sexta-feira, 13 de março de 2015

A não isenção da isenção

Sistema atua por meio de múltiplas éticas e cada cargo ou pessoa as invoca em momentos e circunstâncias diferenciadas

Você violaria a lei mesmo ocupando um cargo com um salário de 500 mil por mês, como gerente da maior companhia de esterco do mundo? Pergunta o diabo.


Se olharmos o fato racionalmente, pelas lentes do neodarwinismo e da neurociência, a resposta é “não!”. Prevalece, diz o interrogado, a minha isenção em relação às propinas e ofertas fora da curva. Fico preso ao meu cargo. E, tal como um ator de novela, eu seria devotado ao meu papel.

Mas, continua o diabo, e se o diretor da peça por ambição, ideologia, incompetência e mediocridade entender que o drama, digamos, uma comédia tivesse que virar uma tragédia e, para tanto, embaralhasse o texto da peça?

Nesse caso, insiste o demo, você toparia deixar de lado a isenção devida ao papel e ao enredo, embolsando, além do seu maravilhoso salário, imensas fortunas recebidas “por fora”, recursos adicionados a, por exemplo, uma refinaria de esterco em construção?

Ou seja, você diria um “não” ao seu compromisso moral com a empresa e toparia ter uma invejável conta bancária, uma cobertura em Ipanema e uma offshore num paraíso fiscal socialista? Além de garantir uma vida de nobre para seus filhinhos?

Bem, nesse caso — pondera o interrogado pigarreando —, sabedor do objetivo de sabotar a peça e compreendendo que o esterco é matéria valiosa e procurada, eu começaria a duvidar.

Como assim?

Eis um dado crítico. No nosso país, a isenção não é apenas uma questão de seguir uma lei e honrar um cargo. Ela varia de acordo com quem você se enturma. Se o aval para abandonar a isenção ética vem de um adversário, surge a letra da lei; mas se ele vem de um companheiro — eu, como a grande maioria, faço de tudo! A regra legal será dispensada e englobada por um outro tipo de ética. Pois, neste caso, a dominação patrimonial ou carismática, fundada na ética da tradição familiar e do dar e receber, neutralizaria a esfera burocrática, justificando a tentação da falcatrua. A lei se curva diante dos amigos. Ademais, ela é, por natureza, desigual, pois protege quem ocupa certos cargos.

Então — insiste satanás, que está na lista dos 50 a serem investigados — nessas circunstâncias, a não isenção da isenção é uma norma?

Sim, porque o sistema atua por meio de múltiplas éticas e cada cargo ou pessoa as invoca em momentos e circunstâncias diferenciadas.

Então, ficar isento é impossível? Conclui o demônio.

Não, mas é recomendável. Como aquele famoso personagem da “Montanha Mágica”, de Thomas Mann, o campo chamado de “político” no Brasil, se caracteriza pelo hábito da falta de hábito. Deste modo, o bom político, como o bom malandro, tem como referência o velho Pedro Malasartes: ele não é isento porque ele segue a ética de jamais ser isento. O malandro, você conhece isso muito bem, só é honesto por malandragem!

Leia mais o artigo de Roberto DaMatta

Nenhum comentário:

Postar um comentário