Como ninguém é ingênuo, sabia-se que os controles estavam falhando. Impossível ignorar o caráter espetacular das campanhas ou os abusos de marketing, com seus magos capazes de explorar cinicamente medos irracionais e suscitar expectativas ainda menos razoáveis. Agora, no entanto, a exposição dos males tem sido impiedosa e parece não poupar nenhuma força ou personalidade relevante. O celebrado artigo do juiz Sergio Moro sobre a Operação Mãos Limpas, convém lembrar, foi publicado em 2004, no começo da era petista, quando a percepção de haver algo podre no reino da Dinamarca ainda não havia sido imensamente ampliada com os fatos que levaram à Ação Penal 470 e às investigações atuais sobre a ocupação da Petrobrás e outras empresas públicas, com fins de reprodução de mandatos e manutenção de máquinas partidárias – para não falar das situações de enriquecimento pessoal que daí derivam por gravidade.
O impacto de investigações dessa natureza não pode ser subestimado. Na Itália, de um modo ou de outro, foi simplesmente a pique a sensação de imobilidade que rodeava um “sistema de poder” congelado durante décadas. Em tal contexto “eterno”, seria quase absurdo prever o fim da Democracia Cristã, um partido que não era simplesmente “de direita”, para usar o jargão de que hoje se abusa, mas também canalizava para a vida pública os tradicionais valores solidaristas do mundo católico; e também difícil acreditar que o centenário Partido Socialista, de um “animal político” voraz como Bettino Craxi, morto no exílio, iria ser tragado no turbilhão.
Interessa-nos pouco aqui saber se o PT e o ex-aliado subalterno, o PMDB, com toda a marca que já deixaram na vida brasileira, o primeiro por mostrar ser plenamente plausível a “via pacífica” ao governo, o segundo por encarnar a resistência democrática ao autoritarismo, vão seguir o caminho do redimensionamento ou o da dissolução no rastro das investigações. Nesta altura, pouca gente pode prever quem serão os mortos e os sobreviventes, bem como o tamanho da tarefa de reconstrução do sistema partidário antes que se dissemine o vírus letal da antipolítica ou se agrave a sensação de que “ninguém nos representa” e “o voto não conta, todos são iguais”.
Exercícios inúteis de futurologia à parte, mais concreto já deveria estar sendo o trabalho autocrítico por parte da esquerda, dentro ou fora dos partidos. Diferentemente da situação italiana, e talvez para surpresa de muitos hoje seduzidos por um anticomunismo primário, o que nos faz falta são grupos políticos capazes de se reorientar à maneira do antigo PCI, que antes mesmo das Mãos Limpas, e não por motivos judiciais, mas culturais e políticos, havia tomado o caminho do reformismo, requalificando-se como “partido democrático” e acolhendo outras vertentes reformistas, inclusive de inspiração católica, para começar uma história diversa.
Entre nós, o principal partido de esquerda parece não ter percebido, mesmo no plano retórico, as características estruturais da sociedade brasileira, que traz em si, “morfologicamente”, a pluralidade de classes e grupos sociais e suas respectivas representações políticas. Para dar-se conta desse dado teria sido necessário preparar-se culturalmente para uma visão institucional sofisticada, cujo horizonte não se deixasse contaminar por um diagnóstico catastrófico da crise – grave – do nosso tempo e, por isso, não reiterasse contraposições caducas, como, para dar um exemplo que vale por todos, aquela que renitentemente opõe avanços “substantivos” e mecanismos “formais” do voto, dos partidos, das instituições.
Numa palavra, mais uma vez o aparato conceitual de tantos políticos e intelectuais “altermundistas”, brasileiros ou não, opôs democracia social e democracia política, como se a segunda fosse um obstáculo à primeira – e obstáculo a ser removido por mecanismos plebiscitários, apelos à mitologia de “assembleias constituintes originárias” e a concepções de “contra-hegemonia” alheias ao Estado Democrático de Direito, horizonte ineliminável de nossa época.
A nosso ver, por se inserir de modo acrítico em tal rede conceitual e virar as costas para a complexidade do País é que o petismo no poder se moveu tão desastradamente no plano institucional e no social. Se defino o Parlamento como assembleia de “picaretas”, disponho-me, ato contínuo, a cooptá-los, dispensando os processos de persuasão e aliança e tornando-me assim agente de degradação ainda mais acentuada. E se me autodefino, autoritariamente, como a irrupção dos pobres na vida social e na história do Estado, divido grosseiramente a sociedade em casa grande e senzala, pobres e ricos, amigos e inimigos – simulacro de luta de classes que, no entanto, mal arranha a desigualdade, afasta a esquerda de qualquer possibilidade dirigente e termina por preparar seu estatuto minoritário por muitas décadas.
Nas instituições e na sociedade, o resultado só podia ser desastroso. Ter feito esse tipo de aposta terá sido o pior dos males causados pelo petismo à esquerda e, sobretudo, ao País. Seja qual for o destino do partido e de seu máximo – e solitário – chefe, resta começar de novo: uma outra esquerda há de ser possível. E dela, certamente, o Brasil não pode abrir mão.
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