sábado, 8 de novembro de 2025

Eles têm medo de que não tenhamos medo

“Estão com medo? Quem trabalha uma vida inteira não tem medo de nada. Devem estar com medo de perder os tachos.” A frase não espera resposta. É um escarro atirado ao chão das redes sociais. Ninguém escreve à espera que lhe respondam. Escreve-se para deixar uma marca no chão. Escreve-se como quem atira pedras e foge. Pois, se alguém há de ir contra a ideia de uma ditadura, claro que o faz por medo. Talvez seja um bot a escrever. Sei que há armazéns cheios de telefones e fios ligados a máquinas que alimentam o ódio e nos fazem perder tempo a discutir com robots programados para nos incendiar de indignação até às cinzas da alienação. Mas respondo ainda assim. “Não tem medo? Não tem medo de perder o trabalho? Medo de perder o teto? De ficar doente e não ter médico? Temos medo, sim. Infelizmente, trabalhar não dá garantias de nada. E é por isso que é preciso lutar por um mundo mais justo, com menos medo e mais liberdade.”

Fico sem resposta. Vivemos num mundo de barricadas. De um lado e do outro, há medo. Mas nenhum de nós está disposto a reconhecer o medo do outro. Apagamos a luz e saímos do quarto, garantindo que não há monstros debaixo da cama. Mas o medo fica, farejando o escuro, deslizando pelas coisas, transfigurando-as. Um trabalhador de pele escura, que luta para enviar dinheiro à família e trabalha até que lhe sangre a alma, transforma-se num perigo, numa ameaça. É ele que vem roubar-nos o lugar no Centro de Saúde, na creche, na rua, que ocupa com as suas roupas estranhas e os cheiros exóticos da comida que faz, na vida, onde há de nos obrigar a rezar aos seus deuses. É como uma mancha de óleo que há de nos engolir a todos, garantem-nos os que nos querem assustados.

“A culpa é toda tua”, diz a avó ao neto que trabalha com migrações nas Nações Unidas e que me falou do ar acusatório com que foi recebido sem perceber porquê. A culpa? “És tu que os trazes para cá”, atirou a senhora, que vive numa cidade do Interior e nunca viu ao vivo um dos imigrantes que agora tanto a assustam, nas notícias e nos vídeos que rolam incessantemente pela internet, mostrando desacatos, tensão, violência. Ninguém está a salvo. Mesmo que tenha sido tudo filmado noutro país e há muitos anos. Se não é aqui, podia ser. Um dia será.

Shamim Hussein também deve ter sentido medo quando foi tentar recuperar a bicicleta que usava para levar comida, na Costa da Caparica, e foi esfaqueado. E é medo que seguramente sentirá a sua mulher que fica agora sozinha, num país estranho, que lhe matou o marido e a deixa com um bebé de 2 anos. Rachhpal Singh também deve ter ficado assustado, quando um grupo de homens com t-shirts do movimento 1143 o espancou numa área de serviço da A1, numa pausa do trabalho. Mas o medo que sentiu não lhe tolheu a coragem de os denunciar. E é a isso que me agarro. Porque a coragem não é a ausência do medo, mas o momento em que o olhamos de frente e lhe passamos por cima.

O medo é um bichinho pequeno, que mal se vê, mas que quando nos entra no corpo nos paralisa e nos cega. E é também uma poderosa ferramenta de poder. O medo de perder o emprego faz-nos calar as injustiças. O medo de ficar sem casa faz-nos esmifrar a vida, consumida em trabalho e preocupações. O medo do amanhã encolhe-nos. O medo de falar sufoca-nos.

E é por isso que há tantos que nos querem com medo. Eles têm medo de que não tenhamos medo. Quem nos quer obedientes e calados, quem nos quer sossegados e alienados, quem nos quer explorados e agradecidos, quem nos quer para carne para canhão, quem nos quer para pagar e calar, quem nos quer para continuar a fazer girar a máquina que lhes enche os bolsos enquanto nos suga a vida, quer que tenhamos medo.

E é por isso que não tenho medo. A ideia de que eles vivem amedrontados com a nossa coragem espanta-me o medo. “A vida não é perigosa”, disse-me, um dia, um amigo, explicando-me as vantagens de avançar por ela de peito feito, sem olhar para trás, sem deixar que as pernas que nos tremem nos travem.

Sabem como é que se vence o medo? Com os olhos abertos e o coração cheio de amor. Pensei muito nisto enquanto andei, em reportagem, pelas ruas da Tapada das Mercês, em Sintra, e vi pessoas de todas as cores e de vários países, caminhando sorridentes e falando-se como se fala a um vizinho que também é um amigo. Aquelas ruas periféricas, que nos dizem que são perigosas, também são espaços de partilha e comunidade. E é isso que nos faz sentir seguros.

De cada vez que damos as mãos, perdemos o medo. Mas fazemos mais do que isso. Sentimos que não estamos sozinhos e temos a força de sermos muitos. Há quem não nos queira com esse poder. Há quem nos queira sós e assustados, para melhor poder controlar-nos e explorar-nos. A esses teremos de responder de cabeça erguida, olhos nos olhos, sorriso nos lábios e firmeza nos gestos. Vocês não nos assustam. Havemos de vencer o medo.

O primeiro passo para perder o medo é voltar a olhar para as coisas de olhos abertos. Aceitar que do outro lado pode estar (deve estar) alguém como nós, alguém com os mesmos sonhos e esperanças, alguém com os mesmos medos. Sair da toca das barricadas. Ouvir. Aceitar que nem todos temos de ser exatamente da mesma maneira para sermos iguais.

Fui sempre feliz quando me aproximei do que me era estranho. Porque essa aproximação conduz, quase sempre, à conclusão de que somos afinal muito parecidos. E somos sempre felizes quando nos encontramos. Não temos nada a perder a não ser o medo. Tenhamos a força de o arrancar de cima como quem lança ao ar uma capa que nos sufoca e impede de ver a realidade. Havemos de vencer o medo.
Margarida Davim

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