sábado, 14 de outubro de 2017

Cármen Lúcia: rendição no Supremo e o mandamento de Ulysses

“Por toda terra que passo/ Me espanta tudo o que vejo.../...O olhar que prende anda solto/ O olhar que solta anda preso./...Ê, Minas/Ê, Minas/É hora de partir/Eu vou/ Vou-me embora pra bem longe” 
(Versos de “Desenredo”, canção mineira gravada pelo grupo Boca Livre)
Diante da televisão, na Cidade da Bahia (de todos os santos e de quase todos os pecados), faço duas constatações ao mesmo tempo, a partir das constrangedoras situações, que se abatem sobre o País no mesmo dia e ao mesmo tempo.

É quarta-feira e o golpe abaixo da linha da cintura vem ao assistir, através do canal privado que transmite, ao vivo, a sessão de 11 de outubro, no Supremo Tribunal Federal, presidida pela ministra Cármen Lúcia. Uma data para não esquecer na história da corte maior da justiça brasileira, arrastada a momento quase supremo de humilhação, submissão e chicana.

Salta aos olhos a primeira verdade, que aprendi nas redações do Jornal do Brasil, da Veja e de A Tarde, em períodos de tensas e cruciaIs coberturas de crises políticas, econômica e socias, ou de graves tragédias humanas e desastres naturais: nada é tão ruim que não possa piorar ainda mais.

Logo se configura também a segunda (e ainda mais triste constatação), cujos sinais iniciais o jornalista já percebia há bastante tempo. Mas se deixava iludir, talvez por uma daquelas inexplicáveis quedas de simpatia pessoal, um afeto sem motivo, uma admiração sem causa, que cada um de nós tem pelo menos uma ou duas vezes na vida. Ou, quem sabe, por simplesmente não querer acreditar naquilo que os signos mostravam e os olhos (mesmo meio cansados) enxergavam.


Tudo se consolida no correr da longa e penitencial sessão de quase 13 horas de duração (somadas as suas duas partes), na véspera do feriado de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil. “Conduzida” por uma ministra presidente trôpega nas palavras, vacilante nos modos e visivelmente perdida nos labirintos de seu comportamento contraditório, tosco mesmo, a ponto de merecer explícito “pito” de desapontamento por parte do ministro relator Edson Fachin.

A jurista mineira precisou até da prestimosa e providencial ajuda do decano, Celso de Mello, quando, desgraçadamente, tropeçava na exposição de seu confuso voto pela salvação do conterrâneo senador tucano, Aécio Neves, e se enredava a ponto de não conseguir alinhavar os termos finais da dec isão, no julgamento que ela presidia . Um final mais constrangedor e melancólico, impossível.

A segunda verdade a que me refiro, no começo deste artigo, cobra do autor a reprodução, mais uma vez, do enunciado do primeiro mandamento – a Coragem - do Decálogo do Estadista. Transcendente legado político e moral do ex-deputado Ulysses Guimarães (parlamentar com P maiúsculo encantado no fundo do mar).

Tantas e tão repetida vezes citado, em vão, ultimamente, pela ministra presidente do STF. Com a palavra, portanto, o eterno e indomável guerreiro, artífice e defensor da Constituição de 1988, duramente agredida e ferida pelos 6 a 5 da decisão de quarta-feira:

“O pusilânime nunca será estadista”, afirma de saída, sem apelação. E prossegue com o registro da afirmativa de Churchill de que, das virtudes, a coragem é a primeira. Porque sem ela, todas as demais, a fé, a caridade, o patriotismo desaparecem na hora do perigo.

“Há momentos em que o homem público (e a mulher) tem que decidir, mesmo com risco de sua vida, liberdade, impopularidade ou exílio. Sem coragem não o fará. Cesar não foi ao Rubicon para pescar, disse André Malraux. Se Pedro Primeiro fosse ao Ipiranga para beber água, suas estátuas não se ergueriam nas praças públicas do Brasil”.

No arremate brilhantemente verdadeiro de seu conceito, Ulysses proclama: “O medo tem cheiro. O cavalo e os cachorros sentem-no, por isso derrubam ou mordem os medrosos. Mesmo longe, chega ao povo o cheiro corajoso de seus líderes. A liderança é um risco, quem não o assume não merece esse nome”.

Verdade reluzente. Já citada, mais de uma vez, neste espaço semanal de informação e opinião em outros momentos igualmente graves. Citarei outras tantas, quantas vezes sejam necessárias tão sábios e necessários ensinamentos.

Mesmo que seja apenas em nome da memória do criador do Decálogo do Estadista, que de tempos em tempos parece ressurgir espiritualmente das profundezas do oceano e sobrevoar Brasília e o País, para atiçar algumas consciências, acender faróis, clamar pelo não arrefecimento do combate vigilante e permanente contra os corruptos e corruptores (“pragas devastadoras da nação”), destronar vestais e apontar caminhos, sempre possíveis, de honra, coragem e (quem sabe?) de salvação.

O estrago está feito na história cheia de altos e baixos do Supremo Tribunal Federal, e na biografia da ministra Cármen Lúcia, sua atual presidente. Seguramente, a principal atingida pelos escombros do desabamento desta tristonha semana de outubro, decorrente da rendição registrada no 6 a 5 de quarta-feira, placar final de pelada de várzea.

Com o voto da ministra presidente, não cabe mais ao STF a decisão final sobre a aplicação de medidas cautelares a parlamentares (mesmo quando vergonhosamente apanhados com a boca na botija).

Se a cautelar atrapalhar a vida de um parlamentar (por mais corrupto que seja), ainda assim a palavra final será do poder Legislativo, que faz a lei, e não do Judiciário, a quem cabe zelar pelo cumprimento das normas da Constituição.

Entendeu, ou é preciso desenhar? A bola, redondinha, está agora nos pés (ou nas mãos) de profissionais do malabarismo parlamentar, vários deles apanhados em faltas graves, mas que ligam pouco (ou nada) para regras, a começar pelo tucano Aécio Neves, principal beneficiário da votação presidida pela conterrânea (amaldiçoado seja aquele que pensar mal dessas coisas).

O destino do senador por Minas Gerais será jogado, na semana que vem, por seus pares no Senado. Já começa o jogo de abafa para que tudo se resolva na base do voto fechado. Quem arrisca um resultado?

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