De outro, a ideia do “narcoterrorismo”, que funde o crime organizado à esquerda política, retratando o PT, Alexandre de Moraes e seus aliados como cúmplices de organizações criminosas. Essas duas histórias se entrelaçam e culminam no que vimos no Complexo da Penha e no Alemão: a legitimação da barbárie como espetáculo moral.
Desde 2021, a extrema direita vem cultivando a imagem Bukele, o líder jovem, fiel ao que se vem chamando de cristianismo cultural, autoritário e símbolo de eficiência.
Bukele sustenta um estado de exceção que já foi prorrogado dezenas vezes desde que o Congresso o aprovou pela primeira vez, em março de 2022, impondo toques de recolher e retirando garantias constitucionais em resposta a chacinas atribuídas às principais gangues salvadorenhas.
Em maio de 2021, Eduardo Bolsonaro (PL-SP) usou suas redes sociais para demonstrar apoio a uma decisão que sempre foi sonhada pelo bolsonarismo no Brasil: a destituição abrupta de magistrados da Suprema Corte salvadorenha, manobra encomendada à época pelo presidente do país. Já em maio deste ano, Nikolas Ferreira (PL-MG), em audiência pública com o Ministro da Justiça, sobre a PEC da segurança, reclamou de a proposta não autorizar a execução de suspeitos por policiais e clamou: “precisamos bukelizar o Brasil”.
Os governadores Cláudio Castro e Tarcísio de Freitas tentam encarnar esse arquétipo. A operação no Rio de Janeiro não teria ocorrido desta forma se tivessem sido colocadas as câmeras nos uniformes dos agentes – o que o governador sempre rejeitou.
Freitas e seu então secretário de Segurança, por sua vez, após a Operação Verão na Baixada Santista, foram denunciados no Tribunal de Haia por crimes contra a humanidade – mesma corte onde tramita processo contra Bukele. A chacina ocorrida no Rio é defendida por Castro e pelos governadores de direita que foram apoiá-lo como encenação do Estado forte, prova de que o bem está vencendo o mal.
Enquanto a “bukelização” exalta o herói, o “narcoterrorismo” constrói o inimigo. Como vêm apontando colegas pesquisadores, a extrema-direita tenta associar o PT e o governo Lula às facções criminosas. Perfis bolsonaristas reproduzem uma versão tropical da retórica trumpista: assim como o presidente dos Estados Unidos acusa os democratas de conivência com cartéis mexicanos, aqui acusa-se a esquerda de ser o braço político do tráfico.
Ao mesmo em que Trump deu nova ênfase ao narcoterrorismo para justificar as investidas na Venezuela, o senador Flávio Bolsonaro chegou a pedir publicamente ação norte-americana no Rio de Janeiro, “ajudando a combater essas organizações terroristas”. Logo na sequência, Lula teve a infelicidade de dizer um que “traficante também é vítima”, reforçando o estereótipo do governante fraco, cúmplice, complacente com o mal. O cenário estava montado.
O resultado político é evidente: a narrativa se fecha. O herói age, o vilão relativiza, e a violência se converte em virtude.
A operação – filmada, noticiada e defendida como um ato de coragem – teve como efeito fazer a extrema-direita, que estava acuada e sem narrativa diante os afagos de Trump a Lula, recuperar o protagonismo.
O principal argumento do Executivo Federal foi a Operação Carbono Oculto, contra o PCC, que de fato demostra que o crime é combatido perseguindo-se os canais de financiamento, e não exterminando pobres aos roldões. (Aliás, o Governo do Rio parece fazer o contrário: a Procuradoria do Estado tem trabalhado no Judiciário contra interdição de refinaria envolvida na Cadeia de Carbono, desdobramento da Carbono Oculto.)
Lula padece ainda da pecha da esquerda, acusada pelo povo de “pensar que bandido é coitado” (frase retirada de pesquisa de autoria da cientista social Luciana Girelli). E, como dias antes havia comparado traficantes e usuários, ficou nas cordas. Não condenou a chacina – como esperava uma parte relevante da sociedade – nem prestou solidariedade aos agentes mortos – como queria outra parte.
O presidente, com atraso, postou um texto com tom de quem reivindica (“não podemos mais aceitar o crime organizado”), e não com a autoridade de quem está em seu terceiro mandato como chefe de Estado.
Os dois grandes campos políticos têm seus mártires. De um lado, cidadãos sem envolvimento com o crime, que têm o azar de serem negros e morarem numa favela, como registrou a deputada Benedita da Silva em discurso viral. Tanto é assim que dias depois das execuções ainda não se sabe de quem são os corpos, de modo que evidentemente não se trata apenas de faccionados. E mesmo a morte dos “suspeitos” indignou – lembremos que não existe pena de morte no Brasil.
De outro, quatro policiais. Um deles disse para a esposa antes de morrer: “continue orando”. Imagem poderosíssima e incontestável do martírio militarista cristão.
Chama a atenção notícia veiculada pela Folha de S.Paulo: na decisão que fundamentou a operação, dizia-se que o Comando Vermelho promovia “expansão violenta do tráfico em áreas dominadas por milícias”. Diante disso não é descabido suspeitar que o espetáculo de força seja um episódio de uma guerra entre uma facção que ameaça um grupo criminoso rival com fortes ligações políticas e amparo no Estado.
A eficácia da Operação no sentido de combate ao crime foi nenhuma: o número dois do Comando Vermelho, alvo declarado, conseguiu escapar. A operação se mostrou uma tragédia em sua letalidade e um fracasso em seu objetivo declarado. Mas um sucesso de propaganda, no Rio de Janeiro e no Brasil.
O arco narrativo é perfeito. Cria-se o inimigo: o “narcoterrorismo vermelho”. Apresenta-se o herói: o “Bukele brasileiro”, moral, cristão e armado. Entrega-se o clímax: uma chacina televisada, apresentada como guerra justa. Constrói-se o mito: a morte como purificação do país, a salvação pela bala. A megaoperação com mais de 120 mortos é a cerimônia máxima dessa fé punitiva.
Mas como são vidas de pessoas reais e não de personagens, todos nós deveríamos lamentar todas essas mortes. Política pública de segurança não se faz com execução em massa. Com certeza há um caminho que não seja o de romantizar o crime, e tampouco de transformar o combate em liturgia de poder.

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