Estamos indo
embora. Sobre o piso de ardósia,
por entre
caules e corolas que exalam um perfume exótico,
os gatos
deslizam. São espíritos leves e sóbrios,
com suas patas
de veludo, silenciosas,
que arranham a
lombada dos livros e o verniz dos móveis.
Os tapetes
abafam seus passos ociosos,
como se faz
quando se acolhem os órfãos.
Doze anos se
passaram, e estamos indo embora.
A brisa do
mar, com seus úmidos braços, nos envolve
e empurra para
um outro promontório,
uma outra
dimensão de nossa breve história,
de que somos,
se tanto, transitórios hóspedes,
peças de um
tabuleiro onde o tempo se desloca,
alheio à
inútil engrenagem dos relógios,
cujas horas se
dissolvem numa névoa incorpórea.
Tanto aqui se
escreveu em verso e prosa:
romances,
elegias, baladas, novelas e toda uma prole
de rascunhos
que iam da perífrase ao apólogo.
Tanto aqui se
ouviram o lamento de um fagote,
uma ária de
ópera, a lenta pulsação de um órgão,
a inquieta
truta de um quinteto de cordas,
essa
insistente música que ecoa na memória
e que não pode
(nem quer ) ir-se embora.
Como estancar
as vozes e os acordes
do Réquiem em
que Mozart brindou à própria morte?
Como esquecer,
Palestrina, teu Kyrie, teu Sanctus, teu Glória?
Como calar
esse jorro de notas, essa clave de sol
na partitura
de uma noite em que faz frio e chove?
Estamos indo
embora. Passem o trinco nas portas
e tranquem as
janelas pelas quais rompia a aurora.
Apaguem-se a
lua, as estrelas e o monólogo
do sabiá na
varanda, as nervosas
mãos do vento
a sacudir os vitrais da abóbada.
Levem tudo:
quadros, taças, santos barrocos, oratórios,
todo esse
insólito e cediço espólio.
Bebeu-se aqui
o álcool da vida até o último gole.
Não se
esqueçam da arca que ficou no sótão.
Desliguem a
luz (e o gás, senão tudo explode).
Que fique um
resto como esmola. Paguem um óbolo
ao barqueiro
que nos leva rio afora.
Estamos indo embora.
Ivan Junqueira
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