quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Quem tem medo do Coringa?

Parem as câmeras. Parem os prêmios. Parem os festivais. “Coringa” chegou para dar um recado que exige suspensão de fôlego. Aliás, discutir se Joaquin Phoenix  é o melhor Coringa do cinema pode até divertir, mas é fútil. Útil é perceber que se trata, isso sim, de um dos melhores trabalhos de um ator na história do cinema.

Quase tive um acesso incontrolável de riso, como o personagem, ao ler críticos consagrados de jornais como “NYT”, “The Guardian” e outros elogiarem o ator como se estivessem fazendo uma concessão ao fato de espinafrarem o filme. Um dos resenhistas chega ao extremo de dizer que o problema está na densidade que Phoenix dá ao Coringa, por roubar da película todo o resto.

Que resto? Esta é a grande qualidade da versão do diretor Todd Phillips! Deixar, conscientemente, que Phoenix crie um filme para si próprio e que sua composição do personagem construa um “discurso” para além das falas, do roteiro, da direção.


O problema dos que têm problema com esse Coringa é o medo. Primeiro, o medo de sua humanidade e verossimilhança. Segundo, o pânico de enxergar que ele não é um psicopata. Um psicopata desconhece o sentido da empatia. O Coringa de Phoenix tenta negociar, obsessivamente, até que, na sua ótica perturbada, esgotem-se as alternativas.

Mesmo acometido de uma doença mental (muita gente ainda confunde psicose com psicopatia), afinca-se numa lucidez extrema no que se refere às regras básicas de convivência. Quando vêm os acessos de riso, tenta sempre avisar aos que não o compreendem, com um gesto negativo das duas mãos, tratar-se de um problema neurológico. Tem até um cartão que informa sua condição.

É medonho ver que o Coringa chegou com empatia para dar e vender. É quase um idealista da arte, da gentileza, do respeito ao cidadão, da solidariedade. É um dócil adversário dos embustes, da mentira, da exploração, até o momento em que a hipocrisia toma tamanho vulto que, torturado por seus delírios, “decide” que não há opção senão um violento cinismo.

Ao testemunhar os três playboys misóginos de Wall Street  assediarem a passageira do metrô semi-vazio, antes de começar a rir, ele abana a cabeça, como a lamentar o incidente. Esse movimento, ora melancólico, ora gracioso, é a marca de seu desalento com o mundo. Um mundo onde Thomas Wayne, que nos quadrinhos costuma ser um Gandhi da elite financeira, no filme de Todd está mais para um candidato a Trump ou Bolsonaro. Desses políticos que pensam que o povo é palhaço e cuja plataforma é “limpar o que está aí”, sem dizer muito bem o que é.
Os diferentes risos do Coringa são formas de expressão e de reação à lógica ferrenha do sadismo que tomou conta das relações sociais. Há um segundo riso, atrasado em relação ao que o motivou, que é o mais medonho. Um riso empostado, agudo, com um movimento exagerado da boca. Ele o usa para reagir às piadas imbecis que se tornaram o padrão dos adeptos do discurso de ódio. Há quem pense que este Coringa representa tal discurso. É o oposto: ele é o vingador dos que não têm como se proteger da impostura carnavalizada dos novos populismos. É isso, acima de tudo, que mete medo.

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