A versão definitiva e póstuma é de 1595 e nela Montaigne impôs a si próprio explicar por que “os que se empenham em examinar as ações humanas jamais ficam tão atrapalhados como para juntá-las sob a mesma luz, pois comumente elas se contradizem de modo tão estranho que parece impossível que venham da mesma matriz”. A inconstância humana foi um dos seus temas favoritos, pois “nosso modo habitual é seguir as inclinações de nosso desejo, para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, conforme nos leva o vento das ocasiões”. Em consequência, “não vamos, somos levados, como as coisas que flutuam, ora suavemente, ora com violência”.
Similarmente, a difundida fabulação de um suposto golpe atende aos mesmos indisfarçados interesses, seja de Dilma, a personagem principal da trama, ou, então, do campo petista diretamente atingido. É a estratégia ideal, que os anos vindouros comprovarão. Os petistas sabem, como alertou Montaigne, que “assim como o prato da balança pende necessariamente quando foi carregado, assim o espírito cede às coisas evidentes” e o uso repetido, ad nauseam, do incriminatório “golpista”, em todos os momentos e situações, acabará se enraizando no coletivo social e se tornará uma “coisa evidente”. É sina da qual o governo Temer não se livrará, pois sempre surgirá um militante para gritar o bordão e gerar o embaraço público. O comportamento social tende à simplificação, aqui se diferenciando dos pensadores, não se aplicando aos cidadãos a frase de Dante que Montaigne cita em Os Ensaios, a qual nos ensina: “não menos que saber, duvidar me agrada”.
Aqui existe outro aprendizado consagrado: na vida social, a repetição, ainda que absurda, acaba aprofundando suas raízes e a vasta maioria dos cidadãos prefere viver sob argumentos dúbios, ou até falsos, a seguir sob incertezas. Se a sintaxe do “golpe” é insustentável, pouco importa, pois é preferível viver em acordo com algum catecismo, qualquer que seja, porque “a alma que não tem objetivo estabelecido se perde”. E com aguda percepção Montaigne ainda insistiu sobre a leveza das decisões humanas, segundo as quais “é preciso tudo explorar e comprar de cada um segundo sua mercadoria, pois em casa tudo serve; e até a tolice e a fraqueza alheia o instruirão”. E assim, infelizmente, “todos nós estamos fechados e encolhidos em nós mesmos e temos a visão limitada ao comprimento de nosso nariz”. O comportamento dos indivíduos, dessa forma, acaba sendo equívoco e sujeito a erros, pois “é em meio de brumas e às apalpadelas que somos levados ao conhecimento da maioria das coisas”.
Encurralado pelos acontecimentos, o campo petista precisa da verborragia do “golpe” para não desaparecer. Sua ambição é a conquista do poder e se se curvar deixará de ser um partido político. Por isso a vitimização servirá tanto à biografia de Dilma como ao partido, segmentando o mundo da política, aos olhos dos cidadãos, entre os “golpistas” e os “perseguidos” petistas. E na política, binômios simplificadores sempre são mais promissores.
É uma fábula pobre, mas em ambiente rebaixado como o nosso será suficiente e talvez em 2018 alguns efeitos do arranjo terminológico já possam ser colhidos. Afinal, como destacou o filósofo das terras de Montaigne, em tais contextos os escrúpulos não contam, porque “quem opõe o custo ao fruto da virtude, este é, decerto, bem indigno de sua companhia e não conhece suas graças nem seu bom uso”. Ao campo petista não interessará, nesta conjuntura, “que sua consciência e sua virtude reluzam em suas palavras, e tenham apenas a razão como guia”. A mentira, esta, sim, tem sido mais produtiva em seus resultados.
Qual será o preço da farsa ora em curso, seja a artimanha do Senado ou o delírio do golpe? Não sabemos, mas novamente o genial pensador nos ensinou: “A maldade absorve a maior parte de seu próprio veneno e envenena-se (…), pois a razão apaga as outras tristezas e dores, mas engendra a do arrependimento, que é mais grave, uma vez que nasce no interior, como o frio e o quente das febres”.
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