quarta-feira, 19 de novembro de 2025

O Brasil onde a dor virou rotina

O massacre nos Complexos da Penha e do Alemão, no final de outubro, e o projeto de lei que tenta impedir meninas estupradas com menos de 14 anos de interromper uma gravidez podem parecer assuntos distantes. Mas vêm da mesma raiz: a incapacidade do Estado brasileiro de garantir dignidade e proteção justamente para quem mais precisa. O resultado é um país onde o bem viver – entendido como segurança, cuidado e possibilidade real de futuro – se torna exceção.

Quando uma favela é tratada como território inimigo e uma criança violentada enfrenta barreiras para exercer um direito previsto em lei há mais de 80 anos, o país revela seu padrão mais cruel: vidas negras, pobres e femininas seguem sendo tratadas como descartáveis.

As investigações sobre operações policiais confirmam o que moradores já sabem: a letalidade do Estado atinge principalmente pessoas negras, jovens e crianças. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, ano após ano, a maioria das vítimas de intervenções policiais é composta por homens negros – e cada episódio deixa um rastro de trauma nas famílias e na comunidade.

Do outro lado, estudos médicos e psicológicos são unânimes: meninas e meninos vítimas de violência sexual têm risco significativamente maior de depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático. Esses efeitos variam conforme a intensidade da violência, o ambiente familiar e o apoio recebido, mas pioram drasticamente quando as instituições que deveriam acolher produzem nova violência. A literatura chama isso de “traição institucional”: quando o sistema trai quem deveria proteger. E nenhum bem viver é possível quando até o acolhimento machuca.

A ONU e a UNICEF registram, repetidas vezes, que crianças expostas à violência – doméstica ou comunitária – podem desenvolver o chamado “estresse tóxico”: um desgaste emocional tão profundo que compromete aprendizagem, autorregulação e saúde mental, afetando o desenvolvimento ao longo da vida. Em outras palavras, impede que vivam bem agora e destrói as bases do seu florescimento no presente e no futuro.

No fim das contas, estamos falando do mesmo ciclo: uma sequência de violações que derruba os pilares básicos do desenvolvimento humano – segurança, pertencimento e a chance real de construir um futuro. Sem isso, ninguém floresce. E, sem florescimento, nenhum país se sustenta.


Com o tempo, esse acúmulo de tragédias gera outro problema: um entorpecimento social. Quanto mais vemos chacinas, abandono institucional e violência contra meninas e contra comunidades periféricas, mais corremos o risco de encarar tudo como “normal”. A psicologia chama isso de dessensibilização. Não é falta de empatia; é cansaço. É a sensação de que nada muda, de que reagir não adianta. Esse torpor coletivo enfraquece a mobilização social – e fortalece o ciclo da violência. Sociedades cansadas sobrevivem; não vivem bem.

Falar de felicidade nesse cenário pode parecer deslocado. Mas “felicidade”, aqui, não é euforia: é política pública. É bem-estar entendido como infraestrutura de país – parte central do bem viver. Pesquisadores das universidades da Pensilvânia e da Califórnia, nos Estados Unidos, e da Universidade de Tsinghua, na China, defendem isso há anos: saúde mental, vínculos comunitários, sensação de segurança e oportunidades de desenvolvimento devem valer tanto quanto indicadores econômicos. A Psicologia Positiva – no campo científico, não no comercial – demonstra que intervenções de bem-estar podem ajudar comunidades vulneráveis a se reconstruírem emocionalmente, desde que acompanhadas de políticas de proteção social e de atendimento em saúde mental.

A Colômbia é um exemplo – e também um alerta. Logo após o Acordo de Paz de 2016, escolas e centros comunitários implementaram programas de bem-estar para reduzir tensões e reconstruir vínculos entre jovens e famílias afetadas pelo conflito. Nos primeiros anos (2017-2020), parte das iniciativas se inspirou no trabalho de Mihaly Csikszentmihalyi, especialmente na noção de flow: atividades que ajudam populações traumatizadas a recuperar propósito, foco e a sensação de que podem agir e transformar sua própria realidade. Avaliações independentes registraram avanços modestos, porém consistentes, na convivência escolar e na percepção de segurança psicológica – resultados pequenos, mas estruturantes, capazes de sustentar processos de reparação e abrir brechas para o bem viver após décadas de violência.

Mas o caráter datado desse ciclo revela um limite: a partir dos anos seguintes, com mudanças de governo e prioridades orçamentárias, muitos desses programas perderam financiamento ou foram reduzidos, mesmo diante de evidências positivas. É um exemplo claro de como políticas eficazes podem ser interrompidas antes de amadurecer – e de como a falta de continuidade pública enfraquece justamente as soluções que exigem tempo, cuidado e persistência.

No cenário global, Butão e Nova Zelândia seguiram outro caminho. O Butão criou o índice de Felicidade Interna Bruta, que reúne dimensões como saúde, educação, cultura, governança, vitalidade comunitária e meio ambiente. A lógica é simples: uma política só é boa se melhora a vida das pessoas. Já a Nova Zelândia lançou, em 2019, o Wellbeing Budget, um orçamento nacional baseado em metas de bem-estar – com foco em saúde mental, enfrentamento da violência doméstica e redução das desigualdades. Não foi filosofia: foi evidência. Pesquisas mostram que investir em bem-estar reduz custos futuros em saúde, segurança e assistência social. São países que tratam o bem viver como política de Estado. Isso é felicidade no campo científico, com impacto social real.

O Brasil poderia estar nessa rota. Temos pesquisa, recomendações internacionais e uma Constituição que coloca a dignidade humana no centro. Falta transformar isso em prioridade. Porque comunidades continuam vivendo sob violência crônica; meninas violentadas continuam enfrentando violência institucional; e a anestesia coletiva continua crescendo – muitas vezes alimentada por parlamentares que defendem medidas na contramão das evidências científicas. É impossível falar em bem viver enquanto a sobrevivência ocupa todo o espaço. Fica difícil falar de esperança quando a realidade insiste em se acinzentar.

O país não precisa escolher entre combater a violência e promover bem-estar. Os dois caminhos andam juntos. Sociedades emocionalmente seguras são mais estáveis, mais criativas e mais prósperas. A pergunta que fica é direta: quando começamos a aceitar que bem-estar – saúde emocional, segurança, felicidade e dignidade – seria algo supérfluo?

Enquanto essa mudança não chega, seguimos tentando florescer em solo árido. Mas nenhum país floresce por acaso. Ele floresce quando decide que toda vida merece mais do que sobreviver. Merece bem viver – e ser feliz.

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