domingo, 29 de março de 2015

Das corrupções de todo dia

Sempre que possível caminho pelo bairro onde moro ou pelas redondezas do trabalho. Gosto de perceber o modo como a cidade se movimenta, ver as cores que se formam conforme as horas correm, compreender os encontros ou – exatamente o oposto – notar a maneira como deixamos escapar sentimentos, projetos e pessoas quando as distâncias passam a ser longas demais.


Outro dia, alguns antes da braveza em verde e amarelo que tomou conta o país, resolvi contar: em menos de dois quilômetros, quatro motoristas estacionaram sobre a faixa de pedestres, dois cruzaram por ela apesar dos que aguardávamos para atravessar, uma jovem de corpo esguio e passos largos jogou seu lixo na calçada, uma mãe incentivou o filho pequeno a fazer o mesmo no jardim do parque e um homem de meia idade saudou um ciclista com buzina e palavrões. Na volta para casa, peguei um táxi, pensando naquilo tudo enquanto o taxista nervosinho acessava o Facebook pelo celular grudado no painel do carro.

[Pois é].

Sou a favor dos protestos, desde que os participantes, para um lado ou para o outro, de fato compreendam o contexto das manifestações e suas consequências, tratem as diferenças com respeito e acreditem nas bandeiras que carregam. Sou contra a corrupção, indiscutivelmente. Mas acho, para além do que temos assistido, que está na hora de combatermos também as pequenas contravenções de todo dia.

Por que aceitamos e às vezes até cometemos desvios no trânsito, no trabalho ou na praça? Por que não protestamos, igualmente, contra as pequenas corrupções cotidianas? Por que ainda há tanta gente que fura fila, paga propina, atrasa religiosamente os compromissos, mente para os amigos, investe em desestruturar uma família ou sacaneia o colega de trabalho? Ofender quem pensa diferente faz parte do pacote? O que cada um de nós realiza, efetivamente, na construção diária do país de riso e glória de que nos falava o mestre Drummond?

[Um mundo enfim ordenado, uma pátria sem fronteiras, uma terra sem bandeiras, sem igrejas nem quarteis, sem dor, sem febre, sem outro, um jeito só de viver].

Temos todos os nossos desgastes, íntimos e intransferíveis, feitos das ausências alheias, das saudades, do frio que não termina nunca, de um amor não correspondido, de arrependimento ou vontade de dizer o que não se pode, vazio ou falta de sentido, da Lei de Murphy ou da Teoria dos Seis Graus de Separação, do sufoco cotidiano, da profissão ou do casamento, do vizinho barulhento, do computador com vírus, do açúcar que o médico mandou cortar, do trânsito engarrafado, do sono acumulado ou da tensão de um dia inteiro de trabalho.

Mas há, de fato, cansaços que deviam ser igualmente combatidos: a violência nas ruas, pedir atestado médico sem estar doente, aceitar o trabalho infantil, trair, contribuir com a poluição e o desperdício de água, o analfabetismo, o atraso, o desrespeito no trânsito, o preconceito, o racismo, a competição desleal, o lucro a qualquer preço, aquele jeitinho para quase tudo que aprendemos que faz parte.

A verdade é que não faz.

Protestar contra o sistema, a política ou a corrupção, na maior parte das vezes, é mais fácil que mudar em nós mesmos comportamentos nocivos, mas o fato é que atitudes individuais externas às regras da boa convivência e do bem coletivo também fazem mal, e muito, à vida pública e ao país que nos abriga.

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