele próprio gerador de ao menos três décadas de farto material para evidenciar a constituição da mentira eleita à Presidência. E daí? O estelionatário eleitoral, presidente a serviço de corporações, está na vitrine desde 2019, aquele que chamava qualquer negociação de toma lá dá cá, e que agora governa com o mais despudorado comércio de poder — e não balança. Aí está, exaurida, sua história de deputado pendurado nas tetas do Estado, desde onde montou bem-sucedida empresa familiar — e nada.

Não produz efeito mostrar que chegou a presidente engordando nas mesmas bordas fartas do sistema que tornaram Arthur Lira um elemento competitivo. Tampouco explorar a formação de seus gabinetes — aí incluídos os dos filhos. Ou alguém acha que a máquina para peculato movida no de Flávio, com a adesão de milicianos, foi invenção do primogênito? Neste caso, com Queiroz e tudo, os abalos, poucos, só serviram de gatilho para que se blindasse.

O Bolsonaro autêntico precisa ser enfrentado — com praticidade — na cancha da pandemia. Ter expostas, com provas, as consequências da forma como cultiva deliberadamente a peste. O estado de calamidade que tenta perenizar, dependente que é do caos, sendo o mesmo que lhe desguarnece o flanco.

O brasileiro tem de ser informado, com dados, de que sua vida está paralisada — com miséria aos mais pobres — porque o presidente opera para que a pandemia se prolongue; donde se prolongará o desemprego. Sua presidência é deletéria em termos objetivos. Está aí a inflação. Isso é o que deve ser dito e ilustrado. Que, fosse por Bolsonaro, só haveria, em fevereiro de 2021, dois milhões de doses de vacinas no Brasil; carga comprada à Índia por preço duas vezes maior que o pago pela União Europeia. Que, por gestão de Bolsonaro, o país não tem adquirido volume de doses capaz de imunizar a população. Isso se documenta, inclusive à luz do Código Penal.

A comunicação desses fatos será ainda mais importante, porque logo estará restabelecido o auxílio emergencial, e ele passará a colher as popularidades decorrentes da geração oportunista de dificuldades.

Para desconstruí-lo é preciso mostrar que o Brasil vacina parcamente os seus porque o presidente quer; porque se negou, em agosto de 2020, a contratar 70 milhões de doses do imunizante da Pfizer; porque até agora nem sequer iniciou tratativas para adquirir a promissora vacina da Janssen.

Para simplificar: que tal bater na tecla da incompetência de Bolsonaro?

É claro que se trata de um autocrata golpista. O golpismo, porém, depende de 2022. E ele só não será reeleito se a percepção sobre o autêntico abarcar o que a autenticidade não exclui: que seja um governante nocivo. Esqueçamos, por ora, a problematização de sua moralidade. Bolsonaro é um presidente péssimo, cujos atos pioram a vida dos que sobrevivem à peste que ele não quer erradicar. Isso é o que deve ser repetido. Sei que não é apenas um incompetente. Mas estou convencido de que só a exploração política dos efeitos de sua incapacidade poderá derrotá-lo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário