quinta-feira, 9 de abril de 2015

Despedida

 Estamos indo embora. Sobre o piso de ardósia,
por entre caules e corolas que exalam um perfume exótico,
os gatos deslizam. São espíritos leves e sóbrios,
com suas patas de veludo, silenciosas,
que arranham a lombada dos livros e o verniz dos móveis.
Os tapetes abafam seus passos ociosos,
como se faz quando se acolhem os órfãos.

Doze anos se passaram, e estamos indo embora.
A brisa do mar, com seus úmidos braços, nos envolve
e empurra para um outro promontório,
uma outra dimensão de nossa breve história,
de que somos, se tanto, transitórios hóspedes,
peças de um tabuleiro onde o tempo se desloca,
alheio à inútil engrenagem dos relógios,
cujas horas se dissolvem numa névoa incorpórea.

Tanto aqui se escreveu em verso e prosa:
romances, elegias, baladas, novelas e toda uma prole
de rascunhos que iam da perífrase ao apólogo.
Tanto aqui se ouviram o lamento de um fagote,
uma ária de ópera, a lenta pulsação de um órgão,
a inquieta truta de um quinteto de cordas,
essa insistente música que ecoa na memória
e que não pode (nem quer ) ir-se embora.
Como estancar as vozes e os acordes
do Réquiem em que Mozart brindou à própria morte?
Como esquecer, Palestrina, teu Kyrie, teu Sanctus, teu Glória?
Como calar esse jorro de notas, essa clave de sol
na partitura de uma noite em que faz frio e chove?

Estamos indo embora. Passem o trinco nas portas
e tranquem as janelas pelas quais rompia a aurora.
Apaguem-se a lua, as estrelas e o monólogo
do sabiá na varanda, as nervosas
mãos do vento a sacudir os vitrais da abóbada.
Levem tudo: quadros, taças, santos barrocos, oratórios,
todo esse insólito e cediço espólio.
Bebeu-se aqui o álcool da vida até o último gole.
Não se esqueçam da arca que ficou no sótão.
Desliguem a luz (e o gás, senão tudo explode).
Que fique um resto como esmola. Paguem um óbolo
ao barqueiro que nos leva rio afora.

                                               Estamos indo embora.
Ivan Junqueira

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