domingo, 12 de fevereiro de 2017

Uma leitura das ruas

Num mundo que enlouquece celeremente, o Brasil deu sua cota na semana passada com a greve dos PMs no Espírito Santo: mortes, saques, assassinatos e assaltos dominaram as grandes cidades capixabas. O medo se ampliou com a possibilidade de outras PMs, notadamente Minas e Rio, seguirem o mesmo caminho. No auge da crise, o governo como sempre se omite, e o próprio ministro da Justiça pede demissão para se dedicar à sabatina para ocupar o STF.

A fórmula de sempre é mandar o Exército, com sua grande força psicológica, baseada na simpatia popular pela instituição. Mais psicológica do que real, uma vez que há 2.000 homens para cobrir a ausência dos 11 mil PMs em greve. Por trás do drama cotidiano, uma grande máquina, açucarada e viscosa, move-se não apenas para neutralizar a Lava-Jato, mas para garantir o poderoso esquema de corrupção que une políticos e empresários no Brasil. O ministro indicado para o STF escreveu uma tese dizendo que presidentes não deveriam escolher seus auxiliares porque passariam a ficar dependentes desse favor.

Ao aceitar o cargo, Moraes é mais uma demonstração de que na prática a teoria é outra. Sua tese acadêmica é correta. É tão simples que a ouço nas próprias conversas de rua: “E o Temer, hein? Indicou o careca”. “Para quê?” “Hahaha”


O interessante é que muitas pessoas inteligentes passaram a defender a escolha do ministro da Justiça, argumentando que houve outros casos assim. É verdade. Mas nossa experiência de redemocratização resultou numa ruína. Apoiar-se nas mesmas práticas envelhecidas é apenas insistir num modelo caduco. Um novo ministro teria de expressar as aspirações de agora: qualidade intelectual e independência. A máquina se move com muitos braços. No Supremo, Gilmar Mendes quer rever as prisões da Lava-Jato. Ele tem condições para fazer isso, uma vez que, como presidente do CNJ, sempre se bateu para alterar o quadro das prisões preventivas, horizontalmente, entre os presos comuns. Mas sua fala se dá num momento em que alguns críticos da Lava-Jato avançam inclusive com a ideia da libertação de Eduardo Cunha. Sem questionar intenções, supondo sempre que as pessoas querem interpretar corretamente a lei, considero uma posição perigosa.

Eduardo Cunha é mestre em eliminar provas e intimidar testemunhas. Fez tudo para esconder os dados de computadores da Câmara que o incriminavam. Seus prepostos ameaçavam a família de testemunhas, como o fizeram com Alberto Youssef, que depunha na Câmara, nessa condição. A máquina se move até em espaços solenes, como o de um funeral. “Como deter a Lava-Jato, como colocar o Supremo contra ela?”, sussurram vozes que deveriam ser de dor e saudade. Para o mundo político, governo inclusive, toda essa tragédia que se desenrola nas ruas brasileiras é apenas um cenário distante. Todos se empenham em garantir sua zona de conforto, a possibilidade de continuar enriquecendo à custa do povo brasileiro. A única mudança que alguns parecem admitir é o ocaso do PT, considerado um rato magro, que ao ganhar o governo foi vítima de indigestão por sua fome acumulada. A tentativa de restaurar o esquema de sempre, e seguir a vidinha política do Congresso como se não estivéssemos numa profunda crise, é comovente. Digo isso porque eles parecem não compreender a gravidade do momento. Assassinatos, saques, cabeças decepadas, tudo isso se transforma num imenso mosaico policial, capítulo à parte em que a sucessão das atrocidades acaba suavizando-as. Em tese, não é nada confortável em ser governo num momento tão tenso no qual a corrupção é detestada.

O Rio está vivendo este drama com intensidade. É governado por um remanescente do grupo que assaltou e quebrou o estado, sem condições políticas de tirá-lo da crise. Mas não larga o osso. Existe uma dificuldade muito grande em perceber que algo acabou, que a sociedade não aceita mais esses padrões. Todo esse gigantesco esforço para retroceder o Brasil ao que havia antes da Lava-Jato é patético. Se olhassem atentamente para o que acontece no Espírito Santo, veriam que estamos no fio da navalha, habitando uma tênue fronteira com a barbárie. Quanto mais tempo perderem maquinando tramas para fugir da Justiça, mais a situação se agrava nas ruas. É urgente adequar as práticas às novas aspirações da sociedade brasileira. Temer deu um pontapé nelas ao nomear Moreira Franco ministro para garantir o foro privilegiado. E com a outra perna chutou a nomeação do próprio ministro da Justiça para o STF. Tantas historinhas na imprensa, mas o que fica para mim é que foram movidos pelo medo da Lava-Jato. Só isso justificaria o desgaste da nomeação. Ou será que vou acreditar que Temer, Padilha e Franco acordam e dizem: um belo dia para levar pancadas; vamos dar o foro privilegiado para o Moreira.

Eles sabiam que iam apanhar e o fizeram com um objetivo claro de autodefesa. Ou desvio de finalidade, visto por um ângulo legal. A tentativa de segurar o país num esquema do passado pode nos custar muito caro. Sobretudo para quem manobra nessa direção. Meu humilde conselho da planície para o planalto: é melhor aceitar a justiça do Estado do que enfrentar a justiça das ruas. E qualquer tentativa de neutralizar a justiça significa um perigo maior de cair nas mãos de pessoas enfurecidas.

Fernando Gabeira

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