quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Eu quero ir para Plutão

Para o cidadão Gilmar Mendes

Quando Mario Batalha soltou essa frase no seu tom rabugento-beligerante, eu pensei que ele estivesse bêbado. Mas qual, o velho estava em forma e, como ele fala pausadamente, você fica intrigado com a próxima frase, que pode declamar um poema ou anunciar o fim do mundo. Olhamos para ele com os olhos de fora um tanto esbugalhados; enquanto os de Capitu tentavam adivinhar o que viria.

— Plutão! Na ausência de saída desta infindável crise cujo centro está brasileiramente em quem pode terminá-la, pensemos não em Platão ou Pluto, o cachorro do camundongo Mickey (isso é que é democracia: um rato ter um cachorro, enquanto aqui os ratos são também cachorros). Falo — continuou sem alegria Mario Batalha — no planeta mais longínquo, o que era tão desconhecido como os valores de um político nacional. Aliás — continuou —, as fotos de Dilma depois da tenebrosa perda do grau do investimento revelam olhos bonitos e um tanto plutônicos, como que situados na fronteira do nosso miúdo sistema político-planetário...

— Apaixonou-se pela presidente? — perguntou o gozador Beto Molhoterno, especialista nas plutônicas gatunagens da Petrobras.

— Não, não, e não! — reverberou Mario Batalha, falando ainda mais pausadamente.

Pensei no permanente drama do aluno deslumbrado pela professora, no legislador preso pela lei que proclamou, na cozinheira que come a própria comida, na mulher irresistível que não resiste a si mesma e não dá pra ninguém, no país que faz guerra em nome da paz e no partido que enriquece em nome do povo. Em suma, do criador arrebatado (e paradoxalmente encarcerado) pela criatura que inventou, a qual, uma vez fabricada, ganha presença e autonomia e faz suas exigências, embaraçando — como no velho mito — o criador. Galatea, relembro, logo que como estátua recebeu dos deuses o dom da existência, exigiu do seu ex-escultor apaixonado que ele raspasse a barba. Tal como as mulheres exigem um carinho esquecido, e o nosso Brasil — essa Galatea em forma de coração — demanda apego e, sobretudo, uma babaquice chamada honestidade. Que dizem ser coisa pra “trouxas”!

Nós, como o mitológico Pigmalião, esculpimos uma democracia que transforma floristas analfabetas (como na peça de Bernard Shaw) em duquesas; e operários em presidentes. Sua incomensurável bonança abrange toda a sociedade, pois é isso que a distingue da aristocracia. Nela, não há segmentações estabelecidas, mas papéis e cargos a serem preenchidos por mérito. Sendo inclusiva, nela os excluídos são um problema, inclusive esse planeta Plutão que hoje faz parte do nosso conhecimento astronômico. O campo da democracia é imenso e nele nascem tanto mentira quanto verdade. Como o tão malfalado mercado, ela aceita tudo e, por isso, tem que ser medida e vigiada. No seu seio todos — f.d.p e planetas — são agasalhados.

Mas, como criatura e instituição, ela faz suas demandas. Tem, como Gelatea, suas cobranças. Uma delas é o limite do tempo de governo; outra é a honestidade; uma outra — dificílima num país de índole aristocrática — é a eficiência e o senso de limite ou de justiça.

— Governos democrático-liberais — prosseguiu — são irritantes porque eles têm um laço forte com o mercado autorregulado (que estabelece responsabilidade) e com um paralelo ao teste das urnas, o qual se decide por números mas se convalida pela eficácia e pela sinceridade, pelo chamado “bem-estar geral” que, graças a Dilma, acabou no Brasil.

E o que isso tem a ver com Plutão? — perguntaram a um só tempo o velho Perdigão, ao lado do Miroca e do Sivoca.

Tem tudo a ver. O planeta menos conhecido e bom porque estava longe faz agora parte do nosso mundo. Tornou-se parte da nossa consciência. Com isso, ele desmancha fantasias, revelando-se em sua realidade rochosa e infértil. Tal como a distante democracia liberal — que era um sonho numa sociedade de barões e milicos autoritários, bem como de gente que virava político para ser servido e não para servi-la e honrá-la — espanta ldarões difarçados de pais do povo.

A essa altura, Mario Batalha tomou um largo gole de uísque e olhou nos nossos olhos lavados de velhos. Chuck Snake, o americano que nada entendia de Brasil e pensava que o lulopetismo fosse igual ao tal “liberalismo ianque”, quis sair da roda mas eu o acalmei. “Take it easy”, disse.

— E como iremos para Plutão? — questionou o Miroca com um sorriso sacana.

— Vamos com gosto, tomando do bom e do ruim, mas obedecendo às demandas da nossa criatura, tal como o fazemos com o espirito arrolhado nessa bela garrafa — respondeu veloz um sério Mario Batalha.

Roberto DaMatta

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