A proposta ainda vem acompanhada de uma ameaça explícita: “Se o Hamas não aceitar o plano de Trump, vamos terminar o serviço”, afirmou Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel. Qual é o serviço? Matar indiscriminadamente a população e continuar seu processo de colonização. A proposta não inclui a participação dos palestinos e, segundo a Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL), apenas reforça a ocupação ilegal.
“Ao invés de oferecer uma perspectiva real para uma solução política justa e duradoura para a Questão Palestina, o ‘Plano de Trump’ aprofunda a ocupação ilegal da Palestina, mantém Gaza sob o bloqueio genocidário israelense, restando aos palestinos passar as próximas décadas tentando retirar seus familiares dos escombros, sob uma administração de fome e condições subumanas.”, afirma, em nota, a FEPAL.
Não podemos esquecer que, na última proposta de cessar-fogo, os palestinos foram atraídos de volta à Palestina para sofrer um ataque cada vez mais covarde e brutal. Israel nunca respeitou o acordo e mensagens desencontradas já começam a surgir após a nova proposta. Paz ou mais uma armadilha?
Enquanto o acordo não vem, sabemos que Israel, com apoio estadunidense, continua a quebrar tratados internacionais, incluindo a interceptação da Flotilha Global, em áreas internacionais, que tentava levar ajuda humanitária para Gaza. Cerca de 500 ativistas, incluindo médicos, parlamentares e jornalistas, foram detidos. Mais uma violação do direito internacional para manter o bloqueio, a fome e o projeto expansionista de Israel.
Enquanto crianças palestinas passam fome, são mutiladas, perdem familiares e, muitas vezes, a própria vida, os EUA e Israel projetam as terras sem palestinos. Trump chegou a afirmar, sem nenhum pudor, que pretende transformar Gaza na “Riviera do Oriente Médio”.
A ofensiva de Israel é um processo histórico de colonização. Para entender as raízes históricas e geopolíticas dessa barbárie é indispensável observar os mapas que mostram a expansão do Estado de Israel ao longo das décadas e como os palestinos foram ficando em territórios cada vez menores. Isso já em 2020, antes do atual conflito.
Esses dados deixam explícito: o que estamos presenciando é um processo de colonização. Embora possua características específicas do momento histórico em que vivemos, ele carrega elementos comuns a outros processos coloniais: invasão de território, roubo de riquezas, desumanização e o extermínio da população.
Além da apropriação de terras, há outros interesses econômicos em jogo. Os territórios palestinos possuem vastas reservas de petróleo e gás natural, como apontado pelo relatório da Agência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad). A bacia próxima à Faixa de Gaza contém cerca de 122 trilhões de pés cúbicos de gás natural, avaliados em 453 bilhões de dólares. Israel é o único a explorar esses campos.
Dados do próprio Exército de Israel mostram que pelo menos 83% dos mortos em Gaza são civis. De acordo com as autoridades de saúde da Palestina, são mais de 65 mil pessoas mortas pelo exército israelense desde outubro de 2023. Esta contagem pode ser muito maior. Organizações internacionais apontam que tanto Israel quanto autoridades palestinas subestimam o número real de mortos no conflito. Em janeiro, uma pesquisa publicada na prestigiada revista The Lancet estimou que as perdas podem ser pelo menos 40% maiores.
Enquanto o massacre segue em curso, outra guerra é desenvolvida: a disputa da narrativa e o controle da informação. Ecoando o discurso israelense que chama de “guerra” o genocídio e justifica os crimes cometidos por Israel por um suposto enfrentamento ao terrorismo, está boa parte da mídia ocidental, inclusive no Brasil. No meio digital, o modelo de negócio das big techs, que privilegia discursos de ódio e conteúdos virais – sejam verdadeiros ou falsos – alimenta uma narrativa que relativiza a vida do povo palestino.
