quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Irrelevância

O discurso de posse de Jair Bolsonaro, aguardado ansiosamente como o meio adequado ao governo para anunciar seu rumo, frustrou expectativas ao optar pela irrelevância. Quem esperava ouvir definições, teve que esperar os discursos de posse do ministro da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sergio Moro, os dois executivos do governo com substância a apresentar de imediato.

A decepção causada tem a ver com a decadência da comunicação verbal na política ou é sinal de que os "meme faces" da web não só ganharam as eleições, mas serão a linguagem corrente dos governos? Não importa, discurso de posse é discurso de posse.

Não tem uma estrela de general o material apresentado ontem pelo presidente, requentando o que foi dito na campanha e ao longo de sua vida parlamentar. Demonstrou que não sabe o que significou a vitória. Manteve-se histrião, tanto na oratória quanto ao desfraldar uma bandeira do Brasil que lhe foi colocada nas mãos.

Nos últimos dias, os assessores do governo vinham chamando a atenção para alguns sinais que ele emitiria na posse, durante a manifestação pública mais importante do dia, o pronunciamento ao Congresso Nacional, diante dos chefes de Estado estrangeiros. É esse discurso que aponta o propósito, mostra a que veio aquele grupo novo de dirigentes. Mais do que as palavras que o presidente profere do Parlatório do Palácio do Planalto, ao receber a faixa, geralmente dirigidas ao público na Praça dos Três Poderes, sempre em tom mais emotivo, o discurso no Congresso é um compromisso.

Um compromisso que, no caso de Bolsonaro, não houve. Sem brilhantismo, claramente sem contribuição de formuladores, escritores e assessores, o discurso de posse se assemelhou ao da diplomação, que se pareceu com muitos da campanha eleitoral: agradecimento a Deus pela vida, um ou outro bordão que adotou desde a campanha, a reafirmação de algumas ideias que tem na cabeça mas ainda não no papel. Defesa pessoal, polícia versus bandido, reafirmação da democracia, valorização da família, desburocratização, reformas estruturantes, combate à corrupção. Sobre nenhum desses itens, citados "en passant", diz o que pretende e como chegar a resultado.

Isso não é um plano de governo, sequer um enunciado de intenções concretas, mas simplesmente a repetição de problemas salpicados aqui e ali durante a campanha eleitoral. O discurso do Parlatório, depois de receber a faixa, já mais à vontade, também não serviu para perscrutar o novo governo. Nesse, voltou a questões tratadas no pronunciamento anterior, com uma repetição importante: ideologia, ideologia, ideologia é do que Bolsonaro quer livrar o Brasil. O que parece levá-lo a consolidar a ideologia substituta.

Onyx Lorenzoni, empossado ontem chefe da Casa Civil da Presidência, havia classificado o discurso de posse, antes de ser dado a conhecer, como "papo reto". A objetividade apareceu apenas em um único momento, em que Bolsonaro mencionou a velha e recorrente ideia de cumprir o Orçamento da União aprovado pelo Congresso. O governo não vai gastar mais do que arrecada, disse, reproduzindo o princípio aritmético básico dos orçamentos concebidos para o governo e nunca cumpridos. Porém, é uma antiquíssima ideia, apresentada nos primórdios da redemocratização em um discurso jamais pronunciado, escrito pelo jornalista Mauro Santayana para o então presidente Tancredo Neves, no qual cunhou o "é "proibido gastar".

Bolsonaro foi pródigo em lugares comuns, chavões, falta de ideias: "Trabalhar para que o Brasil se encontre com seu destino", "partilhar o poder com Estados e municípios", "libertar o país da corrupção", "resgatar a legitimidade do Congresso", "criar círculo virtuoso da economia". Nada de concretude, princípios claros, nada sobre como vai fazer jus à esperança de seus eleitores.

Um dos maiores problemas da democracia brasileira, que resulta em questão política recorrente, é a independência entre os poderes, ou a recuperação dessa convivência pacífica: nenhuma palavra sobre isso. Alguns de seus assessores haviam mencionado que, no discurso de posse, o presidente Jair Bolsonaro mostraria a prioridade que o governo dará à Educação.

Haveria menção a uma radical autonomia universitária e de explicações mais claras sobre o que pretende fazer de fato com o Sistema S. Inclusive, submetera o rascunho do discurso aos ministros Paulo Guedes e e Ricardo Vélez Rodríguez. A não ser por uma genérica menção à ideologia nas escolas, questão resumida no projeto de Escola Sem Partido, e à existência de uma grande Nação por reconstruir, com a ajuda do povo, o enunciado não se realizou.

O general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, o mais próximo e influente colaborador de Jair Bolsonaro, foi parceiro na redação do texto que, no entanto, mantém uma coerência absurda com tudo o que Bolsonaro falou e escreveu até agora, a seu modo. Não há, nos pronunciamentos de ontem a menor pista sobre quem está por trás das atitudes do presidente, nem quais são seus planos. As evidências são de que o governo é estanque: Guedes, Moro e militares.

Até o fato concreto da mudança da embaixada brasileira em Israel, de Tel Aviv para Jerusalém, a ideia mais repetida desde a eleição, assunto que em pouco tempo se transformou numa espécie de seca do Nordeste, não apareceu ontem de forma mais concreta, embora os assessores tivessem prometido também princípios de política externa no discurso. Parece ter havido um sutil recuo na questão externa. O novo chanceler Ernesto Araújo, inclusive, considerado ponto fora da curva no Ministério escolhido por Bolsonaro, deve, com suas declarações destemidas, resgatar a imagem do ex-ministro Celso Amorim, perdendo a condição de fazer o contraponto da politica externa ideológica condenada por Bolsonaro. Não está claro o alcance do seu voo. Ao invocar a providência divina na aproximação do filósofo Olavo de Carvalho do novo presidente, Araújo passou um atestado de fragilidade. Quem está forte não precisa de apoio de santo que não quer ser sombra ao milagre alheio.

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