O dinheiro tem, entre outras incontáveis virtudes, uma qualidade detergente. E múltiplas qualidades nutricionais. Alegra-te os belos olhos, engorda-te as bochechas, permite-te esse modo de ocupares uma poltrona, de pernas bem esticadas e jornal nas mãos. Dá-te essas mãos impolutas que emergem dos punhos de algodão branco da camisa. Já não és tu quem vagueia à noite. Podes contratar quem capture, degole e esfole as presas que constituem os ingredientes indispensáveis do cozido ou da paella dos domingos. Assim se fez sempre nas casas das boas famílias.
Não é o senhor da casa que desfere o golpe fatal ao coelho, não é a senhora que crava a faca no pescoço da galinha e a depena, com o pote de barro entre as pernas, cheio de pão migado que o sangue há de empapar como deve ser, para o rico ensopado. Aos senhores, os animais chegam sempre já cozinhados, servidos numa bandeja coberta por uma reluzente campânula de prata, ou na caçarola, guarnecidos, irreconhecíveis de tão desfigurados e, por isso mesmo, apetitosos na sua aparente inocência. Assim se fez sempre, assim se continua a fazer; nós próprios adquirimos em poucos anos esse privilegiado estatuto, a ilusão de sermos todos senhores: em remotos pavilhões industriais, os trabalhadores matam e esfolam e esquartejam e despedaçam e embalam os animais que consumimos depois de transformados em objetos apresentavelmente assépticos: filetes rosados, que mais parecem salmão do que vitela graças a essas substâncias com que tingem a carne para que se torne mais atrativa à vista (sim, atrativo, um cadáver despedaçado, um cadáver desconjuntado como os que sofrem os efeitos de uma explosão): alcatras, costeletas e bifes, entrecostos e espáduas; coxinhas e peitos de frango, acomodados numa caixinha de esferovite branco coberta por película transparente, tudo com o ar mais impoluto possível, fazendo--nos esquecer que se trata do pequeno ataúde de um ser que sofreu uma morte violenta.
No talho do hipermercado não desaparecem de todo os indícios de sangue — detetamo-los, mas evitamo-los. Esforçamo-nos por não decifrar esses sinais, para que o cadáver em pedaços não nos impressione, assim como não nos impressionam os cadáveres que vemos na televisão, os tipos desfeitos numa qualquer avenida poeirenta, com palmeiras em pano de fundo. No estrato social mais baixo (do qual acreditamos ter escapado nos últimos anos), não têm cabimento as discussões metafísicas sobre os limites do homem ao exercer os seus direitos sobre os outros animais. As coisas são como são. O reino moral não se vê em parte alguma. Estás em baixo porque não te desanimalizaste o suficiente. Os de baixo debatem-se antes com estratégias laborais, questões de método, manobras que permitam aumentar a eficácia com a mínima despesa de energia. Movem-se no plano da técnica, da mera busca de um máximo de resultados com um mínimo de esforço: empirismo: como atar as asas do pato para que não se debata quando o sacrificas, de que modo desferir ao coelho a pancada no cachaço de modo a que morra ao primeiro golpe, com que inclinação cravar a faca no gasganete do porco de modo a que o jorro de sangue acerte no caldeiro preparado para a matança, já cheio de cebola bem picada e colorau, tudo a postos para a confecção das morcelas. Nenhum homem rico medianamente inteligente pratica o assassinato. Não são psicopatas. Não têm razões para o ser. Para essas coisas, para matar e para sofrer de psicopatias, têm os seus criados.
Rafael Chirbes (1949 - 2015)
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