Na geopolítica da barbárie, a desordem informativa também é uma arma poderosa. Na internet, são milhares de mentiras que circulam e incentivam o ódio aos palestinos. Entre elas, foram desmentidas as informações de que o Hamas decapitou dezenas de bebês. Também é falsa a informação de que um bebê foi assado no forno, ou que um outro foi arrancado à faca do útero da mãe. A desinformação que circula pelas redes, reforçada pelos algoritmos desenhados pelas grandes plataformas digitais, é apenas uma das violações do direito à informação e à comunicação identificadas no conflito atual e antes dele.
O Observatório Palestino de Violações de Direitos Digitais, coordenado pela organização 7amleh – The Arab Center for the Advancement of Social Media, possui uma plataforma online para monitorar, documentar e acompanhar as violações dos direitos digitais dos palestinos. De 2021 a 2025, a plataforma recebeu e encaminhou cerca de 10.200 denúncias de violações. A maior parte se refere à incitação à violência contra palestinos por parte de contas existentes nas redes sociais (40,44%), seguido de censura de conteúdo palestino por parte das plataformas (35,34%), discurso de ódio (10,05%), remoção de conteúdo (3,70%), campanha difamatória (3,34%), fake news (2,66%), hackeamento (1,90%), violência baseada em gênero (1,76%), entre outros.
Relatório lançado pela organização, em setembro de 2024 documenta mais de 5.100 casos de censura digital e disseminação de conteúdo prejudicial em grandes plataformas como Meta e X, em outubro de 2023 e setembro de 2024. As plataformas digitais também lucraram financeiramente com conteúdo publicitário prejudicial, como mostra o relatório: “O Facebook, de propriedade da Meta, veiculou anúncios direcionados incitando o assassinato de indivíduos e defendendo a expulsão forçada de palestinos da Cisjordânia para a Jordânia. Além disso, as políticas de publicidade do YouTube foram consideradas não compatíveis com os padrões de direitos humanos. O Ministério das Relações Exteriores de Israel promoveu anúncios sobre a guerra em andamento em Gaza no YouTube, refletindo sua ideologia para públicos na França, Alemanha e Reino Unido, com um orçamento de US$ 7,1 milhões em duas semanas após 7 de outubro de 2023, em violação às próprias políticas da plataforma”.
Além das violações de direitos por parte das plataformas digitais, o documento cita ainda o uso extensivo de tecnologia nas violações de direitos humanos pelo governo israelense, como o emprego de inteligência artificial para atingir os palestinos e a promoção de apagões de internet e comunicação sem fio como uma tática de guerra ilegal durante a campanha militar de Israel em Gaza. O ataque a jornalistas e às infraestruturas de telecomunicações e a interrupção de serviços de internet e comunicação geraram um grande obstáculo para registrar violações ou mesmo salvar vidas. Além de afetar a liberdade de expressão e o acesso a informações, os ataques prejudicam as ajudas humanitárias, que já são dificultadas por Israel.
A guerra informativa não se limita às redes sociais. Casos amplamente divulgados pela grande mídia ocidental, mesmo que categoricamente desmentidos, são comuns e assustam pela força que se espalham, apesar da inconsistência.
No artigo Uma avalanche de censuras e notícias falsas, o filósofo Murilo Seabra aponta a tendenciosa cobertura da mídia ocidental sobre a pauta. Mostra, por exemplo, como o New York Times reanimou uma notícia cuja falsidade já havia sido comprovada: a de que os membros da brigada Al-Qassam cometeram “estupros em massa”. A matéria foi desmentida pela família da suposta vítima.
Em outro texto publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, o comunicador Alex Hercog, do Intervozes, destaca que os veículos brasileiros também produzem uma cobertura enviesada ao invisibilizar o debate sobre o “apartheid” existente em Gaza, ignorando o contexto histórico do conflito e encobrindo os crimes cometidos por Israel. O texto A contribuição da mídia para o ciclo de violência, do jornalista Igor Ojeda, também traz exemplos dessa parcialidade, como o uso predominante de fontes israelenses nas matérias.
