A tentação é grande de acompanhar as delações — sempre deletérias — como episódios singulares, individuais, sorvendo sadomasoquistamente os episódios obscuros, as inconfidências, as negativas patéticas, o cinismo. Muitos até esquecem, indignados, que eles próprios é que elegeram — ou reelegeram — os implicados nas denúncias.
Seria, talvez, necessário que se começasse a pensar e a refletir por que tantas grandes lideranças, por que todos os principais partidos políticos entraram neste jogo e foram tragados por ele. Os dois últimos escândalos que abalaram — e ainda abalam — o país não terão evidenciado, e mais uma vez, que estamos diante de uma crise de caráter sistêmico? A verdade é que há um jogo sendo jogado. Uma engrenagem, um sistema, que precisa ser analisado, compreendido e superado.
Este sistema tem suas raízes na Constituição de 1988.
Ulysses Guimarães, numa licença poética, a celebrou como “cidadã”. O texto, de fato, tem virtudes, até inesperadas, considerando-se a maioria conservadora que o aprovou. Uma delas foi a consagração das clássicas liberdades democráticas. Não era pouco, para um país que emergia de uma longa ditadura. Uma outra inovação positiva mereceria destaque: um conjunto de direitos sociais, mesmo que se saiba que há sempre uma distância entre direitos constitucionais e práticas sociais.
Ao mesmo tempo, porém, bem “à brasileira”, conciliando opostos, a Carta Magna abrigou uma série de dispositivos autoritários. O mais perigoso foi a reiteração da tutela das Forças Armadas e o seu direito de intervir na vida política nacional, sempre e quando requisitadas para garantir “a lei e a ordem”. Previu-se também o impeachment, este atentado à soberania democrática popular, pois reserva a uma elite de representantes o direito de usurpar o voto de grandes maiorias. O triste foi ver as esquerdas dele se servirem antes de experimentar o seu amargo sabor.
Em movimento paralelo e articulado, consagrou-se um sistema político elitista. Sob o pretexto de se defenderem contra o arbítrio, os constituintes blindaram os representantes eleitos contra qualquer tipo de controle, popular ou jurídico, aprovando o infame e aristocrático “foro privilegiado”. Na sequência, vieram mordomias de toda a ordem, dotando deputados e senadores de privilégios excepcionais, autênticas jabuticabas, pois só encontradiças no Brasil.
Fecharam-se à sociedade, mas se abriram, sem limites, ao mercado, permitindo o financiamento sem freios de grandes empresas, essencial para campanhas, marqueteiros e programas de televisão cada vez mais caros. E ainda favoreceram-se com dinheiro público, o chamado “Fundo Partidário”, tomado sem consulta às pessoas, transformando os partidos em instituições independentes dos cidadãos. Foi este sistema deformado que, isolado em Brasília, uma ilha da fantasia, proporcionou as condições ideais para a corrupção em larga escala das lideranças e das instituições brasileiras. Engoliu até o PSDB, o PT e o PDT que, nos debates da Constituinte, apresentavam-se como reformistas e inovadores.
O Supremo Tribunal Federal deu um primeiro golpe na engrenagem, ao proibir o financiamento empresarial das campanhas eleitorais. Mas não é seguro que a proibição permaneça no tempo. Por outro lado, ainda na presidência Dilma, para compensar a perda do financiamento empresarial, triplicou-se o Fundo Partidário. E, agora, na reforma política em debate, já se explicitou a perspectiva de duplicar ou triplicar os dinheiros públicos à disposição dos partidos.
Trata-se de um sistema aristocrático. Uma engrenagem antipopular e antidemocrática. Enquanto existir, fabricará Temers, Aécios, Cunhas, Lulas. Triturará todos os que dele se aproximarem e nele se integrarem, salvando-se apenas as exceções de praxe.
A crise brasileira não é obra de meia dúzia de gatunos. É produto de um sistema, consagrado pela chamada Lei Maior. Ou a sociedade encara esta esfinge, a decifra e a supera, ou pode se preparar para ser devorada por uma infindável crônica policial.
Daniel Aarão Reis
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