sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Zweig e os tempos que correm

“A tolerância não era desprezada como sinal de moleza e fraqueza, mas sim celebrada enquanto força moral.”

A frase foi escrita por Stefan Zweig no extraordinário O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu. As memórias do vienense que consta na galeria dos meus heróis e não só por ser um dos mais brilhantes autores da Humanidade.

Há demasiadas parecenças, descontando os normais anacronismos, entre os tempos que estamos a viver e as primeiras décadas da vida do genial escritor para que se possa destacar apenas um aspeto deste extraordinário livro. Dois mundos onde a segurança, o conforto, o crescimento económico, a conquista de direitos, a democratização no acesso à cultura, eram vistos como dados adquiridos e irreversíveis. Dois mundos cosmopolitas, progressistas, com extraordinários avanços nas várias áreas de conhecimento.


No entanto, olhar para a tolerância como fraqueza e não como força moral foi uma espécie de condição sine qua non que levou às duas guerras mundiais do século XX e que promete destruir as nossas comunidades.

Não falta quem culpe, em larga medida, as redes sociais pelo clima polarizado e radicalizado em que vivemos.

De facto, a manipulação rápida e em massa tem tido efeitos terríveis no espaço público. A capacidade de se transformar a mentira em verdade (aproveito para recomendar a uma editora que esteja por aí a tradução do livro Invisible Rulers, de Renée DiResta, sobre este assunto), a facilidade com que se pode insultar e difamar sem consequências e o anonimato que faz de qualquer cobarde um valentão são potenciadores brutais de dissensão. E, já se sabe, quanto mais radicais, mais insultuosas, mais violentas forem as mensagens, mais efeito têm, mais tráfego geram e mais dinheiro dão a ganhar aos donos das plataformas.

Ninguém ganha nada com posts moderados ou a vender a chata da verdade. Nas redes sociais não há diferentes pontos de vista ou adversários, há só inimigos e amigos. Há só trincheiras.

No mesmo sentido, nas redes sociais não há ninguém simplesmente de direita ou esquerda (sim, cá estou eu outra vez a usar conceitos que estão desprovidos de sentido), o inimigo é sempre um extremista: o inimigo ou é de extrema-direita e fascista ou de extrema-esquerda e comunista.

Não serei eu, portanto, a desresponsabilizar as redes sociais pela rápida degradação do espaço público. Bem pelo contrário.

As últimas eleições autárquicas, por exemplo, mostraram que há políticos que não hesitam em chamar radical ao seu adversário sem explicar em que se consubstancia essa acusação, que trocam epítetos por argumentos, que preferem discussões vagas sem ligação direta à vida das pessoas. E não poucas vezes isso resulta.

As pessoas estão muito recetivas a acreditar em mentiras, sobretudo nas que confirmam os seus preconceitos e, claro, esses podem ter sido amplificados por grandes ações de propaganda. No entanto, exploram sempre preconceitos.

As redes sociais apenas alimentam rápida e eficazmente sentimentos que são tão velhos como o mundo.

Não há crise social que não tenha este tipo de fenómenos, esta parte negra da natureza humana na sua génese. Podem, claro está, ser alimentados por outras circunstâncias: problemas económicos, choques civilizacionais, etc., etc., mas este lado lunar é sempre imprescindível. A capacidade de destruirmos o chão comum, a comunidade, sempre teve Xs, Facebooks e afins.

Por outro lado (ou não), a imensa concentração de riqueza ajuda hoje, como ajudou noutras alturas como a de Zweig, a definir narrativas – o poder imenso dos recursos infinitos consegue quase tudo.

O culpado da desigualdade, das crises económicas, do desemprego, da falta de expectativas é sempre um inimigo facilmente identificável: o imigrante, o judeu. Mas não só. É fundamental culpar as elites, e a narrativa define que nunca são as económicas, são sim as que chamam a atenção para os problemas das sociedades, os que não culpam os alvos do costume, mas apontam para causas que não se explicam num cartaz ou num tweet.

Que ninguém duvide: o investimento em propaganda e nos seus meios para a criação de um discurso político é também uma estratégia empresarial. Basta um exemplo: Trump e a sua claque.

Tudo isto, rigorosamente tudo, precisa de que não vejamos o outro como igual, como alguém que não vive com as mesmas angústias e desejos, que não tem como nós o mesmo direito a ser ouvido. É fundamental que não toleremos o outro e que o desprezemos. Um homem ou uma mulher como deve ser é um fraco se não gritar mais alto, se não insultar de forma mais violenta, se não olhar para o lado contrário. A tolerância tem de ser um defeito, não uma virtude.

Sim, querido Stefan Zweig, não aprendemos nada.

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