quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Coxinha e caviar

“Coxinha” e “esquerda caviar” são estereótipos que prestam um desserviço ao debate político no Brasil, e pelos mesmos motivos. Estereótipos reduzem as complexidades, as muitas e variadas singularidades que coexistem dentro de um determinado conjunto a uma só substância negativa, alardeada como se fosse a essência mesma de tal conjunto.

Possuem função cognitiva, isto é, não são meros filtros que distorcem a posteriori uma realidade apreendida objetivamente, mas parte integrante da própria moldura perceptiva dentro da qual o sujeito apreende aquilo que lhe parecerá então digno de repúdio. Ajudam a criar e sustentar preconceitos.


Gíria paulistana, “coxinha” inicialmente designava o sujeito rico, arrumadinho e careta. Ressignificada em meio à recente turbulência política do país, tornou-se instrumento retórico via de regra empregado para desqualificar de antemão quem quer que se manifeste contra o governo, nas ruas ou em redes sociais.

Como se os protestos não comportassem insatisfações legítimas, oriundas de diversos estratos da sociedade, mas fossem apenas expressões de uma elite desde sempre autorreferida, carcomida pela ignorância de quem é incapaz de estender sua empatia para além do mundinho particular em que vive. É contra o PT? Coxinha.

A expressão “esquerda caviar”, cunhada na França dos anos 80, pretende denunciar o que seria a hipocrisia constitutiva da esquerda: condenar o capitalismo mas aproveitar suas benesses, vivendo de modo a contradizer os valores que prega.

A expressão não apenas pressupõe como também faz parecer que há algo como “a esquerda”, um bloco monolítico eminentemente socialista ou comunista. Nada mais distante da realidade. Basta pensar nas diversas formas de esquerda social-democrata existentes — os liberais americanos ou os quadros mais sóbrios do PSDB, por exemplo — e a suposta contradição ou hipocrisia que a expressão denota desaparece.

Além disso, como observou Francisco Bosco em coluna publicada no GLOBO, “a crítica é um princípio democrático de aperfeiçoamento, e não um instrumento de negação absoluta”. Critica-se o capitalismo para melhorá-lo, o que, na perspectiva de esquerda, significa principalmente reduzir as desigualdades que produz. Não importa: se é esquerda, só pode ser comunista; portanto, não pode usufruir dos frutos do capitalismo sem cair em contradição. Esquerda caviar.

Polemistas, profissionais ou amadores, dependem da repetição de estereótipos para avançar seu trabalho de desqualificação do outro ideológico. Ao martelar incessantemente tais expressões em jornais, revistas e blogs, não estão apenas criticando algo de que discordam, mas ajudando a criar uma atmosfera hostil a este outro, com o intuito de negar inteligibilidade à sua visão de mundo.

Uma vez sedimentado um terreno discursivo suficientemente maniqueísta, qualquer coisa que o outro diga será recebida já dentro dos termos de uma percepção distorcida, preconceituosa porque sistematicamente estereotipada. Anula-se, assim, a possibilidade de um diálogo racional, pois os interlocutores passam a se comportar não como adversários honestamente permeáveis às opiniões uns dos outros, mas como inimigos cuja “ladainha” sequer deveria vir a público.

De modo geral, discursos estruturados por sobre estereótipos como “coxinha” e “esquerda caviar” renunciam à difícil tarefa de tentar compreender a realidade em toda a sua complexidade. Transformam posições políticas legítimas em espantalhos, para então enxovalhá-las justamente por isso. Contribuem para a polarização estéril do debate, pois que é próprio do preconceito reproduzir o antagonismo do qual é um sintoma.

Antonio Engelke 

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