terça-feira, 13 de setembro de 2016

Vagas recordações

O que é um momento? Um segundo, um minuto, o equivalente a uma cena de filme ou de minissérie? Quantos momentos há numa vida? Momentos referem-se necessariamente a acontecimentos, ou existem mesmo na paisagem dos não acontecimentos, aquela que se faz de cotidiano e de esquecimento, tecida em pequenos gestos que se repetem, dia após dia? Tomar banho é um momento? Abrir a janela? Alimentar os gatos?

Uma jornalista me perguntou qual foi o momento mais feliz da minha infância. Levei um tempo para responder, porque vivi vários momentos felizes, mas não consegui me lembrar de nenhum momento único, especial, que sobressaísse em relação aos demais momentos.

Eu me lembro de brincar no gramado do sítio. Não num dia específico, mas em tantos dias que é impossível saber quantos foram. Eu me lembro do cheiro e da cor da grama, e dos meus pés na grama.

Eu me lembro de correr por esse mesmo gramado colhendo castanhas com meu pai. Castanhas são frutas agressivas, que nascem dentro de uma bola de espinhos, e é preciso ter muito cuidado ao manuseá-las.

(Eu me lembro também de bater a cabeça numa paineira num dia em que estávamos brincando de pique, e eu me desequilibrei numa descida: morríamos de medo dos espinhos das castanhas, mas foi um dos espinhos da paineira que ficou espetado um pouco acima da minha orelha. Fiquei assustada, achando que quando arrancasse aquilo de lá o cérebro ia escapar pelo buraco, mas felizmente a previsão não se concretizou.)

Resultado de imagem para lendo á frente da lareira
Em me lembro das tardes e noites frias de Friburgo e do cheiro da lenha queimando na lareira. Eu me lembro de ficar quieta num canto lendo. Eu me lembro de me distrair vendo a multidão de insetos que eram atraídos pela luz da sala e ficavam passeando pelos vidros, procurando uma brecha para entrar.

A cidade cresceu desordenadamente, as matas acabaram e, com o tempo, os insetos foram embora.

Sobretudo, eu me lembro do meu avô vindo me tirar da cama, no meio da noite, para irmos lá fora olhar para o céu e para as estrelas, reconhecendo as constelações.

As estrelas continuam lá, mas o céu não é mais tão bonito.
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A jornalista me perguntou qual foi o grande momento de horror da minha vida.

Tenho sorte. Ou não vivi grandes momentos de horror, ou consegui esquecê-los com tanta eficiência que é como se não tivessem acontecido.

Eu me esqueço muito mais do que me lembro.

Conheço gente que guarda datas, que descreve em detalhes coisas que eu nem me dei conta que aconteceram.

Não sei o que é melhor (ou pior). Ter apenas vagas lembranças, como eu tenho, dissolve o passado numa nuvem amorfa, num ruído de fundo em que nada brilha particularmente, mas também nada dói.

A falta de memória é uma espécie de antidepressivo natural, que arredonda as pontas e lixa os cantos.
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Eu me lembro do espanto da tecnologia. Meus netos não têm esse espanto, e provavelmente nunca terão. Nada é impossível no mundo deles, tudo já foi conquistado, e o que não foi é só questão de tempo ou de recursos. Eles acham tudo normal.

Eu me lembro do meu espanto diante de um monitor na Silicon Graphics, na Califórnia, em que a imagem de uma esfera de borracha espelhada quicando num chão quadriculado refletia o grupo embasbacado que contemplava aquele monitor, capturado por uma câmera de vídeo. Naquela época, um PC como o que eu tinha não conseguia sequer renderizar uma esfera imóvel, quem dirá aquela esfera impossível. Éramos umas tantas pessoas e ficamos ali paradas, sem ar, diante daquele prodígio. Eu me lembro de ter visto uma lágrima brilhando no canto do olho de um colega japonês, mas isso, quem sabe, é só mais um truque do tempo.

Eu me lembro do meu espanto sucessivo a cada nova geração de câmeras digitais; eu me lembro do meu espanto com os disquetes de 3”1/2 e sua assombrosa capacidade de armazenagem de 1.44MB.
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Não consegui responder quando foi a última vez em que fiquei inteiramente desconectada do mundo, embora me lembre que isso era possível. Eu me lembro que, para não ter ideia do que estava acontecendo no planeta, bastava sair da cidade.

Eu me lembro de percorrer as ruas de cidadezinhas perdidas no Himalaia, durante uma viagem entre o Nepal e o Tibete, enfrentando um frio pavoroso, para buscar notícias em lanhouses. E nunca vou me esquecer de como eram essas lanhouses, todas iguais, pequenas, xexelentas, tão cheias de fumaça de cigarro que mal se viam os demais usuários.

Por outro lado, eu me lembro exatamente quando foi a primeira vez em que percebi que o mundo tinha ficado de fato pequeno: eu estava atravessando uma planície da Anatólia, na Turquia, mas consegui ligar para o Brasil do celular, que, mesmo em Ipanema, não pegava direito. Foi tão espantosa essa ligação, que gastei muitos e muitos minutos descrevendo para o Millôr, do outro lado da linha, a paisagem que estava vendo.

Mais tarde me explicaram a origem do milagre: graças às bases militares americanas, a Turquia tinha, já naquele distante ano de 1999, uma das melhores redes de telecomunicações do mundo.

Olhando hoje, em retrospecto, imagino que, no mês seguinte, tenha recebido uma das contas de telefone mais salgadas da minha vida; mas disso, felizmente, eu não me lembro mais.

Cora Rónai 

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