quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A locomotiva de Ricardo

 Dei aulas no Middlebury College, em Vermont, Estados Unidos, e aproveitei a oportunidade para visitar Dick Moneygrand, que, como o escritor Saul Bellow, ali reside numa propriedade cercada de plátanos.

Fomos recebidos pelo velho amigo e sua mais recente esposa, a bela Claire Maranda, uma canadense francesa aparentada do meu ex-colega harvardiano Pierre Maranda. Foi de Claire que recebi a triste notícia da morte do amigo, ocorrida no dia 5 de julho. Notícia a ser sublimada por uma grave dose de uísque com a bênção de tio Silvio. Para ele, beber moderadamente era essencial na travessia deste vale de lágrimas.

— E o Brasil? — foi logo dizendo Moneygrand. — O que vocês fizeram dele?

— Triste... — respondi duplamente alvejado, pela morte e pela visão distanciada do meu país incapacitado pelo populismo e pelos conchavos movidos a incontroláveis ambições.
A crise do Brasil real tem como centro um grandioso papel (o de presidente da República) massacrado por uma péssima atriz

— Desequilíbrio em todos os setores supostamente racionais e pouco afeitos ao exercício da análise cultural. Fácil falar em remédios financeiros e fórmulas legais, pois, conforme sabemos — continuou Moneygrand. — a última barreira, o derradeiro inimigo, é sempre a cultura: o conjunto das opiniões e de modos de agir que comandam os nossos corações. Ganhamos a guerra contra a escravidão — disse. — Mas o credo igualitário até hoje tenta controlar a competição pelos mais diversos racismos. Suprima-se uma barreira, e outra logo surge, conforme dizia Lévi-Strauss.

— É impressionante como não temos a mais ínfima noção de conflito de interesse. E como ainda tentamos regular o conflito advindo da junção de igualdade e liberdade (acelerado pelas redes sociais que garantem um extraordinário anonimato e uma irresponsável agressão a quem quer que seja) por meio do “Você sabe com quem está falando?”: pelos elos pessoais, abandonando leis e instituições. É chocante como usamos óbvias manifestações de interesses ideológicos na tentativa de justificar atos lamentáveis. No Brasil, a “política” legitima o ilegítimo, dai a indignação relativa aos seus engravatados e gorduchos atores. O redesenho da esfera política passa pela consciência de direitos e deveres de todos para com todos. Liberdade + igualdade são incompatíveis com o favor, com aparelhamento do Estado, com a ignorância, com a má-fé e com as liturgias dos cargos que exprimem um viés hierárquico. Sem reflexão e cabedal, caímos nessa lamentável tentativa de infantilização do povo brasileiro.


— O velho ranço aristocrático do Brasil passou para as esquerdas no poder — disse Moneygrand. — E, hoje, o terrorismo intelectual tenta equacionar a indignação diante das épicas roubalheiras com “ódio” e “retrocesso”. Retrocesso seria não ficar indignado ao ver o Brasil ser mortalmente abatido pelo governo de um partido cuja bandeira era levá-lo, com ética, à justiça social.

— Me dá mais um uísque, Dick! — pedi para ser confortado no fosso da minha depressão.

Falamos dessas coisas desagradáveis e inevitáveis e, do fundo da minha memória, surgiu — como ocorre com os velhos — uma cristalina lembrança.

A memória do dia em que Ricardo, meu quarto irmão, ganhou uma locomotiva de presente de aniversário. O dom que o distinguiu até hoje atravessa a minha vida pela inveja intensa que despertou em nossa irmandade feita de Fernando, Romero e Renato. A nossa irmã caçula, Ana Maria, por razões de severa e preconceituosa demarcação entre o masculino e o feminino, foi poupada.

Quando Ricardo começou a brincar e vimos a locomotiva em todo o seu esplendor de símbolo, jorrava dos nossos corações uma inveja, uma inveja absolutamente pura. Como a que só surge quando um sentimento possui uma pessoa, englobando-a. Pois, como sabemos, tornar-se um adulto é um duro aprendizado de conter e disfarçar tais emoções.

Diante daquela locomotiva, nossos olhos fraternais cruzaram-se e, numa inveja bíblica, quebramos com o martelo de papai o brinquedo. Levamos uma surra, mas ela não liquidou a inveja. Tal como a democracia não acaba com o nosso gosto de opinar, estigmatizar, caluniar e roubar o bem comum.

Na peça de publicidade do PT, vi um excelente ator, José de Abreu, fazendo um pobre papel. A crise do Brasil real tem como centro um grandioso papel (o de presidente da República) massacrado por uma péssima atriz. Há teatro na política, mas política não é teatro. O que não vale é acabar também com a peça, com o teatro e com os espectadores que pagaram caro o ingresso.

Roberto DaMatta

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