quarta-feira, 25 de abril de 2018

Controlar o purgatório?

A noção de um lugar intermediário, marcado por intensidades e definido por pertencer simultaneamente a dois hemisférios (céu e inferno, culpa e inocência, casa e rua, pessoalidade e impessoalidade), manifesta uma óbvia visão relacional. Um ponto de vista no qual o elo (o meio ou a ponte) é mais saliente do que regras e indivíduos. Não há nenhum cisma social sem relações, mas não é em todo lugar que elas são valor e ética, como no caso brasileiro.

Da beatitude celestial ninguém sai, tal como acontecia com as arcaicas garantias legais dos senhores sobre seus escravos ou a das generosas aposentadorias dos funcionários do Estado que, sendo seus filhos, passavam seus cargos para seus descendentes. Da punição que o grande Dante etnografou descrevendo em detalhes os castigos do inferno, ninguém igualmente sai exceto, talvez, no maravilhoso dia do Juízo Final, no qual os vivos e os mortos vão se reunir e, quem sabe, a misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo vai redimir esse vale de lágrimas no qual estamos encerrados.

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A grande novidade do purgatório, como só um erudito francês - Jacques LeGoff - foi capaz de aquilatar, introduz no cosmo cristão a intensidade ambígua de um brasileirismo. Com o purgatório legitima-se o “mais ou menos”; reacende-se o elo entre os puros e os pecadores que se comunicam e têm a oportunidade de adiar, anular ou diminuir suas penas graças a instâncias, recursos e demandas dos seus parentes, amigos, companheiros e advogados terrenos.

Lutero mudou o curso da religiosidade ocidental no seu protesto contra todo tipo de meio-termo, sobretudo das indulgências como um comércio. Esse vosso cronista tem vergonha de um sistema judiciário no qual o larápio da coisa pública é diferenciado do bandido comum e‚ colocado no purgatório legal dos que cometem crimes especiais, eufemisticamente chamados de “colarinho branco” - delitos obviamente superiores; livram-se da cadeia por meio de embargos, protelações e recursos - essas indulgências brasileiríssimas vigentes no grande purgatório que é o sistema jurídico nacional. Na Europa do século 16, elas acenderam a Reforma; no Brasil do século 21 elas podem ou não confirmar a impunidade dos poderosos ou a grande transformação igualitária desejada pela maioria.

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Seria um delírio do cronista sugerir que no mundo global o mais ou menos do purgatório existe a seu modo no Brasil?

Esse Brasil republicano que não deixou de ser imperial nas práticas políticas e nos estilos de manter privilégios e empenhos - uma sobrevivência aristocrática num sistema destinado a ser meritocrático, competitivo e impessoal.

A grande tarefa do Supremo Tribunal Federal é a de conjugar e balizar o que vem da sociedade e o que está consagrado na Lei Maior.

O bom senso é contrariado quando se tenta mudar jurisprudência sobre a prisão após julgamento em segunda instância e quando se passa por cima da Lei da Ficha Limpa, uma norma popular e inovadora. Teria o STF a índole de ser contra esses marcos da experiência democrática brasileira?

Penso que é imprudente ficar tanto ao lado das hermenêuticas atadas à lei vigente quanto ouvir as demandas da sociedade convulsionada e revoltada precisamente pelos privilégios e conchavos facilitados por um sistema legal ultrapassado. Nem tanto ao céu nem tanto ao inferno e nem tanto ao brasileiríssimo purgatório. Não se fica contra a Lei Maior, mas a quem serve a Constituição senão à sociedade brasileira? Ouvir a sociedade não é abandonar a Constituição.

A grande demanda é acabar com a transformação da política numa atividade compadresco-partidária desonesta e alérgica ao republicanismo que exige a igualdade meritocrática e eficiente na distribuição de recursos públicos. Não se trata de acabar com a política pelo legalismo. A questão é não deixar que o legalismo jurídico afeito ao purgatório acabe com a política!

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