Os consultórios de psicanálise são frequentemente solicitados por situações de crise individual. Crise, nos indivíduos, é aquele momento em que alguém não pode mais ser quem era, ainda não pode ser outra pessoa e não pode, salvo morto ou delirante, deixar de ser. Habita então uma terra de ninguém em que não se tem outra escolha senão dar à luz a um novo eu, construído com o que nos é dado viver naquele momento. Quem não conheceu em sua própria trajetória um momento assim? Celebra-se depois de uma dura travessia o encontro com um eu melhor, mais verdadeiro, mais sólido, erguido sobre os escombros de falsas ilusões.
A matriz da crise que atinge a sociedade brasileira, no plano coletivo, se assemelha à matriz da crise individual. Perda de identidade, esfarelamento das ilusões e esperanças nutridas ao longo de anos em projetos, partidos, ideologias, na vaga certeza de sermos uma grande economia emergente, enfim o país do futuro que estaria chegando ao seu destino.
Nossos mitos estão sendo duramente confrontados à verdade: uma nação que nos últimos anos viveu uma farsa política, em que heróis eram bandidos e os bandidos os grandes heróis, invadido por uma corrupção metastática, à beira da falência moral e econômica, sustentado a duras penas por uma democracia que se eviscera para sobreviver.
O encontro com a verdade não pode ser senão doloroso e, no entanto, tudo isso é bom, é saudável, é promissor, único caminho possível para dar à luz um país verdadeiro. Mas, hoje ainda habitamos uma terra de ninguém.
O desnudamento da casta política pela Lava-Jato tem nos custado a reputação de um país de corruptos. O que somos e não somos. É quando vem à tona a evidência de um mundo político em decomposição que o sentimento de vergonha que invade os brasileiros revela-se ser o avesso dessa decomposição. É quando emergem as reservas de decência que são enormes no país onde a imensa maioria ganha a vida honestamente.
Vergonha, depressão são estados negativos que contêm em si mesmos os germens de uma mudança positiva, já em curso. São passagens estreitas, incontornáveis na travessia da impostura para a realidade.
Estamos no momento mais agudo da crise. Uma população triste, pessimista, desencantada. Cair na real cobra o preço da angústia pelo que está por vir. E, no entanto, estamos mudando para melhor, enfrentando a devastação do passado e o desmoronamento das vãs promessas sobre o futuro embutidas no estelionato eleitoral, confrontados à justa medida de nossas possibilidades presentes. Um novo país, redimensionado, está nascendo de sua própria crise.
É esse país em crise, confrontado às suas insuficiências, que vai receber os Jogos. A imprensa internacional tem nos pintado com as cores do inferno, talvez espelhando nossos próprios policiais que assim se apresentaram no aeroporto para receber os turistas. A voz da nossa depressão ecoa esse coral de Cassandras. O jornal “The New York Times” anunciou uma “catástrofe olímpica” e ilustrou a matéria com a foto de uma menina miserável que dorme na rua. Poderia ter sido fotografada em Nova York ou em qualquer outra grande cidade, o que em nada atenua o horror de sua miséria. A menina ilustra o desvalimento, nossa vergonhosa dívida social, não prenuncia uma catástrofe olímpica. Nos Estados Unidos, durante as Olimpíadas de Atlanta, os homeless também não encontraram um teto.
É preciso cuidado para que a voz da depressão não comece a nos autodescrever como um inferno que não somos. Tampouco somos um paraíso, já que o paraíso há muito desertou as grandes metrópoles do mundo. E não só elas.
Não se improvisa uma cidade e um país inexistentes. Assim como em crises individuais mobilizamos recursos que não pensávamos ter, no plano coletivo também dispomos de recursos insuspeitados que saberemos mobilizar. A voz da depressão joga contra, não colabora. Melhor que se cale.
Findos os Jogos, que chegam como uma festa surreal em que os convidados desembarcam em uma casa semidemolida por um imprevisto terremoto, mais do que antes seremos confrontados ao que é o nosso verdadeiro desafio: renascer de nossa própria crise, pôr de pé um país que faça sentido. Fazer sentido é de fato um fazer, o sentido não é dado. Esse fazer será a tocha que, depois dos Jogos, continuaremos a passar de mão em mão.
Rosiska Darcy de Oliveira
O encontro com a verdade não pode ser senão doloroso e, no entanto, tudo isso é bom, é saudável, é promissor, único caminho possível para dar à luz um país verdadeiro. Mas, hoje ainda habitamos uma terra de ninguém.
O desnudamento da casta política pela Lava-Jato tem nos custado a reputação de um país de corruptos. O que somos e não somos. É quando vem à tona a evidência de um mundo político em decomposição que o sentimento de vergonha que invade os brasileiros revela-se ser o avesso dessa decomposição. É quando emergem as reservas de decência que são enormes no país onde a imensa maioria ganha a vida honestamente.
Vergonha, depressão são estados negativos que contêm em si mesmos os germens de uma mudança positiva, já em curso. São passagens estreitas, incontornáveis na travessia da impostura para a realidade.
Estamos no momento mais agudo da crise. Uma população triste, pessimista, desencantada. Cair na real cobra o preço da angústia pelo que está por vir. E, no entanto, estamos mudando para melhor, enfrentando a devastação do passado e o desmoronamento das vãs promessas sobre o futuro embutidas no estelionato eleitoral, confrontados à justa medida de nossas possibilidades presentes. Um novo país, redimensionado, está nascendo de sua própria crise.
É esse país em crise, confrontado às suas insuficiências, que vai receber os Jogos. A imprensa internacional tem nos pintado com as cores do inferno, talvez espelhando nossos próprios policiais que assim se apresentaram no aeroporto para receber os turistas. A voz da nossa depressão ecoa esse coral de Cassandras. O jornal “The New York Times” anunciou uma “catástrofe olímpica” e ilustrou a matéria com a foto de uma menina miserável que dorme na rua. Poderia ter sido fotografada em Nova York ou em qualquer outra grande cidade, o que em nada atenua o horror de sua miséria. A menina ilustra o desvalimento, nossa vergonhosa dívida social, não prenuncia uma catástrofe olímpica. Nos Estados Unidos, durante as Olimpíadas de Atlanta, os homeless também não encontraram um teto.
É preciso cuidado para que a voz da depressão não comece a nos autodescrever como um inferno que não somos. Tampouco somos um paraíso, já que o paraíso há muito desertou as grandes metrópoles do mundo. E não só elas.
Não se improvisa uma cidade e um país inexistentes. Assim como em crises individuais mobilizamos recursos que não pensávamos ter, no plano coletivo também dispomos de recursos insuspeitados que saberemos mobilizar. A voz da depressão joga contra, não colabora. Melhor que se cale.
Findos os Jogos, que chegam como uma festa surreal em que os convidados desembarcam em uma casa semidemolida por um imprevisto terremoto, mais do que antes seremos confrontados ao que é o nosso verdadeiro desafio: renascer de nossa própria crise, pôr de pé um país que faça sentido. Fazer sentido é de fato um fazer, o sentido não é dado. Esse fazer será a tocha que, depois dos Jogos, continuaremos a passar de mão em mão.
Rosiska Darcy de Oliveira
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