quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Se o presidente deixar, esse ano eu não morro

Na maioria dos lares onde vive quem têm os dois neurônios necessários para entender o que é uma pandemia, as comemorações de fim de ano foram reduzidas ao mínimo. O Natal não teve prima militante enfiando o dedo na cara de avô reaça, sobrinho anarquista apontando hipocrisias familiares e nem mesmo tio isentão fazendo discurso de autoajuda às duas da manhã. Um horror. O réveillon foi na mesma linha: mal deu meia-noite e já tinha acabado a festa, sem amigos e parentes para abraçar, gente para pegar e estranhos com quem tretar. Outro terror. Esse ano será diferente? Qual o plano deste brilhante, prodigioso e admirável presidente?

Orgulhoso da sua comovente incapacidade para governar qualquer coisa, inclusive a si próprio, o esfuziante gênio tomou no começo da pandemia uma decisão histórica: apostar no negacionismo mais torpe e obtuso. Morreriam milhares de brasileiros – fazer o quê, né? – mas ele salvaria a economia, que, na sua privilegiada visão, pode ser resumida a uma frase: “o de cima sobe, o de baixo desce”.

Para manter a, por assim dizer, tática, o presidente montou um show de diversionismo, apresentando como atração principal a própria ignorância, digna de picadeiro ou de manual de psiquiatria. A função do show era tanto atiçar sua matilha de descerebrados online como zurrar crendices e fakenews, guiando o gado cativo rumo ao precipício da estupidez. Deu no que deu: um contágio descontrolado.


A primeira temporada da pandemia no Brasil terminou com quase duzentos mil mortos.

O iluminado decidiu repetir a dose em 2021. Com as vacinas já disponíveis, todos os governantes do mundo, ao menos os não oligofrênicos, fizeram um cálculo óbvio: quanto mais cedo começar a vacinação, mais vidas se salvam e mais cedo se volta ao normal. O que concluiu sobre essa lógica cartesiana o nosso oráculo do Planalto central? Vacinação é para os fracos, vamos continuar boicotando todas as soluções, sejam testes, máscaras, distanciamento ou as próprias vacinas. A matilha online, que batia palmas furiosamente para os psicopatas e os robôs dançarem nas redes, começou a ficar desmoralizada: até os...hummm...menos inteligentes começaram a perceber que, se o governo é incompetente e imprestável, não faz a menor diferença se é de direita, esquerda ou centro. Acabam todos no mesmo brejo. Brigar para quê? No brejo dos inaptos qualquer ideologia é bem-vinda.

A vacinação, quando houver, será comandada por outro prodígio de farda, o ministro da saúde, a autointitulada divindade da logística. Esse mesmo que acabou de descobrir que vacinas não são aplicadas com colher e aviãozinho, e sim com agulha e seringa. Também foi só agora que o luminar de uniforme camuflado percebeu que precisava ter encomendado as tais seringas e agulhas meses atrás, mais ou menos na mesma época que deveria ter negociado a compra das vacinas. É esse ás da sabedoria e do planejamento que tem a saúde do país nas mãos.

A meta dessas sumidades é nos juntar de novo com o avô reaça, a prima militante, o sobrinho anarquista e o tio isentão. Não numa festa de Natal ou Ano-Novo, mas sim numa UTI. Não vão conseguir. Como cantou Belchior — e agora Emicida — "ano passado a gente morreu, mas este ano a gente não morre".

Nenhum comentário:

Postar um comentário