O narcisismo no poder não é uma metáfora. É uma realidade política que exige vigilância. Esta é a premissa central do livro “Les Narcisse” (Éditions La Découverte) da psiquiatra e psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen, que analisa com precisão os traços psicológicos que caracterizam muitos dos líderes contemporâneos: egocentrismo, manipulação, ausência de empatia e uma tendência para se colocarem acima da lei e das instituições.
Vivemos tempos em que o espaço público se transforma num palco de vaidades. O Parlamento, outrora símbolo do debate democrático, é frequentemente reduzido a um cenário de insultos, teatralizações e afirmações provocatórias. A política, em vez de ser um exercício de serviço à comunidade, torna-se um instrumento de afirmação pessoal, onde o ego se sobrepõe ao interesse coletivo.
Hirigoyen alerta para o perigo de líderes narcisistas que, ao invés de promoverem o bem comum, cultivam a divisão, alimentam o ressentimento e exploram medos. Estes líderes não toleram a crítica, não reconhecem os próprios erros e constroem uma imagem de infalibilidade que os torna perigosamente impermeáveis à realidade. A sua força reside na capacidade de seduzir, de criar uma narrativa onde se apresentam como únicos salvadores de uma sociedade em crise.
Em Portugal, como noutros países, assistimos à ascensão de figuras políticas que se encaixam neste perfil. A ignorância é muitas vezes disfarçada de autenticidade, a incompetência é camuflada por discursos inflamados e a irresponsabilidade é normalizada como “coragem política”. Esta tendência não é apenas preocupante do ponto de vista ético — é uma ameaça à própria estrutura democrática.
No meu ensaio publicado na Revista Athena.pt – Edição nº 33, de Setembro de 2025 – intitulado “A Sociedade do Espelho Invertido”, proponho uma leitura crítica da realidade contemporânea através daquilo que denominei como Teoria do Espelho Invertido. Vivemos numa sociedade onde “tudo é apresentado ao contrário — como se olhássemos para um espelho que não apenas reflete, mas distorce, inverte, engana”. Esta inversão simbólica aplica-se também à política: o que se apresenta como autenticidade pode esconder manipulação; o que se proclama como liberdade pode ser uma nova forma de aprisionamento ideológico.
O narcisismo político manifesta-se também na forma como certos líderes se relacionam com os media e com as redes sociais. A exposição constante, a necessidade de validação pública e a dramatização de cada gesto ou palavra revelam uma dependência do olhar alheio. O político narcisista não governa — representa. E representa-se a si próprio, numa encenação contínua onde o conteúdo é secundário face à forma. Esta teatralização da política contribui para a erosão da confiança pública e para a desvalorização do debate racional.
No ensaio, refiro que “as redes sociais são o reflexo invertido da amizade verdadeira”, pois mostram uma imagem de vida social intensa, mas escondem frequentemente solidão e ansiedade. Esta lógica aplica-se também à política digitalizada, onde o líder narcisista constrói uma persona virtual que substitui o compromisso real com os cidadãos. A política torna-se espetáculo, e o espetáculo, uma forma de alienação.
Outro traço preocupante é a tendência para o revisionismo histórico e a negação da complexidade. O líder narcisista simplifica o mundo em dicotomias: nós contra eles, bem contra mal, povo contra elite. Esta simplificação é emocionalmente eficaz, mas intelectualmente desonesta. Ao rejeitar a nuance, o diálogo e o compromisso, abre-se caminho para formas de autoritarismo disfarçado de autenticidade. Hirigoyen sublinha que o narcisismo político não é apenas uma questão de personalidade — é uma estratégia de poder.
A cultura política que tolera e até celebra este tipo de liderança revela uma fragilidade democrática. Quando os cidadãos, os jovens, se habituam a ver o insulto como argumento, a arrogância como força e a ignorância como espontaneidade, o espaço público degrada-se. A democracia exige maturidade, exige líderes que saibam escutar, ponderar e decidir com responsabilidade. O narcisismo, pelo contrário, alimenta-se da impulsividade, da vaidade e da ausência de limites.
A sociedade portuguesa precisa de olhar para este espelho partido e perguntar: que tipo de líderes queremos? Que tipo de país estamos a construir? E até que ponto estamos dispostos a tolerar a ignorância, a incompetência e o narcisismo como formas legítimas de poder? A resposta não está apenas nas urnas, mas na forma como educamos, discutimos e exigimos responsabilidade. Porque quando o poder se transforma num espelho quebrado, o reflexo que vemos já não é o da democracia — é o da sua sombra.

Nenhum comentário:
Postar um comentário