O olhar obsoleto que boa parte dos agentes políticos insiste em lançar sobre as investigações faz com que o noticiário pareça seguir um roteiro de Miguel de Cervantes, no qual o lendário protagonista Dom Quixote perde em qualidade, bem menos simpático que o original, e ganha em quantidade, pululando por todos os lados dom-quixotes.
O Dom Quixote original viveu na Espanha em um momento de muitas conturbações históricas: Guerra Anglo-Espanhola, peste e decadência econômica. Incapaz de lidar com tais problemas, o cavaleiro decide ver o mundo com olhos do passado e tornar-se herói de uma das novelas de cavalaria que tanto lia.
Apega-se, então, a títulos nobiliárquicos inexistentes, enxerga gigantes em moinhos de vento e ganha o mundo para salvar sua donzela Dulcinea (mesmo sendo ela Aldonza, sua vizinha camponesa, capaz de bem se defender sozinha).
Parte dos investigados da Operação Lava Jato tem usado estratégias ultrapassadas: atacam injustificadamente o procurador-geral da República, classificam investigações como perseguição, cobram do ministro da Justiça a contenção das investigações, fazem sua defesa por meio de órgãos públicos, usam CPIs para pressionar colaboradores e advogados, fazem refém a economia e não pensam no interesse público.
Os investigados do Poder Legislativo são os que têm maior dificuldade de se livrar da miopia do olhar obsoleto, talvez pelo abismo que os distancia da sociedade em transformação que deveriam representar.
Neste cenário, é natural a preocupação com a nomeação do novo procurador-geral. A Constituição prevê que este seja indicado pelo presidente e aprovado pelo Senado. Desde 2003, a fim de evitar influências políticas perniciosas, criou-se o salutar costume constitucional de que seja indicado e aprovado o candidato mais votado na lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República.
Na quarta passada (5), a associação elegeu para compor a lista tríplice três nomes de inquestionável excelência: Rodrigo Janot, Mário Bonsaglia e Raquel Dodge. Primeiro colocado, com a aprovação de 81% dos membros, Janot foi indicado pela presidente da República.
Cabe agora ao Senado aprovar a sua recondução. Apesar de mais de 1/7 de seus membros –inclusive seu presidente– ser investigado na Lava Jato, espera-se que um dos gritos de indignação de junho de 2013 (contra a PEC 37) ainda ecoe pelas paredes daquela Casa.
Caso contrário, resta uma última lição de Cervantes. Ao retornar a sua vila, Dom Quixote chega a uma triste constatação: não era herói. Pior ainda, não havia mais heróis de cavalaria! Aqueles que insistirem em impor seu olhar obsoleto a uma sociedade em transformação podem chegar à mesma constatação do melancólico cavaleiro. Não há heróis. Há apenas o exercício honesto e competente de funções públicas.
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