Um dos principais streamings do Brasil acaba de estrear uma série que conta, em formato de ficção, algumas das tragédias e crimes que mais abalaram o país nos últimos anos. Tremembé, enquadrada na categoria de true crime, poderia facilmente se confundir com qualquer série de suspense ou ficção que estamos acostumados a maratonar, se não fosse o fato de as histórias ali serem reais e terem chocado toda uma nação. É como se estivéssemos novamente vivendo esse processo de luto coletivo. Eu acreditava que, em 2015, após as cerca de 3 horas de entrevista realizada por Augusto Liberato (Gugu) com Suzane Von Richthofen e toda a polêmica gerada na época, já havíamos consensado que a espetacularização de crimes e tragédias não era aceita pela sociedade brasileira. Na época, a pergunta mais recorrente nos meios de comunicação era: “Vale tudo pela audiência?”
Agora, novamente, nos vemos diante dessa pergunta: vale tudo pela audiência, pelo capital, pela geração de lucro para empresas privadas do setor de telecomunicações?
Pensei nos familiares dos envolvidos, nas famílias, nas vítimas. Acredito que tampouco foram consultados ou necessitaram emitir qualquer tipo de autorização prévia para que a série fosse realizada.
Ocorreu-me também pesquisar se os criminosos envolvidos tinham alguma participação na construção narrativa ou recebiam pela obra. As informações públicas que localizei afirmam que, por se tratar de informações de domínio público, já há muito reviradas pela mídia, trata-se de dados históricos.
Como mencionei, pensei então nos brasileiros: que sentido faz para nós revivermos essas histórias em formato de entretenimento? Além disso, ao que tudo indica, não estamos falando de uma obra acabada, com começo, meio e fim. Ao final do último episódio, fica evidente o gancho para que haja outras temporadas. Quantas? Não sabemos!
Os envolvidos são coisificados ao serem tratados como meros personagens e não como pessoas reais; o compromisso com a veracidade dos fatos se perde, afinal, não é um documentário. A espetacularização da tragédia vai, aos poucos, sendo banalizada, e somente um agente ganha: a empresa proprietária do streaming.
Impossível não lembrar de Hannah Arendt, filósofa que nos alerta sobre a banalização do mal. Acredito que a maior vilania, neste contexto, reside em uma empresa privada que decide revisitar algumas das maiores dores de uma nação sem qualquer compromisso público, ético ou social que não seja o de promover o próprio enriquecimento. Por fim, reflito: com uma legislação tão fraca nesse sentido, hoje são essas famílias, essas pessoas, essas histórias. Amanhã, pode ser qualquer um de nós. Qualquer história que ocorra no país e se torne de domínio público poderá ser revirada, exposta, devassada por uma rede de streaming?
Diante desse cenário, cabe a nós, enquanto sociedade, refletir profundamente sobre os limites éticos entre informação, entretenimento e mercantilização da dor. O debate que se impõe não é apenas sobre uma série, mas sobre os valores que estamos dispostos a preservar em nome do lucro e do consumo cultural. Ao naturalizarmos a exploração da tragédia humana como espetáculo, corremos o risco de enfraquecer nossa sensibilidade coletiva e o respeito à dignidade das vítimas, de seus familiares e da própria memória social. O Brasil já viveu dores demais para que agora sejam transformadas em produto de entretenimento. É urgente que revisitemos nossos marcos legais, nossos valores e nossa responsabilidade enquanto público, para que o direito à privacidade, à memória e à dignidade não seja sacrificado no altar da audiência.

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