O mais doloroso numa doença contagiosa é que ela não coloca ninguém acima de qualquer suspeita e, com isso, sacode axiomas sociais pouco discutidos. Por exemplo: pode o amor de mãe contaminar? Nossa casa pode ser um ninho virulento? Como festejar sem o contato físico e o abraço amoroso? A vacina deve seguir a velha hierarquia social ou as necessidades médicas dos grupos de risco?
Doenças de contágio são fatos sociais totais: elas nos atingem biológica e culturalmente. Matam anônimos e entes queridos, em paralelo, condenam gestos e hábitos que fazem parte do nosso arsenal de carinho. O contágio maltrata o cerne de nossas vidas porque somos seres sociais e, como tais, dependemos e somos constituídos de relações. Sem elas, entramos no reino das orfandades, cujo lar é o espaço em que os elos se desfazem: o mundo da rua.
O traço distintivo da pandemia é a sua universalidade. A inusitada “democracia” da Covid (tal como ocorreu de modo ainda mais patente noutras epidemias) conturba pelo inesperado igualitarismo biológico. O vírus “pega”. Passa de uma pessoa a outra independentemente da posição dessa pessoa, o que, numa sociedade em que as relações pessoais têm enorme importância, é um escândalo e um contrassenso.
Como não abraçar pai e mãe? Como estar com os amigos sem deles “chegar perto”, acariciá-los ou dar um “cheirinho de amor numa morena flor”, como cantam Toquinho e Vinícius?
Se ignorarmos o protagonismo da “ética da casa”, jamais entenderemos o comportamento de nossos filhos e netos quando se aglomeram, infelizmente negligenciando as normas da saúde pública.
O que faz um pai quando um filho tem embaraços com a Justiça? Ora, ele o defende, mesmo tendo que demitir o ministro da Justiça e reordenar todo um sistema. A ética das relações familiares, sendo costumeira e implícita, resiste à legislação positiva apropriada para a “rua” — para o mundo “público”. Já a “casa” — e as relações nela fabricadas, como sugeri no livro “A casa e a rua” (publicado em 1985) — deve ser vivida “aquém” das instituições públicas, conforme revelam nossas abusivas e recorrentes roubalheiras.
Sobre isso, basta lembrar que, até anteontem, dizíamos que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Hoje há sinais de mudança, de modo que casa e rua estão mais próximas em matéria de direitos. A casa não mais exime seus “donos” de seguir regras universais.
Penso que a irritante resistência à regra do isolamento (e do uso de máscara) denuncia uma duplicidade. Existem leis universais, mas elas têm um alcance relativo a cargos, pessoas e espaços. Nosso ponto de partida histórico não foi o puritanismo messiânico, igualitário e individualista que tanto assombrou Tocqueville na América. Aqui, crescemos no patriarcalismo hierárquico católico, no escravismo negro e numa aristocracia situada à margem. Todo o sistema estava fundado exatamente na desigualdade.
O que isso tem a ver com o isolamento? É simples. No Brasil, sabemos que os mandões e as autoridades relativizam as leis com seus foros privilegiados. O resultado é trivial: obedecer é um sinal de inferioridade social. O ideal é, lamentavelmente, desobedecer marginalmente, na base da malandragem. É o que vemos nas praias e festas.
O que isso tem a ver com o isolamento? É simples. No Brasil, sabemos que os mandões e as autoridades relativizam as leis com seus foros privilegiados. O resultado é trivial: obedecer é um sinal de inferioridade social. O ideal é, lamentavelmente, desobedecer marginalmente, na base da malandragem. É o que vemos nas praias e festas.
Enquanto a lei impessoal não se tornar concreta — e o concreto no igualitarismo democrático é sua aplicabilidade para todos —, não há como seguir normas gerais, sejam elas jurídicas ou sanitárias.
Comportamentos diante da saúde, da sexualidade, da morte, da comida e dos elos de compadrio e parentesco estão livres das recomendações formais. É o que vemos na praia e nos infalíveis abraços, quando o gesto de afeto compete com as regras impessoais de higiene com trágicos resultados.
Por tudo isso, é preciso, reitero, desburocratizar e acabar com a sabotagem política da vacina. Uma vacinação em massa seguindo critérios do bom senso é a maior prova de que podemos unir o formal e o costumeiro, o país com a sociedade, revelando a nós mesmos que eles podem andar juntos.
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