O desfecho anunciado deve-se a um conjunto de equívocos.
Erraram os democratas, que não conseguiram compreender a derivação conservadora da sociedade, turbinada pela repulsa ao politicamente correto e pela antipolítica. Trataram isso como uma espécie de doença, de forma simplória, com insultos e estigmas. Deixou-se assim caminho livre para a pregação bolsonarista, que foi capturando apoios, mal-estares e convicções. A direita fundamentalista pôs o corpo inteiro para fora, misturando ódio, medo e ressentimento contra a “esquerda”. Bolsonaro decodificou esses sinais e traduziu-os num bólido antipetista.
Os democratas erraram uma segunda vez quando deram o PT como morto, depois da derrota eleitoral de 2016 e do impeachment. Não reconheceram a força do partido, derivada tanto da alta exposição midiática, da estrutura organizacional e das adesões intelectuais quanto da mitificação popular de Lula. Em vez de pressionarem para que o PT se depurasse e revisse suas opções, passaram a mão na cabeça do partido e quando abriram os olhos o velho PT estava mais vivo que nunca, fabricando ilusões, plantando esperanças e ocupando simbolicamente os espaços do “progressismo”.
Foram incompetentes os liberais. Optaram por medir forças entre eles num quadro de polarização em que só teriam chances se formassem um polo alternativo marcado pela moderação. Batendo uns nos outros, naufragaram de modo patético, sem sequer aproveitarem o ambiente receptivo à pregação liberal em favor da liberdade pessoal, do mercado, do empreendedorismo. Fecharam-se à esquerda democrática e foram afundando agarrados a um doutrinarismo primário.
Foi igualmente incompetente o centro-esquerda. Em vez de impulsionar o imaginário social-democrático, que tanta falta nos faz, seus articuladores derivaram para um apoio ao centro que jamais teve reconhecimento e não soube desvencilhar-se do abraço asfixiante do “Centrão”, cujo fisiologismo recebe repulsa generalizada. Olharam para a direita sem se preocupar com a esquerda. Sua ideia de “polo democrático e reformista” ficou solta no ar, sem contagiar o eleitorado ou sensibilizar o mundo político. O centro-esquerda colou-se assim a um centro fragmentado e autodestrutivo, largando Marina e Ciro à própria sorte e ajudando-os a se encantarem com a possibilidade de atrair as viúvas do lulismo.
E foi incompetente, por fim, o PT. Inebriado pelo desejo de vingança, pela vocação de dono da verdade e pela pretensão de comandar com mão de ferro o campo progressista, o partido submeteu-se ao imperialismo religioso do lulismo. Orientado pelas cartas nada gramscianas de um Lula encarcerado, Haddad trocou a ousadia e o arejamento discursivo pela narrativa tosca do “golpe” e do retorno a um passado em que o povo era feliz. Passou a prometer crescimento, abundância e geração de empregos sem explicar como fará isso sem cortes de gastos, sem reforma da Previdência e sem criticar os esquemas de corrupção associados ao modo lulista de governar. Haddad flutua entre o distanciamento e a submissão a Lula. Num dia afirma que vai soltá-lo, no outro diz não ao indulto. Esconde o retrocesso havido nos anos de Dilma para louvar a bonança do período Lula. Dissimula e falseia a realidade, ludibriando os eleitores. Quer pagar de moderado para atrair os não petistas, mas ao adular Lula gera desconfiança e rejeição.
Haddad e Bolsonaro têm seus problemas e dificuldades. O capitão, hospitalizado, vê sua campanha desorientar-se e perder seu principal ativo. Terá de reorganizá-la rapidamente para não perder o que já acumulou. Se vencer, terá de provar que tem condições de governar. Já Haddad, que ganhou fôlego com a ascensão fulminante, precisará buscar os votos dos indecisos, dos antipetistas, dos que não se identificam com nenhum dos polos. Se vencer, terá de demonstrar, dia a dia, que consegue soltar-se de Lula e conter o apetite do PT.
Bolsonaro e Haddad não são equivalentes. Um é autoritário e outro, não. Mas estão atados por um mesmo tipo de cegueira e fanatismo.
O modo como avançou a disputa não sugere que o próximo ciclo será produtivo. As campanhas deseducam a população. Eleitores petistas estão sendo induzidos a acreditar que do céu cairá uma chuva de fartura e facilidades. Os de Bolsonaro acham que ele acabará com a bandidagem e a corrupção. Uns e outros estão cansados e parecem querer ver o circo pegar fogo.
Normaliza-se o que deveria ser visto como risco. A vitória de Bolsonaro ou de uma nova versão do lulismo deixará o País numa situação ruim. A ponte que liga esses dois cenários chama-se ingovernabilidade, alimentada por uma dinâmica de vetos cruzados permanentes, radicalizações e confusão social.
Cada época tem seus limites. Os nossos, no Brasil de 2018, se resumem a poucas palavras: a sociedade abandonou os políticos à própria sorte e os políticos, sem apoio social e sem partidos dignos do nome, perderam as referências e não sabem mais o que fazer.
Chegamos assim, por vias que não puderam ser controladas, ao esgotamento de uma época democrática. No próximo ciclo, seja quem for o eleito, a obra será de reconstrução: do Estado, da economia, da política, do tecido social. Não será um começar de novo, mas qualquer avanço será sofrido e terá de ser duramente negociado.Marco Aurélio Nogueira
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