Em resposta a esse contexto, no Brasil, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) publicou, em novembro de 2024, recomendação sobre a cobertura da ofensiva israelense. O texto pede que os jornais impressos, digitais e, principalmente, TVs e rádios, que administram concessões públicas de radiodifusão, garantam maior diversidade de vozes e equilíbrio de fontes na cobertura do conflito.
A recomendação alerta para o risco de uso de expressões que possam aumentar o preconceito a religiões ou grupos étnicos, como o qualificativo “extremista” ou “terrorista”. Apesar das recomendações, parte importante da cobertura jornalística no país segue enviesada.
Após o anúncio do possível cessar-fogo anterior, que não aconteceu, veículos da mídia brasileira e internacional têm destacado como as “duas partes” irão cumprir acordos. Nesse contexto, sempre se referiram ao Hamas como responsável por “reféns” e a Israel como detentor de “prisioneiros”. O termo “refém” carrega uma conotação pejorativa, enquanto “prisioneiro” sugere algo mais aceitável dentro de parâmetros legais do que seria uma guerra e ganha aparência de moral e civilizado. Contudo, como considerar razoável o fato de Israel deter pessoas de forma arbitrária, sem sequer prestar informações sobre os motivos de sua prisão e ainda usá-las como garantia para acordos futuros!?
Outro fator que contribui para essa “guerra” por meio das informações é a violência contra jornalistas e comunicadores que se tornaram alvo e vítimas de Israel. Segundo o Comitê de Proteção a Jornalistas, desde o começo do conflito, 166 jornalistas foram mortos em Gaza. Outras fontes indicam mais de 200 mortes. A organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) classificou o conflito como um dos mais letais para jornalistas.
“A terra dos homens é, como vós afirmais, de todos os homens?”
A pergunta tirada de poema de Mahmoud Darwish, poeta palestino falecido em 2008, provoca que é preciso seguir lembrando e questionando o genocídio e a barbárie. A invasão e a disputa territorial ganham contornos ainda mais desumanos quando as crianças viram alvo. Os ataques indiscriminados de Israel contra civis palestinos transformaram as crianças em suas principais vítimas.
Caminhando ao lado desse genocídio estão as principais plataformas digitais. A imagem de representantes das poderosas big techs participando da posse de Trump é mais que simbólica. É a demonstração contundente da aliança tecnopolítica de podres poderes no rumo a uma humanidade desumanizada. O anúncio de Mark Zuckerberg de novas políticas de moderação de conteúdo explicitamente favorecedoras da difusão de ainda mais ódio a grupos vulnerabilizados também vem nessa toada e coloca os palestinos em risco.
“Um número extremamente elevado de crianças em Gaza continua a morrer, a ser mutilado, ferido, desaparecido, deslocado, a ficar órfão e ser vítima da fome, da desnutrição e de doenças”, diz o Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Além dos assassinatos e da fome, usada por Israel como estratégia de guerra, organizações do mundo inteiro denunciam as prisões ilegais.
A ONU e a Save the Children denunciam que entre 500 e 700 crianças palestinas entram anualmente no sistema de detenção militar israelense. Mesmo antes da escalada do atual conflito, os palestinos já eram tratados como reféns. Nem o termo “refém”, nem denúncias sobre o tratamento dado por Israel em suas prisões costumam aparecer nas mídias comerciais. Enquanto que nas redes sociais, a política de algoritmos e os interesses econômicos das grandes plataformas impedem um debate franco, com informações transparentes.
Em meio aos escombros reais e digitais, emerge Donald Trump, evocando para si o personagem de salvador dos problemas do mundo. Impossível prever a estratégia do presidente estadunidense e seus acordos para promover um cessar-fogo. Histórico aliado de Israel e beneficiário do genocídio, os movimentos dos Estados Unidos trazem desconfiança. E ainda que o exército israelense seja temporariamente freado, é difícil acreditar em um futuro em que o povo palestino tenha o direito de reconstruir suas casas, ocupar seu território e viver sem ameaçadas.

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