terça-feira, 7 de março de 2017

G.R.E.S. Indecentes do Berço Esplêndido

O carnaval passou. Mas ainda não de modo a tornar vintage a imagem que proporei. É que gosto de comparar a República brasileira — o ambiente político-cultural em que vivemos — a uma alegoria de escola de samba.

O Brasil está todo ali, no corpo de um carro alegórico. Não importa a agremiação, se rica ou pobre, se tradicional ou fabricada, se poderosa ou boi de piranha, se Unidos da Tijuca ou Paraíso do Tuiuti: o país está todo representado ali. Está, claro, no que fica aparente, nas cores, na exuberância, nas eventuais soluções criativas, nas habituais soluções repetidas, no amontoado — raramente articulado — de referências, na tentativa desesperada de apresentar um enredo compreensível. Mas está, sobretudo, no que vai por baixo: na base, que atropela; nos pilares, que cedem e tombam; nos fundamentos, em cuja fragilidade raízes não vingam, não se aprofundam.

O que é, afinal, uma alegoria de escola de samba?

Uma estrutura precária — instável, requentada, soldada e ressoldada, concebida para uso breve, destinada ao desmonte, erguida sobre chassi velho de caminhão, que combina ferro e madeira reutilizados, e cuja engenharia irresponsável se equilibra entre improviso e sorte — sobre a qual se levanta um prédio de extravagância, de esplendor, com o qual se pretende impressionar pelo volume; um conjunto em que a habitual falta de ideias originais é defendida pela sobreposição de formas, pela colagem kitsch, pelo excesso de adereços, de penduricalhos, de fauna e flora de espuma, e por serpentes e dragões amazônicos de cujas bocas entram e saem (não reclamo) mulheres de seios impossíveis.

O que é, afinal, o Brasil?

Uma estrutura débil — instável, eternamente provisória, concebida para desmonte, de constituição pretensiosa, mas sempre remendada e pouco obedecida, erguida sobre moralidade tíbia, direitos muito mais que deveres, valores de ocasião que combinam tradições mal viajadas e autocrítica condescendente, e cuja engenharia impune se equilibra entre improviso e sorte — sobre a qual se constrói, com financiamento do BNDES, um edifício, um Palace II, de vanglória, de soberba; um conjunto em que a costumeira ausência de pensamento orgânico é protegida por delírios de grandeza, por pré-sais de futuro, por messias em causa própria, por jararacas de cujas bocas escorre a baba que contamina um velório de palanque.
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Estruturas inconstantes, que dependem da sorte, cedo ou tarde falham. Tanto faz se carro alegórico ou um país, ambos não evoluem — inclusive para atropelar — sozinhos. Dependem de um condutor, de um motorista, de um governante. São esses os que decidem, os que ordenam, dão o norte.

Estruturas incertas, que dependem da sorte, cedo ou tarde perdem o eixo. Tanto faz se carro alegórico ou um país, ambos não avançam sem comando — da mesma forma que revólver não dispara sem alguém que lhe aperte o gatilho. Dependem de um dirigente, de um responsável. São esses os que mandam ir em frente. São esses os que poderiam mandar parar.

No Brasil, tanto faz se na condução de uma alegoria ou se na gestão do país, também o modo como se dirige — sobretudo durante uma crise — é o mesmo: adiante, na fé, na raça; não interessa se sem vista do horizonte, se com o olhar limitado, é sempre avante, avante, avante. Porque o show não pode parar, não importa se são vários os feridos; porque é preciso continuar e concluir o projeto, não importa se cuspindo milhões no desemprego; porque tudo é marolinha e a recessão jamais tem pai; porque interromper e reformar é fracassar, e aqui o barato é empilhar puxadinhos, a existência como uma alegoria da Beija-Flor; porque frear, refletir e rever é perda de tempo, e o relógio está correndo; porque o fim da avenida é logo ali, e então tudo se ajeitará; e porque, se não se ajeitar, um jeito sempre se há de dar: vira-se a mesa de um lado, compondo e recompondo para que coisa nenhuma saia do lugar; de outro se elege um vencedor popular, de preferência um há muito sem glórias, molusco ou ave de rapina — pão e circo ideais para botar o povo feliz, logo esquecido, e já ansioso pelo próximo desabamento.

Cristo nunca volta no Desfile das Campeãs.

Carlos Andreazza

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