Vivemos num mundo no qual as “páginas devem ser viradas”, embora a narrativa ancorada num progresso cumulativo ordene releituras. A leitura é o ideal; a releitura, uma necessidade.
Estamos testemunhando uma dramática releitura do Brasil como país. Não estamos relendo suas páginas como sociedade e cultura como fazemos quando falamos de comidas, música ou quando discutimos bundas ou carnaval.
Estamos acostumados ao mote do “eu já vi esse filme”, indicativo de retorno de dramas reprimidos. Mas o imperativo de mudar é inadiável.
Um amigo gostaria de uma “limpeza geral”. Eu, humildemente, lembro que o drama é sempre maior que os atores. Num sistema que se diz “democrático-liberal” — embora muitos tomem isso como um insulto —, a peça sempre terá dois lados, embora um deles tenha como objetivo englobar temporariamente o outro.
O problema hoje não é substituir os jogadores; a questão é tirar de campo os atores indesejáveis ao ponto da degradação do próprio jogo. Não se pode transformar o campo mais nobre e mais importante para o progresso de um país — a sua administração pública — num pântano. Substituir um capitão de time é algo delicadíssimo. É um ato doloroso, mas ele não significa liquidar o jogo. O ideal democrático continua desde que, como disse com propriedade o senador-relator Antonio Anastasia, os adversários honrem o fato de que pertencem a partidos diferentes, mas balizem a disputa com sua lealdade à democracia.
Convenhamos que não se pode admitir a nomeação de quase dez mil cargos comissionados, somente por critérios partidários, pois é isso que assassina o espirito das instituições. Todos, como enfatizou numa rara lição de liberalismo o citado senador, são membros de um partido e de um time que deseja vencer. Isso é o óbvio. Mas o que não é obvio é descobrir que a vida política não pode ser reduzida somente a interesses e projetos partidários e pessoais.
Caso assim fosse, a desconfiança e a lealdade seriam os maiores obstáculos ao progresso democrático. Realizado com honra, o movimento parlamentar não pode ter como alvo — exceto por projeção construída pela má-fé — somente a vitória de um partido a qualquer preço.
Se um time de futebol é tão desleal a ponto de querer vencer todos os campeonatos e fazendo com que se pergunte, como o Galvão Bueno, o significativo “pode isso, Arnaldo?!” — o futebol acabaria por inanição. Ele deixaria de ser um jogo para ser teatro ou filme reprisado
Por isso, a democracia é um regime alérgico ao radicalismo absoluto, à fé cega e, acima de tudo, à desonestidade e à conivência. Numa palavra, a uma “ética de condescendência”. Com a conhecida moralidade do tudo o que fazemos é certo e tudo o que vocês fazem é golpe. Sem o risco, sem a incerteza e sem o imprevisto, mas com um acordo básico no progresso e na igualdade de todos perante a lei como um valor, deforma-se a democracia.
Se eu posso, com a minha insignificância como colunista desejar algo ao governo Temer, desejo rigor e austeridade. Que ele tenha uma compostura jamais vista no Brasil. Que tenha a vontade de transformar “governantes” (ou donos) do Estado em servidores da sociedade. Sugiro, e respeitosamente demando, a supressão de todas as figuras de privilégio e hierarquia que fazem o ator comer o cargo, e o criminoso não ser punido.
É preciso terminar regalias como casa, criadagem, comida e aspones que fabricam os “donos do poder”. É necessário impedir a nomeação por gosto e favores partidários ou sexuais.
Em suma, há que se adotar uma inédita e resoluta prática igualitária, sem a qual vamos continuar eternamente sendo os mentirosos engravatados de sempre.
Roberto DaMatta
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