Esta era a mensagem que a procuradora da República em Altamira Thais Santi tentava passar aos jornalistas. Os incêndios são graves e devem ser denunciados e combatidos, mas é necessário compreender também que um rio está morrendo. Morrendo. “É ecocídio, e é genocídio”, ela afirma. A procuradora não exagera. Os fatos são eloquentes, investigados e mensurados pelos melhores cientistas da área do Brasil, e também por documentos oficiais. Na história recente da Amazônia, a grande causadora e reprodutora de violências na região do Médio Xingu, onde está a cidade de Altamira, foi e segue sendo a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Muito pouco acontece na cidade que não tenha o DNA da Norte Energia S. A., a empresa concessionária da barragem. Esse DNA está marcado na agonia da Volta Grande do Xingu, uma região belíssima de 100 quilômetros onde vivem os povos Juruna e Arara, assim como população ribeirinha e espécies endêmicas de peixes. É também nesta região que, nos últimos anos, outra gigante, a mineradora canadense Belo Sun, pressiona a população local e assedia políticos de Belém para obter autorização para explorar aquela que seria a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil – e também o sepultamento oficial da Volta Grande embaixo de toneladas de rejeitos tóxicos.
Volta Grande do Xingu em 2015, antes da seca e do início do funcionamento da usina |
Qual é o problema político com Belo Monte, acentuado num país polarizado?
Belo Monte é um crime construído pelos governos do PT/PMDB. Segundo a Operação Lava Jato, uma obra construída para a geração de propina. Como é uma obra que começou a ser articulada com Lula e foi materializada por Dilma Rousseff, uma parcela significativa da esquerda preferiu fechar os olhos para Belo Monte, como faz até hoje. Os direitos humanos tanto dos povos indígenas, o que fere diretamente a Constituição, quanto das populações ribeirinhas foram violados sistematicamente para que a usina fosse construída.
Durante a construção da usina, na segunda década deste século, pessoas analfabetas foram pressionadas a assinar papéis que não eram capazes de ler, onde aceitavam perder tudo em troca de nada ou de uma indenização que mal permitia viver alguns meses nas periferias de Altamira. Ninguém pode dizer que não sabia. Embora grande parte da imprensa exaltasse a “grandiosa obra de engenharia”, eu e outros jornalistas denunciamos as violações em nossas reportagens. E fomos fortemente pressionados junto a nossos editores pela empresa. Também fomos atacados por militantes nas redes sociais.
Este, de novo, é o problema com a morte da Volta Grande do Xingu. No momento, Lula está preso por um processo em que há escandalosas evidências de abusos cometidos por agentes públicos durante a instrução e julgamentos, excessos totalmente incompatíveis com qualquer ideia de justiça. Para piorar, a situação foi agravada pela parcialidade explícita exposta pelo vazamento das trocas de mensagens entre o então juiz Sergio Moro, atual ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, e os procuradores da Operação Lava Jato, revelado pela série de reportagens do jornal The Intercept. Neste cenário, quem quer lembrar do crime que é Belo Monte, este que tem o DNA de Lula e de Dilma Rousseff?
O outro grande obstáculo que impede a salvação da Volta Grande do Xingu, e portanto da floresta amazônica, é que Belo Monte está totalmente afinada com a visão de Jair Bolsonaro e do grupo de militares que o acompanha no governo de extrema-direita. Bolsonaro já anunciou, por meio do ministro de Minas e Energia, que viajará para Altamira no final do ano, para orgulhosamente inaugurar a última turbina de Belo Monte, o que significará a conclusão de uma obra que custou várias vezes mais do que o previsto.
É preciso reconhecer e dizer, mesmo que seja duro para alguns: a visão para a Amazônia dos governos de Lula e de Dilma, de centro-esquerda, e do governo de Bolsonaro, de extrema direita, é semelhante. E é totalmente afinada com a visão dos militares, construída e difundida durante a ditadura (1964-1985): a exploração da floresta por meio de grandes obras e grandes projetos, sem escutar os povos da floresta nem respeitar seus direitos constitucionais, usando como estratégia a falácia da ameaça à soberania. No trato com a Amazônia não houve ruptura política, mas continuidade.
Acompanhem o que Lula afirmou à repórter Mariana Schreiber, da BBC Brasil, em excelente entrevista feita na prisão e publicada no último 29 de agosto. “Tenho orgulho de ter feito Belo Monte”. E, em outro ponto: “Não tente culpar a Dilma pelo que está ocorrendo em Belo Monte hoje. Cada um de nós é responsável pelo período que governou o país”. Lula defende Belo Monte durante vários parágrafos e empurra os problemas para os governos municipal e estadual, assim como para o atual governo federal.
Concordo com Lula que é suficiente e justo responsabilizá-lo apenas pelo período em que ele e Dilma governaram o país e impuseram aos povos do Xingu uma hidrelétrica que nem a ditadura tinha conseguido materializar num dos rios mais importantes da Amazônia. E, assim, fazer a conversão de povos ricos da floresta em pobres urbanos da periferia da cidade. E, tudo isso, justamente num momento em que o planeta vive a emergência climática. Para mim, e acredito que para muitos, se ele assumir a responsabilidade do PT no que se refere à Belo Monte durante os três mandatos completos e o quarto mandato interrompido pelo impeachment está suficiente.
É nesse ponto de rara intersecção entre Lula e Bolsonaro que o Xingu está morrendo. Quem então vai defender a vida na Volta Grande do Xingu no Brasil polarizado, se isso significa tocar no vespeiro das verdades das quais não se pode escapar? Este tem sido o desafio da parcela respeitável do Ministério Público Federal e das ONGs que lutam pela preservação da floresta e de seus povos, mas que hoje foram criminalizadas por Bolsonaro e seus seguidores. Está bastante claro que, sem a mobilização da população, não será possível salvar o Xingu. É na Amazônia que as lideranças políticas emergentes, em especial as identificadas com a esquerda, vão mostrar de fato quem são. Observemos.
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