O invisível e, para a maioria, imperceptível microrganismo não tem preferência por raça, cor, orientação sexual ou condição social. Cada indivíduo é simultaneamente risco para os outros e vulnerável ao contato com portadores do vírus. Não se pode culpar ninguém pela alta letalidade, especialmente em idosos, pessoas com morbidades prévias e inexistência de vacina ou garantia de cura. A resolução do dilema entre o impacto econômico da propagação viral e as medidas drásticas para minimizar mortes foi favorável à saúde. Governos que inicialmente minimizaram a doença, tentaram relativizar, apelaram para o “sempre foi assim” não convenceram. O reconhecimento da ameaça coletiva provocou uma virada radical nas prioridades cotidianas.
Informações sobre o número de casos, as comparações, projeções e expectativas de controle da doença se tornaram mais ou tão importantes do que os índices de desempenho dos mercados. Cidades vazias e ruas desertas abrigam uma intensa e detalhada troca de informações e experiências sobre o autoisolamento. A pertinência de caminhar ao ar livre, meios para comprar alimentos, como realizar a vacinação, o uso de produtos e práticas de higiene e apoio a parentes, amigos e vizinhos tornaram-se assuntos importantes. Mortes de alguns em nome da minimização de prejuízos econômicos foram desautorizadas. A regra de ouro do equilíbrio fiscal e o corte indiscriminado de gastos sociais perderam sentido. Exceto bizarrices pontuais, prevalece um vigoroso consenso internacional em torno da necessidade de aumentar despesas públicas com saúde, assistência social e ciência e tecnologia. Nas mídias, estão cientistas e profissionais de saúde, compartilhando publicamente seus conhecimentos e incertezas. Aqueles economistas cheios de certezas sobre os sacríficos a serem impostos para os pobres foram ofuscados pela força e premência dos debates para preservar vidas.
O Brasil reconheceu precocemente o coronavírus como emergência de saúde pública. Mas parte do precioso tempo (mais de dois meses) entre a tragédia na China e a primeira morte no Brasil foi desperdiçada no contencioso histeria versus drama social. Medidas para fortalecer o SUS e atenuar o agravamento da recessão econômica vêm sendo administradas a conta-gotas. Os investimentos sociais anunciados são insuficientes, desproporcionais à magnitude da crise sanitária. Escassez e parcelamento de recursos federais para a saúde —R$ 5 bilhões, aprovados no final de fevereiro, provenientes do remanejamento de emendas parlamentares, acrescidos agora por R$ 6,8 do DPVAT — dificultam superar com presteza limites estruturais do SUS. Sem um volume adequado de recursos, fica inviável organizar da noite para o dia um sistema assistencial abrangente e integrado. Estados e prefeituras com maiores orçamentos estão participando dos esforços propostos pelo Ministério da Saúde, mas desenvolvem atividades adicionais, por vezes contrárias às normas federais.
Apesar das deficiências do SUS, as teses sobre a superioridade da assistência privada em relação à pública foram superadas pela realidade. A ideia de que o atendimento dependa exclusivamente da capacidade de pagamento dos pacientes serviria, quando muito, como roteiro de filme de terror. Sistemas universais de saúde mostraram-se poderosos aliados para o controle da pandemia. O SUS será estratégico para a redução das mortes por coronavírus se mais e novos recursos forem direcionados para atenuar a precariedade da capacidade instalada pública, distribuição espacial heterogênea de recursos humanos e equipamentos e padrões diferenciados de acesso e qualidade. O SUS realmente universal assegura a todos, assintomáticos e doentes, as mesmas chances de prevenção e cura. Pacientes graves sentem falta de ar e podem necessitar de ventilação mecânica, oxigênio em volume máximo, em hospitais e centros de terapia intensiva. Para os demais, recomenda-se ar puro, permanecer em casa, trabalhar e estudar em ambientes não poluídos e mobilizar apoio para fortalecer o SUS. Três palavras, saúde para todos, ajudam a renovaro ar e as esperanças.
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